sexta-feira, 21 de maio de 2010

O DIREITO POR QUEM O FAZ – Ainda sobre a continuidade delitiva dos delitos de estupro e de atentado violento ao pudor

Supremo Tribunal Federal
2ª Turma
HC 86.110
j. 02.03.2010
Relatório
“Trata-se de habeas corpus impetrado pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo em favor de XXXXX, contra decisão proferida no RE nº 718.121 do Superior Tribunal de Justiça. O paciente foi condenado pelos delitos previstos nos artigos 213 e 214, na forma do art. 69, todos do Código Penal, à pena de 12 (doze) anos de reclusão, em regime integral fechado (fl. 40). Houve apelação da defesa, e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reconheceu a continuidade delitiva, reduzindo a pena para sete anos de reclusão em regime inicial fechado (fl. 47). Dessa decisão recorreu o Ministério Público, e o STJ deu-lhe provimento ao recurso para repelir a continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor e restabelecer o regime integralmente fechado para o cumprimento da pena…”.
“Alega, a defesa, a existência de duplo constrangimento ilegal, diante do não-reconhecimento da continuidade entre os delitos e da vedação à progressão de regime. Requer seja restabelecida a decisão do Tribunal de Justiça, reconhecendo-se a continuidade delitiva e o cumprimento da pena em regime inicialmente fechado. Concedi parcialmente a liminar, para reconhecer o direito à progressão de regime (fls. 55-56). A Procuradoria-Geral da República opinou pela concessão parcial do writ, apenas para afastar o óbice à progressão de regime (fls. 84-90)”.
Voto
“1. O Plenário desta Corte, no julgamento do HC nº 86.238 (Rel. p/ac. Min. Ricardo Lewandowski, j. 18/06/2009) assentou, contra meu voto, que se não admite reconhecimento de crime continuado entre os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor, ainda que presentes os requisitos conceptuais que se devem extrair do art. 71 do Código Penal …”. “Entendo, contudo, que o debate adquiriu nova relevância com o advento da Lei nº 12.015/2009, que, entre outras alterações no Título VI do Código Penal, lhe unificou as redações dos antigos arts. 213 e 214 em um tipo único, verbis: ‘Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção ‘carnal’ ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos’”.
“Conquanto mantenha o nomen juris, a redação do novotipo penal ‘descreve e estabelece uma única ação ou conduta do sujeito ativo, ainda que mediante uma pluralidade de movimentos. Há somente a conduta do agente de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça’. Ademais, ‘é de vital importância observar que o constrangimento é dirigido a que a vítima pratique ou deixe que com ela se pratique atos libidinosos, sejam eles de qualquer espécie, seja através de conjunção carnal, seja através de coito anal, seja através de felação etc., já que tais modalidades nada mais são do que espécies do gênero ato libidinoso, e, tanto isso é verdade, que o tipo penal em questão é explícito ao mencionar conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a confirmar, pois, tal afirmação’” (1). Como se vê, a alteração legislativa repercute decisivamente no debate. Ora, se o impedimento para reconhecer a continuidade delitiva entre o estupro e o atentado violento ao pudor residia tão-somente no fato de não serem crimes da mesma espécie, entendidos, pela ilustrada maioria, como fatos descritos pelo mesmo tipo penal, tal óbice foi removido pela edição da nova lei”.
“Pode-se extrair, daí, que o novo tipo penal vai além da mera junção dos tipos anteriores, na medida em que integra todas as espécies de atos libidinosos praticados num mesmo contexto fático, sob mesmas circunstâncias e contra a mesma vítima. Isso significa que a nova lei torna possível o reconhecimento da continuidade delitiva entre os antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados nas mesmas circunstâncias, sem prejuízo do entendimento da Corte de reduzir conceitualmente a figura à identidade de espécie dos crimes. Nesse sentido, entende Matheus Silveira Pupo, em recentíssimo artigo: ‘[A]glutinando aqueles dois crimes em um único dispositivo, certamente se terá como repercussão prática a mudança no entendimento quase pacífico no âmbito dos Tribunais Superiores, não reconhecendo a existência de crime continuado entre o antigo estupro e o atentado violento ao pudor, afora as hipóteses de praeludia coiti, sob o argumento de que não seriam crimes da mesma espécie, ainda que praticados nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução. Afinal, doravante, o óbice intransponível apontado por esta corrente - tratar-se de crimes antevistos em tipos diferentes - deixou de existir, pois as duas condutas, antes autônomas, estão agora tratadas na mesma figura penal. Por ser assim, quando perpetrados nas mesmas condições de locus, tempus e modus operandi, nos termos do artigo 71 do Código Penal, deverá ser reconhecida a existência de crime continuado, quanto às condutas que antes recebiam o nomen iuris de estupro e de atentado violento ao pudor, hoje contempladas no artigo 213, caput, da Lei Penal.’” (2).
“2. Está claro, pois, que a Lei nº 12.015/09 constitui lei penal mais benéfica, donde aplicar-se retroativamente, nos termos do art. 5º, XL, da Constituição Federal, e art. 2º, parágrafo único, do Código Penal. E, como visto, é incontroverso que os fatos imputados ao ora paciente foram cometidos nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e local e contra a mesma vítima, razão por que, aliás, a continuidade já havia sido reconhecida pelo Tribunal local. Afastada, pois, a base legal da decisão ora impugnada, deve restabelecida a decisão do Tribunal de Justiça”.
“3. Quanto ao regime de cumprimento de pena também lhe assiste razão ao paciente. Como já asseverei em sede liminar, o Plenário, no julgamento do HC nº 82.959 (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 01/09/2006), declarou ‘a inconstitucionalidade do § 1o do artigo 2o da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990’, o que afasta, para efeito de progressão de regime, o obstáculo representado por essa norma tida por inválida. E, como os fatos ocorreram antes da entrada em vigor da Lei nº 11.464/07, incide a regra do art. 112 da Lei de Execução Penal (HC nº 91.631, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 09.11.2007; HC nº 92.410, Rel. Min. Menezes Direito, DJ 01.02.2008; HC nº 89.699, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 09/05/2008), sem prejuízo da apreciação, pelo magistrado competente, nos termos do art. 66, inc. III, alínea b, da LEP, dos demais requisitos de admissibilidade de progressão de regime prisional”.
“4. Diante do exposto, concedo a ordem para restabelecer o acórdão proferido pelo Tribunal local, que fixou a pena do paciente em 7 (sete) anos de reclusão, em regime inicialmente fechado”.

NOTAS
(1) PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. O crime de estupro e a Lei nº. 12.015/09: um debate desenfocado. Boletim IBCCRIM, ano 17, n. 203. São Paulo: IBCCRIM, out/2009, pp. 02-03, grifos no original.
(2) O novo artigo 213 do Código Penal, uma verdadeira novatio legis in mellius. In: Boletim IBCCRIM, ano 17, n. 205. São Paulo: IBCCRIM, dez/2009, pp. 13-14.

Cezar Peluso
Relator

Boletim IBCCRIM nº 209 - Abril / 2010.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog