Repentinamente, a questão do uso de animais em pesquisas científicas passou a ser objeto de intenso debate.
É possível examinar o tema sob várias perspectivas.
Não analiso, aqui, caso recentemente noticiado, em que pessoas retiraram animais de um instituto de pesquisa. Desconheço os detalhes que cercam tal situação. É necessário reconhecer que pesquisas têm sido realizadas por muitas entidades, devidamente autorizadas, com sérios propósitos e de acordo com a legislação em vigor. Se, em um caso em particular, há suspeitas de irregularidades, estas devem ser denunciadas e corretamente apuradas pela autoridade competente. Além disso, ainda que se critique tais pesquisas científicas, não se pode desconhecer que não apenas tratamentos médicos e remédios, mas muito do que usamos, vestimos e consumimos passa, antes, por testes realizados em animais. A sociedade, tal como nós a construímos, acomoda tais pesquisas e, porque delas fazemos uso, o direito, ainda que não as estimule, deixa de repreendê-las — ao menos, não as veda expressamente.
O foco deste texto é outro. Pretendo, aqui, tratar de algo restrito: o uso científico de animais em pesquisas relacionadas a testes de produtos cosméticos, perfumes e coisas desse gênero, e sua compatibilidade com a Constituição brasileira.
De acordo com o artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, da Constituição, incumbe ao poder público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que submetam os animais a crueldade. No que respeita aos procedimentos para uso científico de animais, o dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei 11.794/2008.
A noção de crueldade, creio, deve ser relacional, isso é, verificada não apenas sob o ponto de vista da dor ou tormento sofrido pelo animal, mas também sob a perspectiva daquele que o impinge: a crueldade também está na satisfação daquele que se compraz em praticar o ato.
Disso se podem extrair consequências interessantes.
De um lado, percebe-se que, ao preocupar-se com o sofrimento de animais, a Constituição brasileira deu-lhes tratamento diferente do dispensado às coisas. Entendo que, à luz do direito constitucional brasileiro, animais não são coisas, e a esse tratamento normativo devem se ajustar as regras infraconstitucionais.[1] Nesse sentido, o tema é disciplinado na legislação civil austríaca (ABGB, § 285a) e alemã (BGB, § 90a), por exemplo.
A tendência a uma proteção jurídica diferenciada aos animais tende a aumentar, seja sob o prisma da relação entre pessoas e animais (por exemplo, em virtude da afetividade que pode haver entre pessoas e animais de companhia ou de estimação), seja se considerada a proteção do animal em si mesmo. O Code Civil suíço, por exemplo, dispõe que, em caso de disputa sobre animais que vivem em ambiente doméstico, o juiz levará em consideração, como critério de decisão, o bem estar do animal.[2] Há, ainda, o reconhecimento científico de que há animais diferentes dos demais, em razão de terem um referencial de individualidade e de autopercepção semelhante ao dos seres humanos (cf., p.ex., discussão que vem sendo feita em relação aos grandes primatas). A proteção aos animais, de todo modo, requer uma nova definição de seu status jurídico — até o momento considerado como coisa por boa parte das leis.[3]
Sob outra perspectiva, a vedação da prática do ato cruel também impõe uma série de limites, que dizem respeito não apenas ao modo como são tratados aos animais, mas também ao motivo pelo qual os animais são usados.
Assim, por exemplo, não se admite que, a pretexto de realizar uma manifestação cultural ou folclórica, sejam maltratados animais. Considerou-se contrária à norma constitucional a “farra do boi”[4] e a “briga de galos”[5]. Quanto ao uso de animais em rodeios ou espetáculos similares, decidiu-se que é vedado o uso de instrumentos que lhes causem maus tratos, já que, caso contrário, admitir-se-ia a “exploração econômica da dor” dos animais[6].
Essa ideia está em consonância com o que se disse acima. A crueldade está não apenas na dor sofrida, mas também no motivo que leva à prática do ato.
Em relação ao uso de animais em pesquisas científicas, de acordo com o artigo 14 da Lei 11.794/2008, “o animal só poderá ser submetido às intervenções recomendadas nos protocolos dos experimentos que constituem a pesquisa ou programa de aprendizado quando, antes, durante e após o experimento, receber cuidados especiais, conforme estabelecido pelo CONCEA”. Os parágrafos do mencionado dispositivo legal minudenciam as cautelas a serem observadas, durante o experimento.
De acordo com o que dispõe a referida Lei, é imprescindível, para que se realizem pesquisas científicas com animais, a constituição de Comissão de Ética no Uso de Animais – CEUAs e o prévio credenciamento junto ao Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal – CONCEA. Por considerar que não vinham sendo observados os procedimentos estabelecidos na referida Lei, já se decidiu no sentido de suspender a utilização de cães nas pesquisas realizadas em universidade.[7]
A Lei 11.794/2008 não discrimina, porém, os motivos das pesquisas científicas realizadas em animais. Não há restrição ao uso de animais em testes para avaliação de produtos cosméticos, perfumes etc. Aliás, em seu “Guia para Avaliação de Segurança de Produtos Cosméticos”, a Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária reconhece que, “na área cosmética, os animais podem ser utilizados para avaliar todos os riscos potenciais envolvidos, seja irritação, alergia ou efeitos sistêmicos a curto e longo prazo”, embora defenda a redução ou substituição do uso de animais.
A vedação constitucional da prática de ato cruel contra animais, no entanto, é suficiente, a meu ver, para que se considere que pesquisas científicas com animais para fins econômicos ou para se atender o mero prazer humano não têm sustentação, na norma constitucional.
Considero que levar a sério a Constituição significa extrair de seu texto o maior rendimento possível.
Não se está, aqui, a realizar um juízo ético (ou moral, a depender do sentido que se dê a essas palavras) sobre o uso de animais em experimentos destinados à produção de cosméticos. Evidentemente, é possível fazer um juízo moral sobre tal comportamento, mas interessa-me, aqui, o juízo jurídico. Sob esse prisma, a utilização de animais em pesquisas para cosméticos, perfumes ou coisas desse gênero parece contrariar a disposição constitucional que veda a prática de atos cruéis contra animais.
Parece haver um descompasso entre o que é almejado pela norma constitucional e os valores hedonistas preponderantes em nossa sociedade. Nada há (infelizmente) de surpreendente nisso, contudo. Afinal, mesmo as relações humanas estão instrumentalizadas, entre nós. As pessoas fazem de sua vida um culto a si mesmo, vivendo por institintos, e não por valores, “coisificando” umas às outras e tratando-se como objetos.
Nossa sociedade tornou-se insensível à dor e ao sofrimento humano, e situações graves e, lamentavelmente, frequentes, como casos de trabalho escravo e prostituição infantil, quando publicamente revelados, não causam protestos — tão à moda, nos dias atuais. Se o ser humano age assim em relação aos seus semelhantes, parece difícil pensar em uma mudança de postura — ainda que em relação a um aspecto bastante restrito e específico, como o hoje referido nesta coluna.
[1] Tenho sustentado esse ponto de vista na obra CF Constituição Federal comentada, 2. ed., Ed. Revista dos Tribunais, comentário ao artigo 225. Cf. também, sob o prisma do direito civil, mais recentemente, trabalho que escrevo com Fábio Caldas de Araújo, CC Código Civil comentado, no prelo, comentário ao art. 79.
[2] “Le juge attribue en cas de litige la propriété exclusive à la partie qui, en vertu des critères appliqués en matière de protection des animaux, représente la meilleure solution pour l’animal”, diz oart. 651a, 1, do Code Civil suíço.
[3] Nesse sentido, cf. Otfried Höffe, Justicia política: fundamentos para una filosofia crítica del derecho y del Estado, p. 199.
[4] “A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inc. VII do art. 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’” (STF, RE 153531, rel. Min. Francisco Rezek, 2.ª T., j. 03.06.1997).
[5] “A promoção de briga de galos, além de caracterizar prática criminosa tipificada na legislação ambiental, configura conduta atentatória à Constituição da República, que veda a submissão de animais a atos de crueldade, cuja natureza perversa, à semelhança da “farra do boi” (RE 153.531/SC), não permite sejam eles qualificados como inocente manifestação cultural, de caráter meramente folclórico. A proteção jurídico-constitucional dispensada à fauna abrange tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei Fundamental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais a atos de crueldade. Essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição da República, é motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais, como os galos de briga (“gallus-gallus”)” (STF, ADIn 1.856, rel. Min. Celso de Mello, Pleno, j. 26.05.2011).
[6] Afirmou-se, no referido julgado, ser “inadmissível a invocação dos princípios da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, pois a Constituição Federal, embora tenha fundado a ordem econômica brasileira nesses valores, impôs aos agentes econômicos a observância de várias diretivas, dentre as quais a defesa do meio ambiente, e a consequente proteção aos animais, não são menos importantes” (TJSP, ApCív 9229895-64.2003.8.26.0000, rel. designado Des. Renato Nalini, j. 10.11.2011).
[7] TJPR, AgIn 862.610-8, rel. Des. Maria Aparecida Blanco de Lima, 4.ª Câm.Cív., j. 03.07.2012.
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o noTwitter, no Facebook e em seu blog.
Revista Consultor Jurídico, 21 de outubro de 2013
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