Na madrugada do dia 19 de outubro de 2013, ativistas vinculados ao movimento de Libertação Animal invadiram o laboratório do Instituto Royal, referência em pesquisa e testes em animais, localizado em São Roque (SP), e resgataram 178 cães da raça beagle, utilizados para testes destinados a empresas vinculadas do Instituto. A invasão do laboratório polarizou a opinião pública. Defensores da invasão alegam estarem os cães sofrendo maus-tratos, ao passo que aqueles contrários afirmam que os testes desenvolvidos no Instituto seguem as leis brasileiras e são necessários para o desenvolvimento da ciência.
A discussão sobre a experimentação animal suscita análises acerca da existência e efetividade de um marco regulatório nacional que vise à implementação de padrões éticos de pesquisas em modelos animais.
Já em 1959, dois cientistas, Russell e Burch, estabeleceram diretrizes para o tratamento ético de animais em pesquisas. Estudo sistemático fomentado pela Federação de Universidades para o Bem-Estar Animal (UFAW) apontou para a necessidade da implementação da política de três diretrizes (The Three “Rs”) na lide com animais: reposição (substituição), redução e refinamento. Dessa forma, valoriza-se, respectivamente, o uso de alternativas à experimentação animal, métodos que minimizem o impacto em grandes populações de animais e redução de potenciais experimentos dolorosos ou penosos a animais.
Desde então, diversos ordenamentos jurídicos e órgãos centrais vêm pautando as suas ações pelas diretrizes supracitadas. Entretanto, a comparação entre a prática internacional voltada à regulação da experimentação em animais e a realidade brasileira denota um hiato acentuado entre as legislações existentes.
A legislação brasileira concernente à regulação de experimentação animal possui raízes no Decreto 24.645/1934, que previa penas àqueles que praticassem atos cruéis em animais, não fazendo referência a pesquisas.
Normas atuais concernentes à regulação em experimentação animal derivam do artigo 225, parágrafo 1º, VII, da Constituição da República. Em capítulo destinado à preservação do Meio Ambiente, estipula-se que é dever do Poder Público proteger a fauna contra práticas que submetam animais à crueldade. A estipulação fundamenta-se na caracterização de animais como um bem de uso comum do povo.
O marco regulatório da experimentação animal, derivado do artigo 225, encontra-se hoje na Lei 11.794/2008 (Lei Arouca). Com o intuito de estipular diretrizes normativas à regulação do uso de animais em experimentos científicos, a referida Lei foi forjada em um contexto de busca por centralização regulatória, já que municípios avançavam em direção à proibição da prática de experimentação em animais, de forma irrestrita.
A Lei Arouca limita o seu âmbito de incidência a animais vertebrados vivos, excluindo-se desse rol os destinados a atividades pecuaristas, utilizados em pesquisas científicas, além de estabelecer, no artigo 4º e seguintes, o Concea — Conselho Nacional de Controle em Experimentação Animal. Somente as instituições de pesquisa aprovadas pelo Concea poderão efetuar experimentos em animais.
A Lei, no entanto, é muito tímida e pouco explícita acerca dos princípios ético-legais que normatizam a pesquisa com animais (artigo 14 em especial) para ensino e pesquisa científicas.
Impreciso terminologicamente, o marco regulatório brasileiro desconsidera diversos esforços internacionais voltados à implementação efetiva das três diretrizes básicas na lide com animais em experimentos. Dois pontos centrais foram tratados superficialmente, como a busca por alternativas ao uso de modelos animais e a existência de requerimentos de demonstração da relevância das pesquisas em animais para benefícios humanos.
A inexistência de requerimentos para que os pesquisadores demonstrem a relevância comunitária do procedimento de pesquisa em animais é um dos pontos mais problemáticos do marco regulatório, pois abre espaço para diversas práticas que acarretam em maus-tratos a animais pautadas em justificativas vagas ou imprecisas.
Diversos ordenamentos jurídicos internacionais vão de encontro à lacuna fornecida pela Lei 11.794. A legislação alemã possui lei especial voltada à proteção dos animais, a Tierschutzgesetz (Lei de Proteção Animal), que estabelece, em seu artigo 1º, que animais não são coisas, mas nossos similares, e, por isso, devem ser protegidos de dor, sofrimento ou demais danos. A exceção para tal proteção encontra-se no parágrafo 7, em casos de extrema necessidade de utilização de animais. ATierschutzgesetz segue, nesse sentido, a sistemática criada a partir do Código Civil alemão, oBürgerliches Gesetzbuch, que, em sua seção 90, afirma que animais não são coisas.
A legislação de proteção animal alemã é uma das mais incisivas e precisas do mundo, e aponta claramente para a utilização de animais em pesquisas como uma exceção, e não uma regra. Diferentemente do marco regulatório brasileiro, a Lei de Proteção Animal alemã exige justificativa formal do órgão pesquisador para que animais sejam utilizados, e esses somente devem ser objetos de pesquisa em quatro situações, quais sejam:
i. prevenção, diagnóstico ou tratamento de doenças em humanos ou animais;
ii. auxílio na detecção de ameaças ambientais severas
iii. segurança para produtos lançados
iv. necessidade do uso em pesquisas básicas
Ainda, em cada estudo envolvendo animais, três autoridades distintas deverão avaliar a relevância da pesquisa a partir de projetos pilotos. Caso haja um consenso unânime o estudo poderá prosseguir, mediante a justificativa com bases bioéticas da permissão ou negação da pesquisa pelos avaliadores (parágrafo 15 da TierSchG).
Seguindo a lógica implementada pela Alemanha, a União Europeia, em 2013, baniu completamente a experimentação em animais para fins cosméticos, mesmo que tais experimentos sejam conduzidos em alguns ingredientes da fórmula final do produto. A história desse banimento histórico desenvolveu-se a partir de 1993, tendo contado com um investimento de recursos que totalizaram mais de € 238 milhões para pesquisas de alternativas ao uso de animais. O dia 11 de março de 2013 é apontado pelos membros da União Europeia como “o fim do sofrimento animal para fins cosméticos”(Council Directive nº 76/768/EEC c/c EU Communication 135/2013).
Cinicamente, as empresas podem ainda produzir cosméticos testados em animais, desde que os comercializem fora da União Europeia, em países como o Brasil, que ainda não baniram tais práticas.
Assim, muito embora o marco regulatório da experimentação animal no Brasil seja um avanço, ainda é tímido em abordar com segurança e precisão as três diretrizes bioéticas adotas pela comunidade científica internacional, além de ser impreciso terminologicamente e não surtir efeitos práticos na busca pela substituição paulatina de animais por modelos alternativos de testes e experimentações.
Dessa forma, os pontos nevrálgicos concernentes à implementação de um tratamento eticamente regulado de pesquisas em animais são deixados à livre-interpretação de órgãos reguladores. Esses trabalham com a sistemática de um ordenamento jurídico burocrático, pouco preciso e, sobretudo, mal divulgado. O debate social acerca do tema faz-se urgente. Nesse ponto, a revolução dos beaglessurtiu efeito.
Brunello Stancioli é professor na Faculdade de Direito da UFMG, mestre e doutor pela UFMG e Pós-Doutor pela Universidade de Oxford
Carolina Nasser é graduanda em Direito pela UFMG e intercambista pela Universität Augsburg.
Revista Consultor Jurídico, 25 de outubro de 2013
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