Importante abordar este tema acerca da necessidade de inscrição na OAB, em face do risco de se anular milhões de processos judiciais em que há defensores públicos atuando sem inscrição na OAB. De início, destaca-se que o defensor público não defende o interesse público, nem atua como fiscal, logo defende o interesse particular do cliente e não no interesse da Defensoria ou da sociedade. Ou seja, não é defensor do interesse público, mas sim do cliente, e esta é uma garantia do cidadão de que a criatura não irá voltar-se contra o criador e processá-lo.
Esta explicação faz-se necessária, pois algumas pesquisas têm demonstrado que a atuação confusa da Defensoria tem gerado prejuízo ao atendimento jurídico, pois pessoas a acreditarem que são uma espécie de servidores com poder de Polícia com dificuldade para saber se atuam na acusação ou na defesa da vítima ou do réu.
A priori, a criação da Defensoria Pública foi para que as pessoas tivessem acesso ao serviço de advocacia e assistência jurídica e em razão disto foi alçada ao texto constitucional em 1988. Outrossim, é fato notório que a assistência jurídica é exercida pela advocacia. Caso contrário, qualquer servidor público poderia ser defensor, bastando que tivesse formalmente a expertise jurídica.
Alegar que tem autonomia e não pode ser submetida à OAB é argumento retórico. Afinal, mesmo tendo autonomia os entes estatais estão submetidos ao controle do Tribunal de Contas. Além disso, o controle feito pela da OAB difere da fiscalização feita pela Corregedoria da Defensoria, uma vez que a OAB não pode decretar a perda do cargo do defensor, mas apenas multar, suspender ou cassar a sua inscrição na OAB, o que não impede que o defensor atue na área administrativa da Defensoria. Na verdade, o ideal seria que a OAB tivesse assento nos órgãos de administração da Defensoria, como se fosse uma espécie de Ouvidoria e podendo até votar questões referentes ao serviço de assistência jurídica.
Por outro lado, é paradoxal afirmar que se exige a aprovação no Exame da OAB para ser nomeado no cargo de defensor público, mas não se exige para o exercício. Seria o mesmo que dizer que se exige o diploma de médico para ser aprovado no concurso de médico perito do INSS, mas não se exigir mais para o exercício da função, afinal o INSS como autarquia tem autonomia e também tem Corregedoria.
Alguns alegam que a "autonomia da Defensoria" é maior que a "autonomia de autarquia". Ora, mas é maior que a autonomia do Judiciário? Então,os médicos, engenheiros, psicólogos, assistentes sociais que foram aprovados no concurso do Judiciário não precisam mais de estar inscritos nos Conselhos Profissionais ? Uma vez que o tribunal tem autonomia e então cabe apenas à sua Corregedoria apurar eventuais irregularidades.
Por oportuno, transcreve-se o seguinte teor da Lei Complementar 80/94 (Lei da Defensoria):
Art. 26. O candidato, no momento da inscrição, deve possuir registro na Ordem dos Advogados do Brasil, ressalvada a situação dos proibidos de obtê-la, e comprovar, no mínimo, dois anos de prática forense, devendo indicar sua opção por uma das unidades da federação onde houver vaga.
Art. 71. O candidato, no momento da inscrição, deve possuir registro na Ordem dos Advogados do Brasil, ressalvada a situação dos proibidos de obtê-la, e comprovar, no mínimo, dois anos de prática forense.
§ 1º Considera-se como prática forense o exercício profissional de consultoria, assessoria, o cumprimento de estágio nas Defensorias Públicas e o desempenho de cargo, emprego ou função de nível superior, de atividades eminentemente jurídicas.
§ 2º Os candidatos proibidos de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil comprovarão o registro até a posse no cargo de Defensor Público.
Os textos acima referem-se expressamente ao cargo de defensor público federal e defensor público do Distrito Federal. Mas são aplicáveis aos estados conforme artigo 97 da Lei Orgânica da Defensoria, o qual prevê que as normas gerais aplicam-se aos defensores públicos dos estados.
Os Conselhos Profissionais acabam exercendo um controle externo de natureza social e atuam com abordagem diversa ao focarem em preceitos éticos, logo é uma abordagem diferente das corregedorias.
A rigor, a confusão atual decorre de uma interpretação equivocada do artigo 3º da LC 80/94:
§ 6º A capacidade postulatória do Defensor Público decorre exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo público. (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
Este artigo da lei não significa que o defensor público não é advogado, nem que esteja dispensado da inscrição na OAB, pois se a inscrição na OAB é pré-requisito para nomeação e posse, então permanece como requisito essencial para a continuidade do trabalho. Ou seja, o defensor público somente pode atuar como representante processual e não como substituto processual. Se formos fazer uma interpretação como quer alguns setores da Defensoria, então nem mesmo depende da existência de um cliente, pois teriam capacidade postulatória ampla e irrestrita, com superpoderes de ora atuar como representante processual ou como substituto processual, ou seja, não precisariam de clientes.
A advocacia exerce um importante trabalho jurídico de proteção de direitos fundamentais, mas vinculado aos interesses do cliente seja pessoa física ou jurídica. E isto não é um limite abusivo, mas uma garantia do cidadão. Afinal, o advogado não é Polícia, nem agente de controle social do Estado e tem o dever de decretar a prisão, se um cliente lhe contar que cometeu determinado ilícito. O cliente precisa ter esta confiança e garantia.
Na Mensagem de Veto presidencial a trecho da Lei Complementar 132/09 ficou claro que o defensor público exerce advocacia e deve estar inscrito na OAB:
MENSAGEM Nº 802, DE 7 DE OUTUBRO DE 2009.
Razões dos vetos
“O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro é condicionado à inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil. Por sua vez, a atuação da Defensoria Pública, nos termos da Constituição, ocorre mediante o exercício da atividade de advocacia. Dessa forma, ao excluir a referida inscrição dos requisitos exigidos dos candidatos participantes no concurso de ingresso na Carreira da Defensoria Pública da União, o projeto afronta a sistemática vigente, abrindo a possibilidade para que bacharéis em direito exerçam a advocacia, independentemente de aprovação na Ordem dos Advogados do Brasil, daí a necessidade de veto à alteração proposta para a redação do art. 26 da Lei Complementar no 80, de 1994 e do art. 16 do projeto de lei, cujo texto revoga o § 2o do artigo mencionado. Impõe-se, em consequência, o veto ao art. 16, a fim de se manter a vigência do § 2o do art. 26, bem como do § 2o do art. 71, em vista de sua conexão temática.”
Neste modelo pretendido com superpoderes processuais, se uma entidade procura a Defensoria, então o defensor poderia optar por atuar como representante processual (advogado) da entidade, ou então atuar em nome próprio da Defensoria e excluindo a entidade do polo processual, como no caso das Ações Civis Públicas (ACP). Ou seja, se uma entidade de bairro procura a Defensoria para ajuizar uma ACP, esta será ajuizada em nome da Defensoria ou em nome da Associação? Se um cidadão procura a Defensoria para ajuizar uma ação popular, neste caso, será uma ação em nome da Defensoria/defensor ? Ou representando o cidadão? Em suma, atua como substituto processual (em nome próprio defendendo direito alheio) ou em nome do cliente? No caso da substituição processual há empoderamento do Defensor e “desempoderamento” do cliente.
O objetivo da Constituição foi a inclusão processual da Defensoria ou do cidadão? Aparentemente, o objetivo constitucional foi o empoderamento do cidadão/cliente e não da Defensoria, como atualmente se quer, pois caso contrário pode-se inserir na lógica de Michael Foucault, no sentido de que o Estado tem como função vigiar e punir. Nesse sentido, a Defensoria poderia, em nome próprio, processar grupo de carentes que causam dano ambiental em nome do interesse público e abstrato de outros carentes invisíveis ? A resposta mais adequada é não.
Caso contrário, Defensoria, em nome do interesse público não mensurável, ajuizaria ações contra pobres, em nome próprio e de ofício.
Portanto, é importante que a defensor seja considerado como advogado, com função de assistência jurídica ligada a clientes identificáveis e comprovadamente carentes, pois caso contrário torna-se uma espécie de fiscal atuando como substituto processual e atuando de ofício e sem o limite estabelecido pelo cliente.
Isto é como se você contratasse um assistente técnico para assessorar na definição das cores e móveis de sua casa, mas este passasse a ter superpoderes e decidisse em seu lugar, e de ofício, o que é melhor, com o intuito de te proteger. Os limites entre proteger e controlar são muito tênues.
Ou seja, o defensor poderia até mesmo atuar como substituto processual nato e passar a ajuizar ações penais privadas subsidiárias da pública em nome próprio e sem autorização do cliente. Ou atuar como assistente da acusação sem autorização do cliente, ou até mesmo sem que exista efetivamente este cliente, pois justificaria com base no interesse público. E passaria a uma espécie de acusador, o que levaria à necessidade de outra Instituição fazer a defesa do réu penal, neste caso.
No caso específico da Defensoria o que é também relevante por trás deste discurso é saber se são advogados, ou não. Além da inscrição na OAB. Haja vista que alguns alegam que são advogados, mas não precisam estar inscritos na OAB. No entanto, isto não fica muito claro, pois não atuam nos limites da advocacia como representantes processuais. A pergunta que fica é: então a OAB pode abranger também as advocacias públicas como as Procuradorias da Fazenda Pública? Ademais, a advocacia de defesa do Estado também têm autonomia em muitos casos.
Mas, se o defensor público não é advogado, então como fazer com o quinto constitucional, por exemplo? Teríamos que alterar toda as leis apenas para atender a um interesse específico da Defensoria? O defensor público atua como substituto processual ou como representante processual? Defende o interesse público ou o interesse do cliente? Esta questão é extremamente relevante, pois pode voltar-se contra o cliente com base em um subjetivo interesse público, uma vez que nem mais depende de um cliente para ajuizar ação.
Oportuno transcrever o texto constitucional que trata a questão da Defensoria e Advocacia:
Art. 133 — O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão nos limites da lei.
Art. 134 — A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do Art. 5º, LXXIV.
§ 1º — Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.
Constata-se que Defensoria e advocacia estão na mesma Seção no texto constitucional. Além disso, fica claro na Constituição que é vedado ao defensor público exercer a advocacia fora das suas atribuições constitucionais, logo exerce advocacia dentro de suas atribuições constitucionais. Lado outro, a função da Defensoria é prestar orientação jurídica, assistência jurídica e defesa, dos quecomprovarem, que estão necessitados economicamente.
Portanto, se prevalecer esta dicotomia em que advogado é para rico e que defensor público é para pobre, estaríamos adotando um modelo maniqueísta e elitista que nem se poderia usar a via dos advogados dativos e nem mesmo o advogado atender ao pobre, pois não pode, em tese, cobrar abaixo da tabela de honorários mínimos fixados pela OAB.
Para reforçar o papel da OAB cita-se o trecho da Lei 8.906-94:
Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
§ 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional.
O argumento de que o Estatuto da Advocacia é lei ordinária e a Lei da Defensoria é Lei Complementar não merece prosperar, pois a norma da Defensoria não revogou expressamente a exigência constante da Lei da Advocacia e nem poderia fazê-lo, pois inconstitucional.
Sobre a importância do papel dos advogados e a necessidade dos mesmos para que se realize a efetiva prestação jurisdicional fomentada pelo Estado o “8º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes” adotou os princípios básicos relativos à Função dos Advogados, entre os quais destacamos o seguinte:
4. Os Governos e as associações profissionais de advogados devem promover programas para informar o público sobre os seus direitos e deveres estipulados na lei e sobre o importante papel que os advogados desempenham na proteção das liberdades fundamentais. Deve prestar-se especial atenção à assistência das pessoas pobres e de outras pessoas menos favorecidas para que elas possam fazer valer os seus direitos e, se necessário, recorrer à assistência de advogados.
Se o defensor público não é advogado, então teríamos processos judiciais sem advogado, logo violaria a regra constitucional que o advogado é indispensável à administração da Justiça.
No modelo pretendido por setores da Defensoria o pobre que já deixou de ser protagonista, nem mesmo coadjuvante seria mais, pois passaria a ser invisível. A continuar assim, em breve estaremos no mesmo nível do Direito muçulmano, o qual permite com base no “interesse público” que um terceiro, em nome próprio, ajuíze ação de divórcio de um casal, sem pedido destes.
Se o defensor público não for advogado, não poderia fazer parte dos Organismos Internacionais como defensor, pois os organismos internacionais entendem que deve ser advogado. Paradoxalmente setores da Defensoria alegam que não precisam estar inscritos na OAB, mas não abandonam os seus cargos naquela Entidade.
Recentemente tivemos a inusitada situação, uma defensora que integra uma OAB Seccional e deu parecer no sentido de que um defensor público não poderia ser julgado pela OAB, pois não é advogado. Ora, mas então o que ela está fazendo na Seccional da OAB como conselheira? Em suma, é advogado quando quer? Inscrevendo na OAB? Mas, quando não interessa, então não é obrigado a inscrever na OAB?
Outro ponto que reforça o fato de que o defensor público é advogado, por simetria e analogia, é o próprio artigo 138 da Lei Orgânica da Defensoria que faz referência ao cargo de Advogado de Ofício:
Art. 138. Os atuais cargos de Advogado de Ofício e de Advogado de Ofício Substituto da Justiça Militar e de Advogado de Ofício da Procuradoria Especial da Marinha, cujos ocupantes tenham sido aprovados em concurso público de provas ou de provas e títulos e optem pela carreira, são transformados em cargos de Defensor Público da União.
Temos situação similar em um caso de defensor público estadual que foi nomeado para atuar em Tribunal Internacional como advogado e está devidamente inscrito na OAB. Ora, é preciso definir esta situação rapidamente, a qual já está no STF.
A situação paradoxal é a seguinte: se o defensor público não é advogado, então podemos nomear qualquer servidor com formação jurídica para fazer a defesa nos Tribunais Internacionais, pois os mesmos não fazem restrição. Se é advogado, então tem que ser inscrito na OAB, caso contrário, teremos a figura já rechaçada pelo STF do superadvogado, que ora atua como substituto processual, com poderes até de investigação; ora atua como assistente jurídico, advogado, a critério ocasional.
Enquanto não se resolve o mais importante que são os critérios para se definir quem é o carente a ser beneficiado, e em breve teremos os muito carentes economicamente versus os “mais ou menos” carentes. E o Estado terá que ter Defensoria do Réu, Defensoria do Autor, Defensoria dos que têm renda com até 1 salário, outra Defensoria para os que têm renda entre 1 e 2 salários mínimos, Defensoria para quem tem renda até cinco salários mínimos, Defensoria para quem não pode informar a renda, todas estas Instituições com as suas estruturas próprias, autônomas, sem participação alguma dos carentes, pois estes não estão preparados para participar e nem têm a mesma competência dos seus substitutos processuais, defensores públicos, (esse argumento de incapacidade dos pobres invisíveis é usado atualmente sem nenhum questionamento).
Alguns setores da Defensoria têm confundido autonomia com soberania, e não querem se submeter a nada, nem mesmo ao cliente, o que caracteriza inversão de papéis. Oque falta neste discurso é inserir a “autonomia do cidadão/cliente”, pois este é que é a parte processual e por isto foi criado o serviço estatal de assistência jurídica, o qual não é, e nem pode ser, atividade privativa do Estado, pois caso contrário seria ente de controle social e não de assistência, o que viola os direitos humanos. O discurso não pode ser apenas de autonomia da Instituição, pois não é poder de Estado, e ente de assistência, ou seja, o poder é do cliente, o qual precisa ter o direito real até mesmo de trocar o defensor por um advogado particular, logo a ação não pode ser em nome da Defensoria.
Por fim, ressalta-se que o defensor público exerce advocacia estatal para atender aos interesses do cliente que não consegue pagar um advogado particular, logo a inscrição na OAB é consectário lógico, não havendo óbice ao alegar que seria dúplice controle, pois além destes controles existe o penal, o do Tribunal de Contas e outros, não sendo crível que a assistência jurídica não seja realizada por advogados, ainda que estatais, e inscritos na OAB, inclusive para que a população possa entender a atribuição, sendo importante esclarecer que tem que atuar como representante processual do cliente, advogado do cliente, e não substituindo ou excluindo processualmente o cliente, o qual passaria a ser invisível.
André Luis Melo é promotor de Justiça em Minas Gerais, professor universitário e mestre em Direito.
Revista Consultor Jurídico, 25 de outubro de 2012
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