domingo, 30 de maio de 2010

Artigo: Culpabilidade por vulnerabilidade


Apesar do grande respeito alcançado pelo ministro argentino Eugenio Raúl Zaffaroni entre juristas brasileiros, uma de suas teses parece ainda não ter a merecida atenção dos nossos penalistas. Trata-se da culpabilidade por vulnerabilidade, cuja abordagem parece ser muito útil ao Brasil.

Como se sabe, a culpabilidade é um dos elementos constitutivos do conceito analítico de crime segundo grande parte dos modernos penalistas. Assim, cabe à culpabilidade a função fundamental de analisar a possibilidade de imputar o injusto ao seu autor.

Em passagem esclarecedora, ensina Zaffaroni que as conceituações sobre culpabilidade podem ser divididas em duas correntes básicas, a depender dos fins da pena. Uma primeira corrente liga a culpabilidade à ideia de autodeterminação, considerando a pena como mera retribuição, sendo fortemente defendida pelos penalistas liberais do século XVIII. A segunda corrente fica por conta dos que entendem a culpabilidade como grau de “perigosidade” do agente, tendo a pena uma função de defesa social (razões de Estado), sendo marca da escola positiva italiana(1).
Uma explicação clássica da doutrina indica que, no primeiro momento, a ciência dizia caber à culpabilidade toda a parte subjetiva do crime, complementando a parte objetiva representada pelo injusto, o que possibilitava a ligação do agente ao ato criminoso. Tal era a chamada concepção psicológica de Liszt-Beling(2).

Posteriormente, coube a Frank inovar com sua concepção normativa, inserindo o conceito de reprovabilidade. Goldschimidt e Freudenthalajudariam a fortalecer e divulgar tal concepção(3).

Desde então, a culpabilidade faz referência à exigibilidade de que o autor aja de forma a não cometer a conduta ilícita criminosa, enfim, trata-se da pesquisa de evitabilidade do injusto perpetrado.

A moderna teoria dos fins das penas, encampada pelos funcionalistas, viu na culpabilidade um campo para a incidência de seus critérios de política criminal. A prevenção ganha destaque nesse contexto.

No plano de fundo, percebe-se num breve esboço das teorias mais eloquentes que o debate sempre leva em consideração a dicotomia entre culpabilidade do ato e culpabilidade do autor.
Certo é que a culpabilidade pelo caráter ou personalidade é um ponto invariavelmente considerado na doutrina hodierna, sendo sempre lembrada a “perigosidade” do agente. Compreen dendo o crime como uma expressão de um interior antissocial, essa funcionalidade aparece toda vez que se leva em consideração a vida pregressa do autor para fixar a culpabilidade.

Em suma, a avaliação de fatores internos ao agente (análise de caráter), claramente alheios ao fato criminoso em si, há muito tempo vem a servir de base para a punição penal, quase sempre de forma a agravar a situação do condenado.

Não ignorando as características do autor da conduta, surge então o conceito de culpabilidade que visa trazer para a dogmática o aspecto da vulnerabilidade. Desta feita, a culpabilidade deve ser o espaço para adequação do injusto à vulnerabilidade pessoal(4).

Apesar da extensa lista de teorias sobre a culpabilidade, indicando um número variável de condicionantes e fundamentos, inquestionável é que jamais se deu a devida relevância ao fator “seletividade”.

Fato evidenciado pela criminologia, a seletividade é marca constante de todos os sistemas criminais(5). Inegavelmente, o âmbito de autodeterminação dos sujeitos sociais está diretamente ligado à seleção feita pelo sistema punitivo(6), mas este dado tem passado despercebido pela teoria do crime.

A seleção das pessoas afetadas pelo direito penal, operada principalmente na criminalização secundária, ocorre de forma que a perseguição criminal beneficia aqueles que estão em condições de influenciar e dirigir o poder, desfavorecendo os que não estão na mesma situação.

A seletividade é também marca explicitada pela criminologia radical, registrando a obviedade do fato de que a agência judicial recai sempre de forma desigual contra pessoas de classes sócioeconômicas distintas(7).

Sendo a seletividade um dado permanente e invariável, é possível compreender que existem graus diversos de vulnerabilidade dos cidadãos ao sistema, a depender de uma série de fatores individuais e sociais. Em outras palavras, os dados da realidade definem o âmbito de autodeterminação do sujeito quando estava a cometer o ato criminalizado.

O reconhecimento dos diversos níveis de vulnerabilidade busca estabelecer um direito penal menos desigual, na medida em que se pode dar contornos dogmáticos eficazes à redução de uma falha estrutural do sistema repressivo, tentando estabelecer padrões de aplicação da lei com a maior possibilidade de isonomia e ética.

Segundo a teoria, a vulnerabilidade concreta se opera por uma associação entre o estado de vulnerabilidade e o esforço pessoal pela vulnerabilidade. Precisamente, é o esforço pessoal que deve ser considerado para efeito de regrar a culpabilidade(8).

A exemplificar, basta perceber que o esforço pessoal de uma pessoa poderosa para ser criminalizada é absurdamente maior se comparado ao esforço de um desprovido de recursos. Em outras palavras, os desprovidos de poder sempre estão mais suscetíveis a serem alcançados pelo poder punitivo.

A culpabilidade por vulnerabilidade surge como medida de redução do poder punitivo penal, servindo como nível máximo da violência aceitável. Trata-se de uma teoria para conter as sanções, devendo sempre reduzir o limite da clássica culpabilidade pelo injusto, ou no máximo coincidir com o mesmo.

Bem por isso, é preciso esclarecer, dada a visão redutora do direito penal, esta culpabilidade jamais será mais rigorosa do que a aplicação clássica, não sendo verdadeiro o receio de que os detentores do poder serão mais visados pelo direito penal.

Diante do que se expõe, a tese não busca ignorar características sociais e de caráter do autor, mas em verdade utilizá-las de forma contrasseletiva, a justificar uma menor incidência do poder repressivo sobre os menos privilegiados, ou seja, sobre aqueles que são mais visados pelo sistema.

Por tudo, entendemos que a culpabilidade por vulnerabilidade é uma das possíveis teses a serem encampadas no Brasil, em busca de um sistema penal menos elitista e menos insensível à realidade humana. Sendo certo que aqui encontramos as desigualdades sociais clássicas dos países marginais, nada mais correto que buscar nesta nova culpabilidade uma forma de amenizar a seletividade do nosso sistema punitivo.

NOTAS
(1) ZAFFARONI, Eugenio RaúlSLOKAR, AlejandroALAGIA, Alejandro.Derecho Penal: parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 651.
(2) MIR PUIG, SantiagoDerecho Penal. Parte General. 5. ed. Barcelona: Corregrafic, 1998. p. 540.
(3) REALE JÚNIOR, MiguelInstituições de direito penal. Vol. I. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 180-183.
(4) ZAFFARONI, Eugenio RaúlEm busca das penas perdidas. TraduçãoVania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 276.
(5) WACQUANT, LoïcAs prisões da miséria. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 101-105.
(6) BATISTA, NiloIntrodução crítica ao direito penal brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p. 116.
(7) SANTOS, Juarez Cirino dosA Criminologia Radical. 3. ed. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008. p. 15.
(8) ZAFFARONI, Eugenio RaúlSLOKAR, AlejandroALAGIA, Alejandro.Derecho Penal: parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 654.

Clécio José Morandi de Assis Lemos
Professor de Direito Penal; especialista em Direito Público; mestrando em Direito Penal na UERJ; coordenador adjunto do IBCCRIM para o Espírito Santo.


LEMOS, Clécio José Morandi de Assis. Culpabilidade por vulnerabilidade.In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 210, p. 16-17, mai., 2010.

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