segunda-feira, 24 de maio de 2010

Artigo: A fragilidade do reconhecimento pessoal como única prova para condenação penal


O reconhecimento pessoal tem sido uma das provas mais aceitas e utilizadas no processo penal, tendo força para derrubar todo um conjunto probatório produzido.

Diante de tamanha importância é que o reconhecimento pessoal seja talvez um dos “mais solenes atos processuais realizados numa persecução criminal” – ou, ao menos, deveria ser -, estando hoje disciplinado nos artigos 226 e seguintes do Código de Processo Penal.

Há, ainda, previsão para o caso de reconhecimento “sigiloso”, caso se receie que o reconhecedor por intimidação ou outra influência não diga a verdade no momento do reconhecimento, providenciando-se para que a pessoa a ser reconhecida não veja o seu reconhecedor (art. 226, III, do CPP).

Por fim, assinala o Código Processual Penal que, nos casos em que várias forem as pessoas a efetuarem o reconhecimento, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas (art. 228 do CPP). Sem dúvida este é o mais importante e o mais desrespeitado de todos os comandos legais referentes às formalidades do reconhecimento pessoal.

Isto se afirma porque é comum o contato anterior entre os reconhecedores, ainda que fora dos domínios territoriais do Poder Judiciário, onde estes conversam especificamente a respeito da pessoa a ser reconhecida, o que macula por completo o ato de reconhecimento posteriormente realizado em juízo.

Em se tratando de crime com repercussão na mídia, essa mácula é ainda maior, pois que a apresentação pela imprensa induz ao reconhecimento, mesmo quando inviável. Não são raros os casos em que o reconhecedor no primeiro momento não podia sequer descrever o acusado, e após a exposição na mídia o reconhece como sendo o autor do crime.
Devemos asseverar que o reconhecimento pessoal muito mais que um “ato processual” é um “complexo ato psicobiológico”, chamado de processo mnemônico, o qual se dá na seguinte ordem: AQUISIÇÃO à RETENÇÃO à RECORDAÇÃO.

Vários são os fatores responsáveis pela deterioração da lembrança, sendo que os dois principais são: 1) o intervalo até a retenção (a diminuição da precisão da lembrança se deve ao esquecimento normal, o qual é mais rápido após a aquisição e antes da retenção, tornando-se mais lento em seguida) e 2) as informações obtidas após o ocorrido (durante o intervalo entre a aquisição e a retenção, ou mesmo após a retenção, a testemunha está exposta a novas informações sobre o acontecimento presenciado, por exemplo, por comentários posteriores de outras testemunhas, os quais criarão problemas para distinguir entre a informação original e a incorporada posteriormente)(1).

Quanto ao primeiro fator de deterioração da lembrança não há muito a que discorrer, aplicando-se tão somente uma regra aritmética para a qual a relação entre o tempo e a lembrança são inversamente proporcionais, ou seja, quanto maior o tempo transcorrido entre o fato e o momento da recuperação desta informação na memória, menor e pior será a lembrança.

No tocante à contaminação da memória por informações externas, devemos afirmar que freqüentemente a informação posterior ao evento, recebida pela testemunha ou pela vítima, lhes é proporcionada durante a tomada da declaração pelo sujeito (policial) que está incumbido da investigação e, ainda que inconscientemente, ele conduz o depoimento na direção que melhor condizer com seu preconceito sobre o deslinde dos fatos. Assim, as perguntas que obedeçam a determinados interesses parciais, baseadas em premissas falsas e em expectativas do entrevistador, podem distorcer, seriamente, a lembrança dos fatos, por uma testemunha.

De fato, não há uma preocupação acentuada dos profissionais encarregados da investigação preliminar (inquérito policial, por exemplo) e da instrução processual acerca da psicologia do testemunho e do reconhecimento. De nada adianta uma boa aquisição e retenção da memória se houver falha justamente no terceiro momento, isto é, na recuperação da lembrança.

Adentrando mais profundamente ao segundo tipo de vício da memória (informações externas após o ocorrido), veremos os estudos acerca das distorções da memória, realizados por Elizabeth Loftus(2), iniciados ainda na década de setenta. Esses apresentaram resultados impressionantes e até mesmo assustadores, pois concluíram que a lembrança pode ser altamente manipulada a partir de informações errôneas sobre acontecimentos nunca vividos, e também pode haver modificação dos fatos vivenciados. Loftus realizou centenas de experiências, com mais de vinte mil pessoas, a fim de constatar como a exposição a informações não verdadeiras distorce a memória. Averiguou, através de trabalho de campo, ser a desinformação capaz de modificar as lembranças de maneira previsível e até mesmo espetacular, nas situações mais cotidianas: “a informação errônea pode se imiscuir em nossas lembranças quando falamos com outras pessoas, quando somos interrogados de maneira evocativa, ou quando uma reportagem nos mostra um evento que nós próprios vivemos”.

Para o processo, a possibilidade de uma testemunha ou vítima fornecer um relato não verdadeiro, a partir da falsificação da recordação, compromete, integralmente, a confiabilidade do testemunho ou do reconhecimento, gerando um imenso prejuízo ao acusado.

Não se pode afastar a tendência daquele que toma os depoimentos em explorar unicamente a hipótese acusatória, induzindo os questionamentos, fruto do modelo inquisitorial, bem como o despreparo dos profissionais para lidar com essa situação.

Mais preocupante é que, na maioria das vezes, diante da ausência de outros elementos probatórios, o julgador emite um juízo de culpabilidade com base unicamente na palavra de reconhecedores ou testemunhas cuja memória foi absolutamente viciada, prova esta que deveria ser considerada, consequentemente, imprestável para todos os fins, principalmente, para a condenação.

O presente artigo não pretende pôr em descrédito essa prova, mas sim demonstrar que, dependendo do contexto, ela não é suficiente, por si só, para afastar a presunção de inocência.

A ausência de resquícios materiais, os quais poderiam desmentir a falsificação da lembrança, gera a problemática de desvendar o que de fato ocorreu, diante da “contaminação” do contexto no qual a prova foi produzida. Esse equívoco poderá ocorrer pelo induzimento realizado por parentes, por amigos, por policiais ou julgadores, ao formularem os seus questionamentos, bem como pela mídia, devido à notoriedade do caso.

Assim, pela peculiaridade do reconhecimento pessoal, que é um ato complexo – ato processual + ato psicobiológico (processo mnemônico) –, é imprescindível que não só os requisitos legais sejam estritamente obedecidos (artigos 226 e seguintes do CPP), mas também os requisitos subjetivos, tais como o curto espaço de tempo entre a ocorrência dos fatos e a inquirição; além da não contaminação da memória por informações externas e indutivas, dessa forma se garantirá que a memória externada pelas testemunhas e ou reconhecedores espelhem exatamente a realidade, homenageando-se precipuamente o dogma da “verdade real”.

Desrespeitados quaisquer desses requisitos, o único caminho é a decretação da ilegalidade e da imprestabilidade da referida prova, desentranhando-a, inclusive, dos autos, pois sua manutenção no processo, em condições inadequadas de produção, poderá levar a um desfecho completamente afastado da justiça e da própria verdade dos fatos.

NOTAS
(1) Vid. GIACOMOLLINereu José e GESUCristina Carla di – As Falsas Memórias na Reconstrução dos Fatos pelas Testemunhas no Processo Penal - Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF, nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.
(2) Elizabeth F. Loftus é uma psicóloga americana e especialista em memória humana. Ela realizou uma extensa pesquisa sobre o efeito da desinformação e da natureza das memórias falsas. Loftus foi reconhecida em todo o mundo por seu trabalho, recebendo inúmeros prêmios e títulos honoríficos. Em 2002, Loftus foi 58ª em uma lista dos 100 mais influentes pesquisadores em psicologia no século 20 e, a melhor classificação mulher na lista.


Alexandre de Sá Domingues 
Advogado criminalista, especialista em Direito Penal pela ESMP, professor universitário, associado do IBCCRIM e do IDDD

Rodrigo de Souza Rezende
Advogado criminalista



DOMINGUES, Alexandre de Sá. REZENDE, Rodrigo de Souza. A fragilidade do reconhecimento pessoal como única prova para a condenação penal.In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 210, p. 11-12, mai., 2010.


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