Quando em jogo está a mudança pela lei as dificuldades são imensas, mesmo se ela é fruto de uma necessidade indiscutível.
A resistência é explicável e em geral coloca a todos na posição de escravos do passado, em face do conforto que o saber acumulado gera. Ela indica, por outro lado, quem é quem, porque os resistentes vêm à luz pela palavra e precisam fazer ver suas posições. Assim deve ser se se está em uma democracia; e eles devem ser respeitados tanto quanto denunciados e combatidos porque travam ou retardam o progresso.
Isso apareceu agora quando em pauta está a reforma global do Código de Processo Penal.
A par da crítica necessária (sempre produtiva porque feita com o fim de transformar para melhor), há sempre aquelas destruidoras, deslocadas ou infundadas que apontam, com frequência, para três tipos: de gente que viu e entendeu, mas não quer sair do seu lugar seja lá por que for; de gente que não viu, mas não gostou, e se dá o direito de falar para expressar, pelo sintoma, outra cena; e de gente que não viu, mas ouviu dizer e, em não entendendo nada ou quase nada, formula juízos apressados nos quais ganha relevo um imaginário impiedoso com qualquer mudança.
A Comissão de Juristas criada no âmbito do Senado Federal e que preparou o anteprojeto de CPP (hoje Projeto n. 156/2009 – recém aprovado na CCJ daquela casa legislativa) desde o primeiro instante deixou claro a todos que se iria fazer uma adaptação do Código de Processo Penal à Constituição da República, a qual já se espera há mais de duas décadas.
Qualquer discussão, assim, para ser honesta e levada a sério deve começar pelas matrizes constitucionais. Mas os reacionários não o fazem e preferem partir do lugar-comum, ligado aos seus interesses ou às suas verdades, por evidente insustentáveis.
O que querem, no fundo, é manter o status quo, tudo como está, no caso o próprio sistema produtor da falta de democracia processual penal que vivemos e padecemos. O resultado é conhecido: as prisões estão cheias de pobres e vazias de ricos quando, pela Constituição da República e valendo princípios e regras elementares como isonomia, culpabilidade, devido processo legal e outros, deveriam só ter culpados, sejam pobres ou ricos. Tem-se, porém, em face do sistema processual adotado e gente que luta por ele, uma vil “opção preferencial pelos pobres” e, assim, faz-se tremer os pilares da democracia.
A consequência primeira da constitucionalização da legislação proposta, como não poderia deixar de ser, foi a mudança de sistema: de inquisitório (atual) para acusatório. Por este, cada um deverá ocupar seu lugar constitucionalmente demarcado e o juiz não mais fará o papel da acusação buscando provas contra os acusados, para poder manter a sua imparcialidade (equidistância dos pedidos das partes) até a decisão final de acertamento do caso penal. Tal papel, como se sabe, é da acusação e caberá ao Ministério Público, hoje preparado para tanto.
Disso decorrem, no Projeto n. 156/09, muitas propostas novas, mas nenhuma pretende manter a confusão das funções, de modo a permitir que os juízes possam ser, de direito e de fato, garantidores da ordem posta e, por ela, dos cidadãos. Reside aí, sem dúvida, o lugar mais nobre da sua função.
Diferente disso é a atividade complementar a ser exercida pelo juiz: se se arrola uma testemunha o objetivo é o esclarecimento de algo e, portanto, tem-se um destinatário primeiro. Se o escopo não se atinge com a intervenção da acusação e da defesa, não faz sentido o rigor do sistema acusatório puro e a proibição de que o magistrado intervenha naquela direção. A dúvida que interessa e deve ser sanada, por excelência, é a dele; e a lógica determina que ele atue, indagando, no sentido de se esclarecer. Ele não é, pois, um passivo – como ingenuamente têm dito alguns –, mas não se lhe dá a possibilidade primeira de decidir antes e depois sair à cata da prova para justificar sua decisão. No mesmo sentido, a criação do juiz das garantias possibilitará que dois façam, no âmbito das suas competências obviamente, o trabalho agora reservado a um só (deve aumentar o número de juízes, o que é uma necessidade que se não discute mais e isso ficará para a inteligência da Organização Judiciária), mas, mais importante, o juiz do processo poderá não se contaminar pelas decisões cautelares, algo comum nos dias atuais e não porque eles queiram (salvo as exceções de sempre), mas porque são humanos e, portanto, qualquer um que esteja naquela situação fará o mesmo se não tiver muito domínio de si para sublimar.
O processo penal tende a se tornar mais célere e se pode chegar a quem hoje não se chega porque o sistema conspira contra.
No final da contas, quem tem defendido o sistema atual age em favor dessa gente intocável que dizem querer pegar, embora tenham sempre demonstrado sua incapacidade, como se tivessem sido cooptados, consciente ou inconscientemente. Assim, perseguidores e perseguidos, de um certo modo, ocupam o mesmo lugar; é como se o senhor habitasse no escravo. Como Jano, o deus romano de duas faces, têm uma pretensão comum, mas paradoxalmente não é a passagem de um âmbito ao outro e sim a manutenção do status quo. E assim é porque são o resultado de 800 anos de sistema inquisitório. Depois de tanto tempo, enfim, era quase inevitável que a cultura produzisse justiceiros e criminosos dissimulados atrás de colarinhos brancos, jalecos azuis e outros, nos espaços de poder mais variados.
Em conjunto, têm a mesma equivocada sensação: de que não são alcançados pela lei; legibus solutio, como diziam os romanos.
A referida sensação, de intangibilidade, marcada por uma razão com presunção de não comportar furos – portanto, totalitária –, aponta quase sempre para a paranoia ou quadros mentais paranoicos, como mostrou Franco Cordero de forma primorosa. Por óbvio, o que desapareceu neles, em geral, é a diferença ou, melhor dizendo, o respeito pela diferença. Sem ele, cada um acaba fazendo o que quer; cada um acaba dizendo o que quiser.
Mas quem faz o que quer ou diz o que quiser (sem se dar conta do limite existente ou, em se dando, ignorando-o) pode ser tudo, menos democrático. Gente assim não cabe em um regime constitucional como o brasileiro. Eis por que é preciso ter cautela e cuidado com eles.
Não sendo imperator, muito menos augusto como Otávio, o gênio romano que conseguiu concentrar todos os poderes em suas mãos, o lugar de legibus solutio segue sendo, para todos, uma mera sensação.
A resistência é explicável e em geral coloca a todos na posição de escravos do passado, em face do conforto que o saber acumulado gera. Ela indica, por outro lado, quem é quem, porque os resistentes vêm à luz pela palavra e precisam fazer ver suas posições. Assim deve ser se se está em uma democracia; e eles devem ser respeitados tanto quanto denunciados e combatidos porque travam ou retardam o progresso.
Isso apareceu agora quando em pauta está a reforma global do Código de Processo Penal.
A par da crítica necessária (sempre produtiva porque feita com o fim de transformar para melhor), há sempre aquelas destruidoras, deslocadas ou infundadas que apontam, com frequência, para três tipos: de gente que viu e entendeu, mas não quer sair do seu lugar seja lá por que for; de gente que não viu, mas não gostou, e se dá o direito de falar para expressar, pelo sintoma, outra cena; e de gente que não viu, mas ouviu dizer e, em não entendendo nada ou quase nada, formula juízos apressados nos quais ganha relevo um imaginário impiedoso com qualquer mudança.
A Comissão de Juristas criada no âmbito do Senado Federal e que preparou o anteprojeto de CPP (hoje Projeto n. 156/2009 – recém aprovado na CCJ daquela casa legislativa) desde o primeiro instante deixou claro a todos que se iria fazer uma adaptação do Código de Processo Penal à Constituição da República, a qual já se espera há mais de duas décadas.
Qualquer discussão, assim, para ser honesta e levada a sério deve começar pelas matrizes constitucionais. Mas os reacionários não o fazem e preferem partir do lugar-comum, ligado aos seus interesses ou às suas verdades, por evidente insustentáveis.
O que querem, no fundo, é manter o status quo, tudo como está, no caso o próprio sistema produtor da falta de democracia processual penal que vivemos e padecemos. O resultado é conhecido: as prisões estão cheias de pobres e vazias de ricos quando, pela Constituição da República e valendo princípios e regras elementares como isonomia, culpabilidade, devido processo legal e outros, deveriam só ter culpados, sejam pobres ou ricos. Tem-se, porém, em face do sistema processual adotado e gente que luta por ele, uma vil “opção preferencial pelos pobres” e, assim, faz-se tremer os pilares da democracia.
A consequência primeira da constitucionalização da legislação proposta, como não poderia deixar de ser, foi a mudança de sistema: de inquisitório (atual) para acusatório. Por este, cada um deverá ocupar seu lugar constitucionalmente demarcado e o juiz não mais fará o papel da acusação buscando provas contra os acusados, para poder manter a sua imparcialidade (equidistância dos pedidos das partes) até a decisão final de acertamento do caso penal. Tal papel, como se sabe, é da acusação e caberá ao Ministério Público, hoje preparado para tanto.
Disso decorrem, no Projeto n. 156/09, muitas propostas novas, mas nenhuma pretende manter a confusão das funções, de modo a permitir que os juízes possam ser, de direito e de fato, garantidores da ordem posta e, por ela, dos cidadãos. Reside aí, sem dúvida, o lugar mais nobre da sua função.
Diferente disso é a atividade complementar a ser exercida pelo juiz: se se arrola uma testemunha o objetivo é o esclarecimento de algo e, portanto, tem-se um destinatário primeiro. Se o escopo não se atinge com a intervenção da acusação e da defesa, não faz sentido o rigor do sistema acusatório puro e a proibição de que o magistrado intervenha naquela direção. A dúvida que interessa e deve ser sanada, por excelência, é a dele; e a lógica determina que ele atue, indagando, no sentido de se esclarecer. Ele não é, pois, um passivo – como ingenuamente têm dito alguns –, mas não se lhe dá a possibilidade primeira de decidir antes e depois sair à cata da prova para justificar sua decisão. No mesmo sentido, a criação do juiz das garantias possibilitará que dois façam, no âmbito das suas competências obviamente, o trabalho agora reservado a um só (deve aumentar o número de juízes, o que é uma necessidade que se não discute mais e isso ficará para a inteligência da Organização Judiciária), mas, mais importante, o juiz do processo poderá não se contaminar pelas decisões cautelares, algo comum nos dias atuais e não porque eles queiram (salvo as exceções de sempre), mas porque são humanos e, portanto, qualquer um que esteja naquela situação fará o mesmo se não tiver muito domínio de si para sublimar.
O processo penal tende a se tornar mais célere e se pode chegar a quem hoje não se chega porque o sistema conspira contra.
No final da contas, quem tem defendido o sistema atual age em favor dessa gente intocável que dizem querer pegar, embora tenham sempre demonstrado sua incapacidade, como se tivessem sido cooptados, consciente ou inconscientemente. Assim, perseguidores e perseguidos, de um certo modo, ocupam o mesmo lugar; é como se o senhor habitasse no escravo. Como Jano, o deus romano de duas faces, têm uma pretensão comum, mas paradoxalmente não é a passagem de um âmbito ao outro e sim a manutenção do status quo. E assim é porque são o resultado de 800 anos de sistema inquisitório. Depois de tanto tempo, enfim, era quase inevitável que a cultura produzisse justiceiros e criminosos dissimulados atrás de colarinhos brancos, jalecos azuis e outros, nos espaços de poder mais variados.
Em conjunto, têm a mesma equivocada sensação: de que não são alcançados pela lei; legibus solutio, como diziam os romanos.
A referida sensação, de intangibilidade, marcada por uma razão com presunção de não comportar furos – portanto, totalitária –, aponta quase sempre para a paranoia ou quadros mentais paranoicos, como mostrou Franco Cordero de forma primorosa. Por óbvio, o que desapareceu neles, em geral, é a diferença ou, melhor dizendo, o respeito pela diferença. Sem ele, cada um acaba fazendo o que quer; cada um acaba dizendo o que quiser.
Mas quem faz o que quer ou diz o que quiser (sem se dar conta do limite existente ou, em se dando, ignorando-o) pode ser tudo, menos democrático. Gente assim não cabe em um regime constitucional como o brasileiro. Eis por que é preciso ter cautela e cuidado com eles.
Não sendo imperator, muito menos augusto como Otávio, o gênio romano que conseguiu concentrar todos os poderes em suas mãos, o lugar de legibus solutio segue sendo, para todos, uma mera sensação.
* Texto especialmente escrito para Boletim do IBCCRIM, em 28.03.2010.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
Professor titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); mestre (UFPR); doutor (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do PPGD-UFPR. Advogado. Procurador do Estado do Paraná. Membro da Comissão Externa de Juristas do Senado Federal que elaborou o anteprojeto de CPP, hoje Projeto de Lei do Senado n. 156/2009.
Professor titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); mestre (UFPR); doutor (Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do PPGD-UFPR. Advogado. Procurador do Estado do Paraná. Membro da Comissão Externa de Juristas do Senado Federal que elaborou o anteprojeto de CPP, hoje Projeto de Lei do Senado n. 156/2009.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Legibus solutio: a sensação dos que são contra a reforma global do CPP. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 210, p. 02, mai., 2010.
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