Tem-se a impressão de que a superlotação das penitenciárias seja um problema para o Estado. Em verdade, tal circunstância consiste no máximo em um flagrante e reiterado descompasso entre os Poderes do Estado. Isto porque, enquanto o Poder Legislativo produz, de forma compulsiva, cada vez mais novos tipos penais e o Poder Judiciário, por seu turno, é pressionado a produzir em escala industrial, mais e mais, sentenças condenatórias, com penas cada vez mais exasperadas, o Poder Executivo é cercado por um conjunto de fatores que desestimulam a construção de novos estabelecimento penais.
Quando o tema é superlotação, não se pode continuar a acreditar na fábula da harmonia da tripartição de poderes, até porque, como toda história de ninar, tal fábula encobre a moral da história: a interferência nociva de um quarto poder em meio à conturbada relação mantida entre os demais, qual seja, a influência dos meios de comunicação de massa. Enquanto a mídia coloca em xeque a credibilidade do Poder Judiciário e põe em dúvida a necessidade de manter e expandir o Poder Legislativo, esta dissemina, em regra, a ideia de que investir na população carcerária e em novos estabelecimentos é dilapidar o patrimônio público. E é neste cenário tendencioso que germinam ideias liberais, como a privatização de estabelecimentos penais, tudo de sorte a reduzir a participação do Estado em custos que parecem ser, cada vez mais, “desnecessários”. Eis o maravilhoso mundo novo que o neoliberalismo a todos reserva.
O certo é que não há uma só causa para o problema da superlotação. Afinal problemas, quando são problemas, não possuem uma única razão, original e fundadora, que os justificam e explicam. Somente nas histórias em quadrinhos é que existem soluções mágicas para problemas espetaculares. Contudo, convém lembrar que o Direito Penal não possui uma “varinha de condão” capaz de resolver, de uma hora para outra, o problema da superlotação. Até porque nada leva crer que a superlotação seja de fato um problema para o sistema penal, pelo contrário, antes se mostra uma excelente ferramenta a serviço da docilização do corpo do condenado. A superlotação faz parte da história de sucesso do cárcere e por meio dela são cultivadas as sementes da microfísica do poder..
É em meio a este cenário, que os agentes do Estado (agentes carcerários) criam dificuldades (o contato entre visitantes e condenados) para vender facilidades (compra de gêneros alimentícios, dentre outros itens) e, com o passar dos anos, vai se constituindo uma sociedade paralela com regras e valores próprios. Uma sociedade que seleciona seus líderes e os condecora. E enquanto esta sociedade se edifica pela reincidência, os habitantes do mundo de Alice continuam a acreditar na fábula da ressocialização. Mas, como é possível ressocializar alguém, o retirando da sociedade? Como se vê, não é apenas nos sonhos de Freud que os absurdos acontecem. Eles, os absurdos, são mais frequentes do que se imagina. Bem-vindo ao mundo real!
Quando a pena se tornou uma tortura (Lei n. 9.455/97, art. 1º, § 1º), o Estado perdeu a legitimidade para continuar a aplicá-la. O que distingue a violência da pena da violência do delito é o esforço de racionalidade do Estado para que esta não se confunda com vingança. Mas quando o Estado se torna o carrasco que impõe ao corpo do condenado o flagelo da penitência em nome de uma suposta indulgência, o Estado acaba sepultando qualquer discurso de justificação do castigo. Mas, em verdade, a pena não tem qualquer justificação, essa não passa de um ato de irracionalidade, por meio do qual o homem deixa aflorar a sua agressividade. Isto porque, se pena é retribuição, nos moldes da lei de talião, então, a sua melhor denominação é vingança.
Por outro lado, se pena é prevenção, a sua melhor designação é exemplificação (coisificação). Mas se pena não é nem uma coisa nem outra, mas, sim, ressocialização, então, o seu melhor nome é privação da livre manifestação. Quem deu ao Estado o poder de privar o indivíduo da possibilidade de escolha por uma vida delinquente? Se há livre arbítrio, e esta é outra discussão, para onde ele foi, quando se impõe a todo indivíduo um programa de ressocialização? Como se vê, a pena não é algo racional, pois se o fosse, a guerra também o seria. Tanto na guerra quanto na pena o homem manifesta a sua autenticidade animal. Hobbes estava certo quando afirmou que o “homem é o lobo do homem”.
Mas, por favor, não entendam mal estas palavras. Não é a pena que é irracional, mas o homem que é animal. Não é a pena que não tem justificativa, mas é o homem que cria, por meio da linguagem, a sua própria armadilha. Desde Nietzsche, já se sabe que a linguagem é um catálogo de metáforas extintas. Eis, então, o que é a razão: uma criança levada que joga dados com a linguagem e incita a imaginação. O que poderia ser, então, a pena? Uma ferramenta em nome da segurança jurídica? E a superlotação, o que seria? Uma distorção do sistema, uma anomalia? As aparências enganam! Afinal, para toda culpa é preciso uma desculpa. E como se sabe, a culpa sempre é do outro. Com a pena e a superlotação, não seria diferente. Não é do Estado a culpa, mas, sim, do delinquente. O cárcere, então, torna-se um depósito de gente. E, neste contexto, a superlotação não é um problema, mas, sim, estratégia inteligente. Uma estratégia do sistema de poder que age silenciosamente. Novos estabelecimentos penais não representam a solução para o problema da superlotação, mas apenas uma medida paliativa, uma estratégia de administração.
Eis, então, a grande questão: não seria a superlotação parte de um audacioso plano de vigia, controle e dominação? Difunde-se o terror, incrementa-se a marginalização, deixa-se agravar o “problema” da superlotação e abandona-se, à própria sorte, o cidadão. E tudo é por acaso e sem a menor intenção. Será mesmo? Será que não interessa alguém, ou alguns, esse “clima” de insegurança e de apreensão? Não haveria setores da sociedade que se beneficiariam com essa ideologia do terror e de culto à vitimização? Toda boa história tem uma final surpreendente, e com a história do cárcere não é diferente. Quase sempre o melhor esconderijo é aquele que está mais aparente, pois o inimigo não mora ao lado, mas bem de frente. Nem sempre é possível distinguir a polícia do ladrão, o mocinho do vilão. O homem, e como tudo que dele deriva, é complexo demais, para uma simples solução.
Mas, a título de proposta, o que se propõe é descriminalização de muitos delitos, redução do tempo de pena quanto a outros, alteração da iniciativa da ação penal de outros tantos, tudo de sorte a diminuir o rol de candidatos ao cárcere. Todavia, como há uma imensa diferença entre a lei penal e o sistema penal, tais medidas não se mostram suficientes, até porque as estatísticas criminais atuais já revelam que a imensa maioria da população carcerária decorre de determinados tipos penais preferenciais. Mais leis penais não implicam necessariamente em uma maior diversidade quanto às condenações criminais. Mais estabelecimentos penais não implicam em mais segurança (Jeferry).
Ademais, o conflito no qual consiste o crime, não é resolvido por meio do processo nem através da pena, estes antes se mostram como estratégias estatais de administração do conflito real e de solução do conflito artificial selecionado pelo sistema. Isto porque a sociedade não é um ente superior aos indivíduos que a constitui, na qual o conflito é visto como uma célula cancerosa. Se o homem é um ser em conflito consigo mesmo, forçoso é, então, reconhecer que a sociedade não é um nirvana, mas, sim, uma arena de disputas. Mudam-se os animais, mantém-se a selva.
Aliás, tudo leva a crer que, mesmo com a adoção de tais medidas legais, não haveria uma redução da população carcerária, vez que os agentes do Estado são os maiores responsáveis pela proliferação do crime. Seja porque isso valoriza determinadas carreiras públicas, seja porque são eles que selecionam a clientela penal a partir de um estereotipo bem demarcado. É preciso ter sempre um grande “marginal” a prender, afinal para um dia chegar a um cargo de destaque na Administração Pública é preciso ter feito o “dever de casa”, isto é, é preciso um bom troféu para exibir diante das câmeras. Em suma, as penitenciárias são como supermercados da autopromoção, engaiolam-se alguns indigentes em troca de alguns minutos na televisão.
Vê-se, assim, que enquanto o sistema penal operar não é possível eliminar o problema da superpopulação carcerária, mas, no máximo, contê-lo. Se nas fábricas de produzir sentença as máquinas nunca param, no cárcere sempre haverá espaço para mais hóspedes. Afinal, o que seria de todos nós se não existisse o Estado, não é mesmo? Eis o milagre da multiplicação! Não temas irmão, pois os homens de boa vontade, os homens do Estado manterão todos a salvo dos pecadores que trazem péssimos exemplos. Há um lugar no reino dos céus para ti. Mas para que ele seja assegurado é preciso que tu ajudes, com sua omissão, o Estado na tarefa de amontoar e torturar os hereges. Não se deve ascender a fogueira para queimá-los. É preciso fazer com que eles experimentem a dor, de forma lenta e constante, pois a morte é para os heróis e os mártires, e a tortura é para os cães. Os cães que ladram e de vez enquanto mordem, mas que não passam de cães. Deus tenha piedade de nós!
Quando o tema é superlotação, não se pode continuar a acreditar na fábula da harmonia da tripartição de poderes, até porque, como toda história de ninar, tal fábula encobre a moral da história: a interferência nociva de um quarto poder em meio à conturbada relação mantida entre os demais, qual seja, a influência dos meios de comunicação de massa. Enquanto a mídia coloca em xeque a credibilidade do Poder Judiciário e põe em dúvida a necessidade de manter e expandir o Poder Legislativo, esta dissemina, em regra, a ideia de que investir na população carcerária e em novos estabelecimentos é dilapidar o patrimônio público. E é neste cenário tendencioso que germinam ideias liberais, como a privatização de estabelecimentos penais, tudo de sorte a reduzir a participação do Estado em custos que parecem ser, cada vez mais, “desnecessários”. Eis o maravilhoso mundo novo que o neoliberalismo a todos reserva.
O certo é que não há uma só causa para o problema da superlotação. Afinal problemas, quando são problemas, não possuem uma única razão, original e fundadora, que os justificam e explicam. Somente nas histórias em quadrinhos é que existem soluções mágicas para problemas espetaculares. Contudo, convém lembrar que o Direito Penal não possui uma “varinha de condão” capaz de resolver, de uma hora para outra, o problema da superlotação. Até porque nada leva crer que a superlotação seja de fato um problema para o sistema penal, pelo contrário, antes se mostra uma excelente ferramenta a serviço da docilização do corpo do condenado. A superlotação faz parte da história de sucesso do cárcere e por meio dela são cultivadas as sementes da microfísica do poder..
É em meio a este cenário, que os agentes do Estado (agentes carcerários) criam dificuldades (o contato entre visitantes e condenados) para vender facilidades (compra de gêneros alimentícios, dentre outros itens) e, com o passar dos anos, vai se constituindo uma sociedade paralela com regras e valores próprios. Uma sociedade que seleciona seus líderes e os condecora. E enquanto esta sociedade se edifica pela reincidência, os habitantes do mundo de Alice continuam a acreditar na fábula da ressocialização. Mas, como é possível ressocializar alguém, o retirando da sociedade? Como se vê, não é apenas nos sonhos de Freud que os absurdos acontecem. Eles, os absurdos, são mais frequentes do que se imagina. Bem-vindo ao mundo real!
Quando a pena se tornou uma tortura (Lei n. 9.455/97, art. 1º, § 1º), o Estado perdeu a legitimidade para continuar a aplicá-la. O que distingue a violência da pena da violência do delito é o esforço de racionalidade do Estado para que esta não se confunda com vingança. Mas quando o Estado se torna o carrasco que impõe ao corpo do condenado o flagelo da penitência em nome de uma suposta indulgência, o Estado acaba sepultando qualquer discurso de justificação do castigo. Mas, em verdade, a pena não tem qualquer justificação, essa não passa de um ato de irracionalidade, por meio do qual o homem deixa aflorar a sua agressividade. Isto porque, se pena é retribuição, nos moldes da lei de talião, então, a sua melhor denominação é vingança.
Por outro lado, se pena é prevenção, a sua melhor designação é exemplificação (coisificação). Mas se pena não é nem uma coisa nem outra, mas, sim, ressocialização, então, o seu melhor nome é privação da livre manifestação. Quem deu ao Estado o poder de privar o indivíduo da possibilidade de escolha por uma vida delinquente? Se há livre arbítrio, e esta é outra discussão, para onde ele foi, quando se impõe a todo indivíduo um programa de ressocialização? Como se vê, a pena não é algo racional, pois se o fosse, a guerra também o seria. Tanto na guerra quanto na pena o homem manifesta a sua autenticidade animal. Hobbes estava certo quando afirmou que o “homem é o lobo do homem”.
Mas, por favor, não entendam mal estas palavras. Não é a pena que é irracional, mas o homem que é animal. Não é a pena que não tem justificativa, mas é o homem que cria, por meio da linguagem, a sua própria armadilha. Desde Nietzsche, já se sabe que a linguagem é um catálogo de metáforas extintas. Eis, então, o que é a razão: uma criança levada que joga dados com a linguagem e incita a imaginação. O que poderia ser, então, a pena? Uma ferramenta em nome da segurança jurídica? E a superlotação, o que seria? Uma distorção do sistema, uma anomalia? As aparências enganam! Afinal, para toda culpa é preciso uma desculpa. E como se sabe, a culpa sempre é do outro. Com a pena e a superlotação, não seria diferente. Não é do Estado a culpa, mas, sim, do delinquente. O cárcere, então, torna-se um depósito de gente. E, neste contexto, a superlotação não é um problema, mas, sim, estratégia inteligente. Uma estratégia do sistema de poder que age silenciosamente. Novos estabelecimentos penais não representam a solução para o problema da superlotação, mas apenas uma medida paliativa, uma estratégia de administração.
Eis, então, a grande questão: não seria a superlotação parte de um audacioso plano de vigia, controle e dominação? Difunde-se o terror, incrementa-se a marginalização, deixa-se agravar o “problema” da superlotação e abandona-se, à própria sorte, o cidadão. E tudo é por acaso e sem a menor intenção. Será mesmo? Será que não interessa alguém, ou alguns, esse “clima” de insegurança e de apreensão? Não haveria setores da sociedade que se beneficiariam com essa ideologia do terror e de culto à vitimização? Toda boa história tem uma final surpreendente, e com a história do cárcere não é diferente. Quase sempre o melhor esconderijo é aquele que está mais aparente, pois o inimigo não mora ao lado, mas bem de frente. Nem sempre é possível distinguir a polícia do ladrão, o mocinho do vilão. O homem, e como tudo que dele deriva, é complexo demais, para uma simples solução.
Mas, a título de proposta, o que se propõe é descriminalização de muitos delitos, redução do tempo de pena quanto a outros, alteração da iniciativa da ação penal de outros tantos, tudo de sorte a diminuir o rol de candidatos ao cárcere. Todavia, como há uma imensa diferença entre a lei penal e o sistema penal, tais medidas não se mostram suficientes, até porque as estatísticas criminais atuais já revelam que a imensa maioria da população carcerária decorre de determinados tipos penais preferenciais. Mais leis penais não implicam necessariamente em uma maior diversidade quanto às condenações criminais. Mais estabelecimentos penais não implicam em mais segurança (Jeferry).
Ademais, o conflito no qual consiste o crime, não é resolvido por meio do processo nem através da pena, estes antes se mostram como estratégias estatais de administração do conflito real e de solução do conflito artificial selecionado pelo sistema. Isto porque a sociedade não é um ente superior aos indivíduos que a constitui, na qual o conflito é visto como uma célula cancerosa. Se o homem é um ser em conflito consigo mesmo, forçoso é, então, reconhecer que a sociedade não é um nirvana, mas, sim, uma arena de disputas. Mudam-se os animais, mantém-se a selva.
Aliás, tudo leva a crer que, mesmo com a adoção de tais medidas legais, não haveria uma redução da população carcerária, vez que os agentes do Estado são os maiores responsáveis pela proliferação do crime. Seja porque isso valoriza determinadas carreiras públicas, seja porque são eles que selecionam a clientela penal a partir de um estereotipo bem demarcado. É preciso ter sempre um grande “marginal” a prender, afinal para um dia chegar a um cargo de destaque na Administração Pública é preciso ter feito o “dever de casa”, isto é, é preciso um bom troféu para exibir diante das câmeras. Em suma, as penitenciárias são como supermercados da autopromoção, engaiolam-se alguns indigentes em troca de alguns minutos na televisão.
Vê-se, assim, que enquanto o sistema penal operar não é possível eliminar o problema da superpopulação carcerária, mas, no máximo, contê-lo. Se nas fábricas de produzir sentença as máquinas nunca param, no cárcere sempre haverá espaço para mais hóspedes. Afinal, o que seria de todos nós se não existisse o Estado, não é mesmo? Eis o milagre da multiplicação! Não temas irmão, pois os homens de boa vontade, os homens do Estado manterão todos a salvo dos pecadores que trazem péssimos exemplos. Há um lugar no reino dos céus para ti. Mas para que ele seja assegurado é preciso que tu ajudes, com sua omissão, o Estado na tarefa de amontoar e torturar os hereges. Não se deve ascender a fogueira para queimá-los. É preciso fazer com que eles experimentem a dor, de forma lenta e constante, pois a morte é para os heróis e os mártires, e a tortura é para os cães. Os cães que ladram e de vez enquanto mordem, mas que não passam de cães. Deus tenha piedade de nós!
Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo
Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia – UFBA; pós-graduado em Ciências Criminais pela Universidade Federal da Bahia – UFBA; professor de Direito Penal e Processo Penal da Universidade Católica do Salvador – UCSAL; professor de Direito Penal da Universidade Salvador – UNIFACS; analista previdenciário do INSS-BA junto à Procuradoria Federal Especializada.
Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia – UFBA; pós-graduado em Ciências Criminais pela Universidade Federal da Bahia – UFBA; professor de Direito Penal e Processo Penal da Universidade Católica do Salvador – UCSAL; professor de Direito Penal da Universidade Salvador – UNIFACS; analista previdenciário do INSS-BA junto à Procuradoria Federal Especializada.
AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. Superlotação do cárcere: um problema para o Estado? In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 210, p. 14-15, mai., 2010.
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