Nesta semana, alguns alunos que participam das atividades promovidas no centro de pesquisa que coordeno junto à faculdade me provocaram com um tema espinhoso, especialmente em razão da minha aposta nos estudos jusliterários: o lançamento do último best-seller do bispo Edir Macedo, o primeiro volume de sua biografia, intitulado “Nada a perder”, realizado no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros (CDP3), onde cerca de 3.000 exemplares foram doados.
Segundo as notícias veiculadas pelos meios de comunicação, o evento foi prestigiado e aplaudido por inúmeras autoridades do Poder Judiciário e do governo do estado de São Paulo. Alguns dos pronunciamentos chamaram minha atenção. Vejamos.
Na ocasião, o juiz-corregedor dos presídios da capital paulista enfatizou que “o trabalho da Igreja Universal é fundamental no objetivo de recuperação do condenado”. Sobre o lançamento da obra, afirmou: “O livro é uma forma prática de assegurar o que diz a Constituição: cultura e informação para todos”. Me pergunto se as portas do sistema carcerário seriam igualmente abertas para a divulgação de livros como Estação Carandiru, Elite da tropa ou Cabeça de porco...
Na mesma linha, o secretário da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo registrou a importância do trabalho desenvolvido pela Igreja Universal do Reino de Deus, concluindo que “o livro trará para os presos momento para reflexão, momento para enriquecer culturalmente e, acima de tudo, para meditar e decidir seu destino”.
Para completar a cena, o diretor do Presídio declarou que o livro lançado será a pedra fundamental da biblioteca que está sendo criada na unidade: “Pela primeira vez, um livro chegou ao nosso centro de detenção.”
Sinal amarelo: atenção.
Tudo isto me lembra de quando Pedro Bial afirmou que “o Big Brother Brasil é tão cultura quanto Guimarães Rosa”.
E, aqui, precisamente é onde surge o problema. Sem adentrar na discussão relativa à liberdade religiosa ou, ainda, no mérito acerca da qualidade estética da literatura neopentecostal, pois não tenho dúvidas a respeito da ficcionalidade da narrativa, parece preocupante o rumo que as coisas vêm assumindo.
Explico.
Há alguns meses, conforme noticiado pela ConJur, a Portaria Conjunta 276 do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça — firmada com o ministro corregedor-geral da Justiça Federal — instituiu o “Projeto Remição pela Leitura”, que se encontra em funcionamento no sistema penitenciário federal e já se estendeu a alguns estados, como é o caso do Paraná.
Tal iniciativa, que surgiu na Penitenciária Federal de Catanduvas, em 2009, permite que os apenados tenham a redução da pena em face das obras que leem. Segundo a referida Portaria, os detentos têm 30 dias para realizar a leitura de um livro e fazer um resumo escrito daquilo que aprenderam. Os trabalhos são avaliados por uma comissão específica, composta de agentes, técnicos e servidores penitenciários (e não de professores), sob a orientação de um pedagogo. Imaginem seu trabalho: corrigir as resenhas, verificar os plágios, fiscalizar o comércio de resenhas (os problemas certamente são idênticos àqueles ocorridos nas escolas e universidades), etc. Se os detentos atingirem a nota 6,0, recebem quatro dias de remição da pena. Há, todavia, um limite anual: 12 livros e, portanto, 48 dias de remição. Mais do que isto não vale a pena ler... Talvez a leitura em excesso também seja perigosa à manutenção do status quo.
Parêntese: fico pensando por que será tão difícil fazer os alunos do curso de Direito lerem? Será que estamos indicando os livros errados? Talvez tivéssemos que parar, definitivamente, de exigir a leitura de Ihering, Kelsen, Bobbio, Hart, Dworkin e substituí-los por autores ditos “mais fáceis”. Talvez as editoras pudessem pensar numa seção de “autoajuda jurídica”, algo específico para os bacharéis em Direito, cujos títulos pudessem ser comercializadas juntamente com resumos, encartes e coleções mais vendidos, que ocupam a maioria da gôndolas nas principais livrarias.
Fechando parêntese e voltando ao tema, me pergunto quais são os livros que o Projeto Remição pela Leitura admite para fins de redução do apenamento imposto? O novo best-seller de Edir Macedo se enquadraria no projeto? Penso que sim, embora discorde. Isto porque, examinando a Portaria, verifica-se que o artigo 3º refere-se à “obra literária, clássica, científica ou filosófica, dentre outras”. Tudo em nome da “cultura” propalada por Pedro Bial...
Ora, neste contexto, parece não haver qualquer óbice à remição pela leitura de biografias e tampouco de livros de autoajuda. Certamente, haverá quem afirme que estes sejam os mais indicados — e, sobretudo, eficazes — para a ressocialização dos apenados. Por outro lado, não encontrei qualquer orientação relativa aos títulos disponibilizados nas casas prisionais. Até onde irá o moralismo pedagógico-normativo do Ministério da Justiça? Qual a “proposta pedagógica” desta política penitenciária que autoriza os diretores dos presídios a designarem comissões e selecionarem o que interessa que os apenados leiam para terem a pena remida? Será que existem títulos censurados? Por exemplo, condenados pela prática de crimes sexuais poderiam ler as obras de Marques de Sade? Além disso, não há qualquer notícia de que o projeto tenha sido estendido às unidades de internação em que ocorrem as medidas sócio-educativas... Vejam onde nos metemos! Começamos pelos adultos. E, como se isto não bastasse, privilegiamos aqueles que fazem parte de uma elite, ou seja, os detentos que praticaram crimes federais.
Confesso que, num primeiro momento, o projeto me pareceu progressista e, sobretudo, simpático. Contudo, refletindo sobre os problemas que envolve, surgiram questões que me parecem intransponíveis. Nunca tive dúvidas acerca do potencial humanizador da literatura. Em um importante ensaio — intitulado O direito à literatura —, ao abordar este tema, Antonio Cândido esclarece:“Entendo aqui por humanização [...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”
Isto não ocorre, entretanto, com a leitura de um livro qualquer — como é o caso da biografia de Edir Macedo — embora os aplausos das autoridades presentes durante o lançamento. Muito embora acredite que, de algum modo, a literatura liberte, me parece que a política penitenciária subjacente ao projeto carece dos pressupostos teóricos necessários à sua implementação, banalizando ainda mais a execução penal no Brasil.
Novo parêntese: segundo o parágrafo único do artigo 3º, para a real efetivação do projeto, “é necessário que haja nos acervos das Bibliotecas das Penitenciárias Federais, no mínimo, 20 (vinte) exemplares de cada obra a serem trabalhadas no projeto”. Pretensioso não? Quantas bibliotecas universitárias (sejam públicas ou privadas) atendem este requisito atualmente? Melhor não responder e fechar o parêntese...
Talvez o próximo passo possa ser o Estado (que se diz laico) formalizar um convênio com a Igreja Universal do Reino de Deus e/ou afins. De um lado, o primeiro intensificaria a realização de cultos neopentecostais nas unidades prisionais; de outro, uma parcela das doações recebidas com as novas adesões de fiéis poderia ser destinada ao reaparelhamento do sistema penitenciário.
Fica a dica para o primeiro oportunista de plantão. Afinal, sempre há quem sustente que “os fins justificam os meios” e, além disso, que não temos nada a perder, certo?
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.
Revista Consultor Jurídico, 27 de outubro de 2012
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