Há uma efetiva dissonância entre a criminalização da tortura no ordenamento jurídico e político e a punição desses crimes quando são cometidos por agentes públicos. A tese é sustentada pela pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, no trabalho “O crime de tortura e a Justiça criminal: um estudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo”.
De acordo com a pesquisadora, a balança da Justiça perde o equilíbrio quando quem está no banco dos réus é um agente do Estado. Para ela, nesses casos, o Judiciário parte de fatores extra-legais em detrimento de fatores legais. A tese de Maria Gorete se apoia na análise de 50 processos judiciais, no período de cinco anos (2000-2004), que envolviam crimes de tortura.
Nos casos de acusações apresentadas contra agente do Estado, 18% dos réus foram condenados por crime de tortura, de acordo com a pesquisa. A situação não foi a mesma quando quem estava no banco dos réus era uma pessoa comum. Nesse último caso, o percentual de condenação saltou para 50%.
Em 2005, a Justiça paulista absolveu 23 funcionários também da antiga Febem acusados pelo Ministério Público de crime de tortura. A decisão foi do juiz Djalma Rubens Lofrano Filho, da 30ª Vara Criminal Central. Ele concluiu que não havia provas seguras da ocorrência do crime nem da autoria dos delitos apontados pela Promotoria.
Os fatos descritos na denúncia aconteceram na noite de 16 de junho de 2000, na Unidade Educacional UAP – Pinheiros, localizada no Cadeião de Pinheiros, na capital paulista. Depois de uma rebelião na Febem Tatuapé, os adolescentes foram transferidos para Pinheiros. No local, eles passaram por “uma revista” onde teriam sido submetidos à sessão de tortura.
Segundo a denúncia, os funcionários acusados agrediram 29 internos daquela unidade com tacos de beisebol e pedaços de paus. Após o espancamento, os acusados teriam deixado os adolescentes seminus durante toda a noite e madrugada.
“Em face do quadro, à mingua de maiores esclarecimentos sobre a autoria das agressões que vitimaram os adolescentes, acolhe-se inteiramente o pedido de absolvição de todos os réus formulado pela defesa, lembrando-se que, para que se imponha uma decisão condenatória, é imprescindível a produção de prova segura da ocorrência do fato e induvidosa da autoria, o que não ocorreu no caso ora em julgamento”, sentenciou o juiz.
Nesse caso, o juiz entendeu que as provas colhidas foram “contraditórias” e não confirmaram que ocorreram “atos de tortura ou agressões” praticados contra os internos, depois que chegaram no Cadeião de Pinheiros. “O quadro probatório descrito é extremamente frágil e insuficiente para amparar a procedência da ação penal”, afirmou.
Em outubro deste ano, a juíza Luciani Retto da Silva, do 1º Tribunal do Júri da Capital, absolveu o ex-monitor da extinta Febem, atual Fundação Casa, Arnaldo Penha dos Santos. Ele era acusado pela morte de um interno e da prática de lesão corporal e tortura contra outros adolescentes.
O julgamento presidido pela juíza envolveu o ex-coordenador da unidade da extinta Febem do chamado complexo do Tatuapé. Ele foi acusado de torturar 28 internos, depois de uma tentativa de rebelião. O caso também foi emblemático porque foi a primeira vez que um funcionário daquela instituição foi a Júri popular pela morte de um interno.
O fundamento da juíza para absolver o réu foi o da falta de provas. Ela entendeu que o conjunto de elementos trazidos ao processo contra o ex-servidor não era suficiente para impor a condenação. “Não há qualquer elemento trazido aos autos que descreva a individualização da conduta do réu em cada um dos crimes a ele imputados, fato que como sabido deve ser comprovado pela acusação”, afirmou.
“Inúmeros são os crimes imputados ao réu, mas em relação a nenhum deles houve apuração certeira sobre a participação, razão pela qual absolvo o acusado dos delitos”, completou a juíza. No mesmo caso, outros 11 funcionários da extinta Febem também foram denunciados.
Para a pesquisadora da USP, se a punição por crimes de tortura é tão irrelevante se comparada às denúncias desse tipo de crime, isso pode indicar que no momento do julgamento não se problematiza o ato criminoso contra um ser humano. Segundo ela, no Brasil, a prática da tortura está diretamente ligada aos castigos corporais como forma de correção e disciplina. E essa mentalidade ainda está presente, não apenas na sociedade, mas também no sistema de Justiça, diz.
Maria Gorete diz que quando o réu é agente público a vítima é colocada em descrédito. A situação se inverteria, quando o acusado é uma pessoa comum. Nesse caso, é a versão do réu que é colocada em descrédito.
Com informações da Agência USP
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