Desde que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo iniciou sua atuação na comarca de Barretos perante a Vara da Infância e Juventude, há cerca de sete meses, já se tomou conhecimento de dois adolescentes sem antecedentes, processados e julgados em cidades vizinhas, que cumpriam medida socioeducativa de semiliberdade em razão da prática de ato infracional análogo à conduta prevista no artigo 28 da Lei nº 11.343/06.
Ambos portavam pequena quantidade de maconha (um deles, dois gramas) para consumo pessoal e residiam em cidades próximas com suas famílias. Para cumprirem a medida socioeducativa determinada ao final do processo de apuração de ato infracional, foram deslocados para Barretos, já que inexistia unidade da Fundação CASA em suas respectivas cidades.
Por considerar ilegal a aplicação da medida de semiliberdade como resposta ao ato infracional de portar entorpecente para uso próprio, ao ter contato com o primeiro dos casos, a Defensoria Pública do Estado impetrou Habeas Corpus perante o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Superior Tribunal de Justiça, que negaram os pedidos liminares. Foi, então, impetrado um novo writ perante o Supremo Tribunal Federal, o qual, em virtude de decisão do Ministro Luís Roberto Barroso, superando o enunciado da súmula 691, concedeu liminarmente a ordem para suspender imediatamente a execução da medida socioeducativa, acatando o argumento de que, notoriamente, o adolescente estava sendo tratado de forma mais gravosa que um adulto, o que contraria o princípio da legalidade previsto no artigo 35, I da Lei nº 12.594/12.
A questão chama atenção – e causa espanto - não só por ter chegado ao Supremo Tribunal Federal, mas, especialmente, por demonstrar que após 23 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, ainda existe certa incompreensão sobre o que seja, de fato, a doutrina da proteção integral. Infelizmente, ainda hoje e por vezes, o adolescente é tratado de forma deliberada como objeto de proteção, e não como sujeito de direitos.
Recorda-se que, na vigência do já revogado Código de Menores, o tratamento dos “menores” como objetos de proteção legitimava o argumento de que a resposta estatal aos atos infracionais teria viés unicamente pedagógico. Nesse tempo, medidas socioeducativas eram aplicadas, muitas vezes, com o pretexto de “protegê-los” ou “para o seu bem”.
Em contrapartida, no atual estágio de amadurecimento do direito infanto-juvenil, o Estatuto da Criança e do Adolescente consagrou a doutrina da proteção integral. Isso significa que os “menores”, que até então eram objetos de proteção, deram lugar às crianças e adolescentes, que agora são sujeitos de direitos. Mais que uma mudança meramente terminológica, é uma redefinição do papel do Estado e da sociedade frente à parcela mais jovem da população. Trata-se de enxergar crianças e adolescentes como pessoas; assegurar seus direitos fundamentais, como a liberdade, na máxima amplitude; reconhecer que a proteção pretendida pela lei consiste em ampliar direitos, não diminuí-los, e por isso, admitir que estes jovens são titulares de todos os direitos e garantias que os demais cidadãos são.
Nessa perspectiva, medidas socioeducativas não podem ser vistas como atos de benevolência do Estado; devem ser compreendidas como respostas estatais de cunho pedagógico e também sancionatório, a atos infracionais que correspondem a crimes na esfera penal. Ao privar a liberdade do adolescente, o Estado só o faz porque é estritamente necessário e porque existe permissão legal, e não para protegê-lo. Por essa razão, a imposição de medidas socioeducativas encontra limites na lei penal e processual penal[i].
A garantia basilar do Estado de Direito prevista no artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição da República destina-se, indistintamente, a todos os cidadãos e abrange, também, as medidas socioeducativas. Sempre que há exercício do poder punitivo estatal, hábil a restringir o direito fundamental à liberdade, é imprescindível que o princípio da legalidade seja observado. Sendo assim, o adolescente, enquanto sujeito de direitos, não pode ser responsabilizado com mais severidade que um adulto em idêntica situação.
Essa premissa fundamental já era extraída do item 54 das Regras Mínimas das Nações Unidas Para Prevenção da Delinqüência Juvenil (Diretrizes de RIAD) e no anexo da Resolução nº 119 do CONANDA (que primeiro tratou do Sistema Nacional Socioeducativo). Hodiernamente, o princípio da legalidade foi incorporado como norma do SINASE, previsto no artigo 35, I da Lei n.º 12.594/12, e determina expressamente que o adolescente não pode receber tratamento mais gravoso que aquele conferido a um adulto.
A definição legal do princípio da legalidade revela a essência da doutrina da proteção integral no aspecto infracional: demonstra que medidas socioeducativas são, também, uma forma de sançãoestatal, e quem protege o adolescente não é a autoridade judiciária, mas a própria lei ao balizar a intervenção estatal. Embora a finalidade primordial da socioeducação não seja punitiva, nem por isso sua natureza também sancionatória, ínsita à própria restrição da liberdade, pode ser ignorada, e disso decorre a necessidade de se observar as garantias que limitam o poder do Estado.
Nesse ínterim, é evidente que o ato infracional de portar substância entorpecente para consumo pessoal, jamais pode acarretar em medida socioeducativa restritiva de liberdade.
As consequências legais para aquele que pratica a conduta prevista no artigo 28 da Lei nº 11.343/06 são: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Além disso, consta do artigo 48, §2º da Lei, a vedação expressa até mesmo à prisão em flagrante do usuário de entorpecentes.
Como é notório, não há previsão legal de privação de liberdade dentre as penas previstas no artigo 28 da Lei nº 11.343/06 e, se inexiste tal cominação, é certo que ninguém – adulto ou adolescente - pode ter esse direito fundamental diminuído ou suprimido.
Infere-se que o objetivo da Lei nº 11.343/06 é evitar, de qualquer forma, a privação da liberdade do cidadão (o que inclui, evidentemente, o adolescente) que apenas consome substâncias entorpecentes. Aliás, sabemos que a questão é, primordialmente, de saúde pública, e não de Direito Penal/Infracional, razão pela qual a restrição da liberdade dessas pessoas – usuários de drogas – como forma de punição, é não só ineficaz como também irracional. Não obstante, independentemente dos argumentos de política criminal/sanitária, o fato é que diante da ausência de previsão legal, o cerceamento de liberdade dessas pessoas é manifestamente ilegal.
Nessa ótica, é juridicamente impossível aplicar ao adolescente a medida de semiliberdade (como também, e com mais razão, a internação por tempo indeterminado ou a internação-sanção do art. 122, III, ECA) pela prática de ato infracional análogo ao tipo penal previsto no artigo 28 da Lei nº 11.343/06.
A conclusão é simples e prescinde de grandes esforços: se um adulto não pode ter a liberdade restringida, em nenhuma hipótese, pela prática da conduta prevista no artigo 28 da Lei nº 11.343/06, é inadmissível que um adolescente, nas mesmas circunstâncias fáticas, cumpra medida socioeducativa de semiliberdade.
Além disso, ao imputável que for aplicada a pena de prestação de serviços à comunidade ou comparecimento a programa ou curso educativo, esta terá duração máxima de cinco meses, consoante dispõe o artigo 28, §3º da Lei nº 11.343/06. Consequentemente, é injustificável que um adolescente cumpra medida de semiliberdade que tem prazo indeterminado e que pode durar até três anos. Com esse mesmo raciocínio, infere-se que até mesmo a medida de liberdade assistida seria ilegal, uma vez que esta tem prazo mínimo de seis meses.
Ressalte-se, ainda, que a advertência e a prestação de serviços à comunidade existem tanto na modalidade de pena quanto de medidas socioeducativas. Com efeito, o Judiciário não pode inovar para além das consequências já previstas em lei, pois do contrário, estará desrespeitando a garantia constitucional prevista no artigo 5º, XXXIX da Constituição e o artigo 35, I, da Lei nº 12.594/12.
Por fim, nos mencionados casos em que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo prestou assistência jurídica aos adolescentes que portavam maconha para consumo pessoal e cumpriam semiliberdade, o contrassenso foi ainda maior. Os garotos foram retirados da cidade onde viviam com suas famílias e transferidos para a comarca de Barretos para cumprirem a medida. Além de terem suas liberdades tolhidas, também foram privados do convívio familiar e de seus lares, o que jamais ocorreria com um adulto. Ou seja, foram tratados como objeto de proteção, e tiveram seus direitos ignorados.
Apesar da evidente ilegalidade, foi necessário que o Supremo Tribunal Federal se pronunciasse, pois o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Superior Tribunal de Justiça ignoraram que o princípio da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição, e ratificado pelo artigo 35, I da Lei nº 12.594/12, também se aplica aos adolescentes.
Disso tudo, só nos resta uma conclusão: ainda há fortes resquícios do Código de Menores no Judiciário paternalista, que insiste em “proteger” o adolescente quando, na verdade, é a lei quem o protege do Judiciário. O adolescente é pessoa, é cidadão, é sujeito de direitos, e o objetivo da proteção integral é que seus direitos sejam respeitados.
[i] Reafirmando o tratamento igualitário entre adolescentes e adultos, a condição de sujeito de direito e o caráter sancionatório da medida socioeducativa, o Supremo Tribunal Federal reconhece a aplicação do princípio da insignificância para os atos infracionais, bem como a incidência dos prazos prescricionais previstos no Código Penal, o que também consta da súmula 338 do Superior Tribunal de Justiça.
Valéria Corrêa Silva Ferreira é defensora pública do Estado de São Paulo
Revista Consultor Jurídico, 8 de outubro de 2013
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