terça-feira, 24 de novembro de 2009

Artigo: O uso dos antecedentes criminais no tribunal do júri

A utilização dos antecedentes criminais do réu pela acusação durante a sustentação oral nos julgamentos do Tribunal do Júri é causa de nulidade absoluta, de modo que influi indevidamente na formação do convencimento dos jurados, caracterizando, tal prática, verdadeiro “direito penal do autor”( 1, 2).
É cediço que o atual ordenamento jurídico brasileiro é concebido para que o acusado seja condenado pelos fatos narrados na denúncia, que estão sob a ótica de um “restrito” processo e consequente julgamento, não por aquilo que ele é (ou, ao menos, que a acusação diz ser) ou por aquilo que fez no passado. Assim, trabalha-se com um direito penal do fato e, até mesmo por força constitucional, repele-se um possível “direito penal do autor”.
Ocorre que alguns resquícios do “direito penal do autor” ainda sobrevivem, indevidamente, no ordenamento jurídico vigente, como é o caso do artigo 59 do Código Penal, que impõe ao magistrado, na aplicação da pena base, que leve em consideração os antecedentes do agente; bem como no caso da circunstância agravante pela reincidência, contida no artigo 61, inciso I, também do Código Penal. Ressalte-se que os antecedentes e a reincidência devem ser levados em conta tão somente no momento de aplicação da pena pelo juiz togado e não para a formação do juízo de culpabilidade.
O magistrado, possuidor de elevado conhecimento técnico-jurídico, é plenamente capaz de ignorar os antecedentes do réu sem etiquetá-lo para a formação do juízo de condenação, levando-os em conta apenas no momento da aplicação da pena, entretanto, os juízes leigos – JURADOS – no mais das vezes, não têm o mesmo discernimento, pois não necessitam de formação jurídica e suas decisões sequer necessitam ser fundamentadas.
O certo é que o conhecimento dos antecedentes criminais do réu pelos jurados influencia sim a formação de seus juízos de culpabilidade, sendo que muitas vezes condenam a pessoa do acusado em face de seus antecedentes.
A condenação não é imposta porque foi comprovada a autoria de uma ação tipificada na lei, mas sim porque o réu foi cabalmente etiquetado e rotulado como criminoso em decorrência de seus antecedentes. Não se pu­ne os fatos, pune-se o ser (o ladrão, o estuprador, o traficante, ou seja lá qual for o estigma que os antecedentes fazem pesar sobre o acusado).
Algo semelhante ocorria com a utilização, como argumento de autoridade, da decisão de pronúncia, acórdãos que confirmaram a pronúncia, da decisão que mantinha o uso das algemas no réu durante o julgamento, ou ainda com o silêncio do réu em seu interrogatório, para pleitear a condenação, o que, atualmente, graças à recente reforma processual penal trazida pela Lei 11.689/08, está expressamente proibido, conforme se denota da leitura do artigo 478 e seus consectários do Código de Processo Penal.
Inobstante à salutar inovação legislativa retroilustrada, o legislador silenciou no tocante às referências aos antecedentes criminais do acusado na sustentação oral em plenário, o que permite a perpetração da injustiça nos julgamentos pelo Tribunal do Júri.
Nesse ponto, operando-se uma hermenêutica embasada na interpretação sistemática do artigo 478 do Código de Processo Penal, sobretudo à luz das garantias constitucionais e internacionais constantes dos Tratados de Direitos Humanos, resta a indagação: “é possível, respaldado em todo o sistema jurídico vigente, inclusive nos Tratados Internacionais de que o Brasil é signatário, defender a vedação da utilização dos antecedentes criminais como fundamento para a formação da opinião do Conselho de Sentença?” Entendemos que sim, pois a interpretação do artigo 478 do Código de Processo Penal deve ser extensiva, ou seja, o legislador disse menos do que deveria.
O artigo 3º do Código Processual Penal preconiza que “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”.
Ademais, no atual Estado Constitucional e Transnacional de Direito, o papel do juiz vai muito além da mera observância pacífica do direito posto, ou seja, da lei, ele deve garantir a prevalência dos princípios, sobretudo daqueles que se referem à dignidade da pessoa humana(3).
A atual Constituição erigiu como princípio fundante da República Federativa do Brasil a “dignidade da pessoa humana”, megaprincípio que tem como corolário grande parte, senão a totalidade, das garantias fundamentais trazidas no rol do artigo 5º da Magna Carta, bem como das garantias insculpidas nos inúmeros tratados internacionais de Direitos Humanos(4).
À luz do sobredito princípio, não há como aceitar a realização de um julgamento com base no “direito penal do autor”, porquanto se estaria derrubando por terra todas as conquistas da humanidade na seara dos direitos humanos, as quais visam justamente coibir as arbitrariedades e injustiças cometidas em épocas passadas.
Justamente com o fito de se evitar as barbáries outrora perpetradas, os ordenamentos jurídicos modernos trazem inúmeras normas e princípios que visam garantir um direito penal justo, sem que o mesmo invada a esfera do “ser”, impondo normas de conduta que limitam e regulam exclusivamente a esfera da “ação”.
Conclui-se, portanto, ser o “direito penal do fato” aquele que atende aos anseios sociais hodiernamente estabelecidos – à custa de muita luta e muitas vidas, não podendo sequer cogitar sobre algo diferente disto.
Corroborando tal tese o princípio da não culpabilidade, que vem consagrado no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, aduz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Nesse ponto, deve-se ressaltar, culpabilidade difere, e muito, de periculosidade!
A culpabilidade refere-se ao fato, enquanto a periculosidade refere-se ao autor(5).
Por derradeiro, devemos trazer à baila o princípio da correlação, segundo o qual a sentença deverá obrigatoriamente se vincular à acusação, não podendo, em hipótese alguma, extrapolá-la. Deve haver congruência entre a condenação e a imputação.
Em suma, seja pela vedação inexorável da aplicação do “direito penal do autor”, bem como por não ter os antecedentes criminais correlação com o fato sub judice, não se pode, de forma alguma e sob pena de nulidade absoluta, fundamentar a tese acusatória, perante o Conselho de Sentença, nos antecedentes criminais do acusado, requerendo, assim, sua condenação. São as provas constantes nos autos que deverão formar a opi­nião dos jurados e nada mais.
Logo, conclui-se que uma interpretação extensiva do artigo 478 do Código de Processo Penal nos levará a incluir no rol de vedações também os antecedentes criminais do réu, devendo, inclusive, a Folha de Antecedentes Criminais e as respectivas Certidões Criminais, quando requeridas, serem encartadas em autos apartados para utilização exclusiva pelo Juiz Presidente, tão somente, em casos de condenação, quando da aplicação da pena, não podendo delas se valer ou sequer fazer menção o órgão acusador.
NOTAS
(1) ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 7. ed. São Paulo: RT, 2008. v. 1, p. 107.
(2) BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2004, p. 93-94.
(3) Gomes, Luiz Flávio e Vigo, Rodolfo Luiz. Do Estado de direito constitucional e transnacional: riscos e precauções: (navegando pelas ondas evolutivas do Estado, do direito e da justiça). São Paulo: Premier Máxima, 2008, p. 104-105.
(4) BIANCHINI, Alice; GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: introdução e princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: RT, 2009, p. 221.
(5) Op. cit., p. 94.


Alexandre de Sá Domingues, Advogado criminalista, especialista em Direito Penal pela ESMP, professor universitário, associado do IBCCRIM e do IDDD.

 Rodrigo de Souza Rezende, Advogado criminalista.



Boletim IBCCRIM nº 204 - Novembro / 2009.

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