quarta-feira, 12 de maio de 2010

Artigo: Incompetência dos juizados da infância e junventude para julgamento de imputáveis

A Lei Estadual n. 9.896/93 criou os Juizados Regionais da Infância e Juventude do Estado do Rio Grande do Sul e estabeleceu, no artigo 2º, sua competência. Posteriormente, a Lei Estadual n. 12.913/2008 acrescentou o §3º ao referido dispositivo legal, determinando ao Conselho da Magistratura a possibilidade de ampliar a competência dos Juizados da Infância e Juventude no que “diretamente envolva interesse de criança ou adolescente, ou de processar e julgar os crimes tipificados nos arts. 129, 136, 213, 214, 215, 216-A, 218, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 231-A, 232, 233 e 234, todos do Código Penal Brasileiro, além dos arts. 240 e 244-A, ambos da Lei Federal n° 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente -, e, finalmente, art. 1° da Lei Federal n° 9.455, de 07 de abril de 1997”.
Diante desta previsão na legislação estadual, o Conselho da Magistratura publicou os editais números 004/2008 e 058/2008 – COMAG, atribuindo ao 1º e ao 2º Juizados da Infância e Juventude a competência para instruir e julgar os feitos criminais que tenham como vítimas crianças e adolescentes.
Tais previsões, entretanto, estão em confronto com a legislação constitucional e infraconstitucional. O artigo 22, da Constituição da República, estabelece como competência privativa da União legislar sobre direito penal e processual penal. Ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 145, atribui ao Poder Judiciário apenas a criação das varas especializadas e não a possibilidade de legislar quanto à ampliação de suas competências, principalmente em se tratando de matéria criminal. Além disso, o artigo 148, também do ECA, estabelece a competência dos Juizados para apurar atos infracionais cometidos por adolescente (inciso I do artigo 148), não abarcando, em nenhum dos seus outros incisos, os delitos cometidos por maiores contra crianças ou adolescentes.
Em julgamento de conflito de competência semelhante ao ora analisado, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão de relatoria do ministro Napoleão Maia Filho, asseverou a impossibilidade de atribuição de competência além das previstas no artigo 148, do ECA:“(...) 1. No rol da competência da Vara da Infância e da Juventude estabelecido no art. 148 do ECA não está inserido o julgamento dos crimes contra o menor previstos no Código Penal, como ocorre na hipótese em discussão, em que o crime a ser apurado é o de maus-tratos (art. 136, § 3º. do CPB). 2. Ainda que o Tribunal possa criar Vara da Infância e da Juventude, como prevê o art. 145 do ECA, não pode lhe atribuir competência fora das hipóteses definidas na referida legislação (...)”(1).
Em julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal, a luz do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, confirma a impossibilidade de Lei Estadual legislar sobre direito processual. Eis a ementa de acórdão em que foi relator o ministro Eros Grau: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 26 DA LEI COMPLEMENTAR N. 851/98 DO ESTADO DE SÃO PAULO. MATÉRIA PROCESSUAL. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. 1. À União, nos termos do disposto no artigo 22, inciso I, da Constituição do Brasil, compete privativamente legislar sobre direito processual. 2. Lei estadual que dispõe sobre atos de Juiz, direcionando sua atuação em face de situações específicas, tem natureza “processual” e não meramente procedimental. 3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente”(2).
Desta forma, inadmissível que os Poderes Judiciário e Legislativo estaduais editem normas sobre matéria penal e processual penal, atribuindo nova competência aos Juizados da Infância e Juventude. Trata-se de evidente desrespeito constitucional.
Dentre as garantias constitucionais, está a do juiz natural, prevista no artigo 5º, inciso LIII, o qual assegura que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. Ainda, no inciso XXXVII, do mesmo artigo, fica vedado juízo ou tribunal de exceção. Tais garantias asseguram a independência e a imparcialidade tanto dos juízes quanto dos tribunais. Neste sentido, a Constituição corrobora com o previsto em documentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos dos Homens (artigo X) e o Pacto San Jose da Costa Rica (artigo 8º).
É direito individual indisponível de qualquer cidadão o de ser julgado por um juiz competente e imparcial. Sendo assim, é nulo qualquer ato praticado por juiz cuja competência não esteja predeterminada em lei constitucionalmente válida.
Necessário, portanto, que se declare a inconstitucionalidade dos dispositivos legais epigrafados, já que a competência para legislar em material processual penal é exclusivamente da União. Ademais, alerta-se que a ofensa à garantia do juiz natural, diante da incompetência do Juízo, consubstancia-se em nulidade absoluta, podendo ser aventada a qualquer tempo.

NOTAS
(1) (STJ, CC 94767/MS, rel. ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/06/2008, DJe 08/08/2008).
(2) ADI 2257, relator(a): min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 06/04/2005, DJ 26-08-2005.


Rafael Braude Canterji
Advogado criminalista.
Professor de Direito Penal da PUCRS.
Coordenador Regional do IBCCRIM.
Conselheiro Seccional da OAB/RS.

Roberta Werlang Coelho
Advogada criminalista.
Mestranda em Ciências Criminais.

CANTERJI, Rafael Braude; COELHO, Roberta Werlang. Incompetência dos juizados da infância e juventude para julgamentos de imputáveis. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 209, p. 15-16, abr., 2010.
 

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