segunda-feira, 24 de maio de 2010

Artigo: A influência da mídia no julgamento do caso Nardoni


No início da madrugada do último dia 27 de março foi proferida a sentença condenatória de dois réus nos autos do processo n. 274/08 pelo 2º Tribunal do Júri da Comarca da Capital (Fórum Regional de Santana) pela prática de homicídio triplamente qualificado contra criança, que era filha de um deles(1).

A adequação da sentença prolatada e as provas carreadas aos autos não está em questão. A despeito da soberania inerente às decisões tomadas pelo Conselho de Sentença, sabemos que é possível impugná-las consoante prescreve a lei processual, com base nas provas constantes nos autos, por exemplo. De igual modo, a dosimetria da pena parece ter sido aplicada com rigor técnico e sem exagero que, numa primeira mirada, salte aos olhos. Isso consubstancia material próprio à defesa técnica do casal condenado que, pelas notícias que foram veiculadas logo depois do julgamento, interpôs o competente recurso contra a sentença exarada.

Neste breve estudo, buscamos explicitar se e como a mídia pode ter influenciado o magistrado quando decidiu pela manutenção da prisão do casal na sentença condenatória. Levantaremos algumas hipóteses que objetivam demonstrar se houve ou não algum grau de influência. Se sim, pode ser concretamente verificável? Como não estudamos uma ciência exata, a mera plausibilidade ou verossimilhança dos argumentos aqui sustentados já se prestam ao objetivo pretendido: refletir sobre o papel dos órgãos da mídia na cobertura de processos e julgamentos criminais de grande repercussão(2).

Na sentença prolatada pelo Juízo de primeiro grau, o último tópico de sua fundamentação dedicou-se à manutenção da prisão preventiva que anteriormente fora determinada, devendo os réus aguardar detidos o seu trânsito em julgado. A manutenção da custódia cautelar deu-se com base no permissivo facultado pelo art. 312 do Código de Processo Penal, referente à “garantia da ordem pública”. Trata-se, em realidade, de verdadeiro conceito vago e indeterminado, cuja oscilação jurisprudencial dos Tribunais Superiores quanto ao seu alcance tem determinado o que está incluído e o que está excluído de tal noção.

O julgador lembrou que quando prolatou a sentença de pronúncia, manteve a prisão processual dos acusados como medida necessária à garantia da ordem pública, objetivando acautelar a credibilidade da Justiça em razão da “repercussão que o delito causou no meio social”, dentre outras razões.

Com arrimo na jurisprudência dos Tribunais Superiores e do próprio Tribunal de Justiça ao qual é vinculado, o magistrado buscou demonstrar que tal “repercussão” se refletiria na revolta que fora gerada à população não apenas da capital paulista, “mas de todo o país, que envolveu diversas manifestações coletivas, como fartamente divulgado pela mídia, além de ter exigido um enorme esquema de segurança e contenção por parte da Polícia Militar do Estado de São Paulo na frente das dependências deste Fórum Regional de Santana durante estes cinco dias de realização do presente julgamento, tamanho o número de populares e profissionais de imprensa que para cá acorreram, daí porque a manutenção de suas custódias cautelares se mostra necessária para a preservação da credibilidade e da respeitabilidade do Poder Judiciário, as quais ficariam extremamente abaladas caso, agora, quando já existe decisão formal condenando os acusados pela prática deste crime, conceder-lhes o benefício de liberdade provisória, uma vez que permaneceram encarcerados durante toda a fase de instrução”.

Este parece ser o cerne do fundamento que manteve a prisão dos acusados, motivo pelo qual merece destaque. De fato, a repercussão refletida na revolta gerada à população de todo o País pode ser considerada como decorrência da exagerada cobertura pelos órgãos da mídia sobre o caso que, durante meses, monopolizou de modo (quase) absoluto o noticiário falado e escrito do País(3).

Quanto ao envolvimento de manifestações coletivas, que foram amplamente divulgadas pelos órgãos da mídia, serve para mostrar como a mídia é capaz de uniformizar a convergência de opiniões e compreensões através da divulgação massiva de uma única versão (aqui, a acusatória) sobre o evento noticiado.

A exigência de enorme esquema de segurança e contenção por parte da Polícia Militar na frente das dependências do fórum, contudo, é mera decorrência (ou consequência) da causa que lhe é anterior, caracterizada pelas manifestações coletivas que, por sua vez, foram geradas pela exibição exagerada e massiva do evento. De certo modo, é como uma profecia autorrealizável: a divulgação massiva da versão acusatória (“oficial”) leva à uniformização da compreensão em torno do evento e, em última análise, conduz às manifestações de populares que, por sua vez, carecem de acompanhamento policial em razão da enorme carga emocional envolvida no caso.

Outro argumento que parece trazer uma profecia que se autorrealiza é a seguinte: por terem permanecido durante toda a fase de instrução encarcerados, então com a prolação da sentença condenatória, não haveria qualquer razão suficiente para soltá-los.

Tais argumentos conduzem o raciocínio a verdadeiros ciclos viciosos que circulam em torno do próprio eixo. Nesta situação, por que os réus responderam toda a fase de instrução encarcerados, quando se fazia necessária a sua prisão cautelar para assegurar a aplicação da lei penal, por exemplo, agora que foram condenados com muito mais razão devem permanecer presos para garantir a ordem pública (leia-se, o clamor popular). Naquela situação, a divulgação massiva leva à uniformização de opiniões em torno da única versão noticiada (oficial ou acusatória) que conduz às manifestações de populares, as quais precisam de acompanhamento policial e, por sua vez, são notícias “novas”.

Sob a ótica puramente empresarial dos órgãos da mídia, o caso é excelente (porque lucrativo, como empresas privadas que são, submetidas ao regime de concessão): as notícias se retroalimentam e se reinventam a cada novidade.

Quando essa lógica de funcionamento própria do empreendimento empresarial da mídia (de usar, reciclar e abusar) proporciona entretenimento e informação parece que ela cumpre sua elevadíssima função social. Todavia, quando ela assume protagonismo em assuntos que não lhe dizem respeito, justamente porque seus profissionais não estão preparados para falar, divulgar e informar a respeito, então pode criar confusões e até mesmo gerar desinformação.

Pela leitura do trecho destacado da sentença que decidiu pela manutenção da prisão preventiva, a (im)pressão que se tem é de que a existência de tantos populares e profissionais da imprensa acompanhando o julgamento do lado de fora do fórum poderia levar à eventual frustração da “opinião pública” (ou publicada) caso aos réus, depois de condenados pela sentença (o que ocorreu muito antes pela imprensa), fosse concedida a liberdade provisória.

A liberdade de imprensa e de informação é um direito fundamental do atual Estado Democrático de Direito que vivemos. A um só tempo, serve como prerrogativa dos profissionais do jornalismo, para que possam laborar com desassombro no seu papel de (bem) informar o público e, de outro lado, serve como garantia para que o público tenha direito a ser bem informado para que possa formar adequadamente a sua opinião nessa sociedade livre e plural que é a mistura brasileira.

Esse parece ser o verdadeiro papel reservado para a mídia na Democracia que vivemos nesse século XXI: bem informar ao público. Contudo, quando assistimos, como no caso em foco, os órgãos da mídia pressionando e rondando a notícia como verdadeiros abutres atrás de carniça, estamos convencidos de que caminhamos para trás alguns séculos e voltamos aos linchamentos em praça pública, quando populares gritavam e enxovalhavam os réus que nada podiam diante daquela massa que só queria ver seu sangue. É isso o que queremos?

NOTAS

(1) Dentre tantos sítios eletrônicos que divulgaram prontamente a versão integral da sentença condenatória, consultar: <http://oglobo.globo.com/cidades/sp/mat/2010/03/27/caso-isabella-confira-na-integra-sentenca-que-condenou-casal-nardoni-916183672.asp>. Acesso em: 02.04.2010.

(2) Em verdade, nutrimos verdadeiro entusiasmo acadêmico por esse tema: ANDRADE, Fábio Martins deMídi@ e Poder JudiciárioA influên cia dos órgãos da mídia no processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. 445 p. Além disso, esse caso em particular já nos levou a escrever breve estudo aplicando algumas conclusões do livro ao caso concreto:ANDRADE, Fábio Martins deA influência dos órgãos da mídia no processo penal: o caso NardoniRevista dos Tribunais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, ano 98, vol. 889, Nov. 2009. p. 480-505.

(3) Para que se tenha uma ideia da dimensão do exagero que tal cobertura trouxe, colocamos na ferramenta de busca do Google

Fábio Martins de Andrade
Doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Ciências Penais pela Universidade Candido Mendes, Pós-graduado no Curso de Direito Penal
Econômico e Europeu do Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e o IBCCRIM (Turma de 2004/2005). Advogado em São Paulo.


ANDRADE, Fábio Martins de. A influência da mídia no julgamento do Caso Nardoni. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 210, p. 08-09, mai., 2010.

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