quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Artigo: A prisão temporária e o estupro de vulnerável: um breve estudo

A entrada em vigor da Lei n. 12.015, de 07/08/09 (DOU de 10/08/09) modificou radicalmente a estruturação típica do Título VI do Livro II (Parte Especial) do Código Penal (CP). De início, operou-se a mudança do nome do referido Título, que passou a se chamar “Dos crimes contra a dignidade sexual”. Bom começo, já que a dignidade sexual é inerente ao direito de personalidade, que, por sua vez, liga-se diretamente à dignidade da pessoa humana, princípio que o Estado Democrático de Direito brasileiro tem o dever de promover e proteger, fornecendo todos os meios ao seu alcance para que a pessoa humana se desenvolva de forma sadia e segura.
O foco deste escrito, contudo, não objetiva a exegese dos tipos criados e/ou modificados pela novel lei – como é o caso do crime de atentado violento ao pudor (antigo art. 214, CP), que, uma vez revogado, teve sua caracterização típica integralmente abarcada pelo tipo do crime de estupro (art. 213, CP). Outrossim, pretende-se abordar a modificação legislativa e seus reflexos na Lei n. 7.960/89, que trata da prisão temporária. Para tanto, a referência aos tipos penais que tratam dos crimes de estupro será essencial, pois é com base neles que este trabalho será desenvolvido.
Para iniciar, fale-se sobre a modificação produzida na Lei dos Crimes Hediondos (LCH). Segundo o art. 4º da Lei n. 12.015/09, ao art. 1º da LCH incluiu-se o inciso VI, que se refere ao crime de estupro de vulnerável (art. 217-A, CP). Assim, ficou cristalinamente clara a redação do inciso VI do art. 1º da LCH no tocante ao crime de estupro, englobando não só o estupro em suas formas qualificadas, mas também em sua forma simples, amalgamando no texto legal o entendimento reiterado do Supremo Tribunal Federal (STF) acer­ca da hediondez da forma simples do estupro(1).
Questão importante que ora se põe em análise refere-se à compreensão da prisão temporária no tocante às novas configurações dos crimes de estupro e de estupro de vulnerável. Quanto ao tipo penal de estupro (art. 213 e seus parágrafos, CP), não há maiores problemas, porque já há previsão textual expressa na alínea f do inciso III do art. 1º. da Lei n. 7.960/89. A nova redação do art. 213, CP vai alcançar, também, a conduta de atentado violento ao pudor, revogando tacitamente, assim, a norma que a regula na lei de prisão temporária (alínea g).
Análise um pouco mais detida merece o crime de estupro de vulnerável (art. 217-A, CP), pois o legislador não fez incluir no texto da Lei n. 7.960/89 qualquer referência ao novo tipo penal, gerando certa perplexidade. Como se sabe, a previsão legal é determinante para haver a decretação da prisão processual, vez que se trata de cláusula relativa à restrição de liberdade. Em outras palavras: o princípio da reserva legal deve ser observado para efeito de legitimidade do decreto prisional, não sendo cabível o uso da analogia para o uso da força constritiva do Estado.
Para se solver o problema, vale mencionar que não há diferença ontológica na descrição do preceito incriminador do crime de estupro de vulnerável, em comparação ao crime de estupro. O que se pode notar numa primeira leitura é que a vulnerabilidade da vítima refere-se: i) à sua idade (menor de 14 anos), independentemente do seu sexo; ii) à capacidade de discernimento com relação à conduta contra ela praticada, seja em razão de enfermidade, seja em razão de doença mental; iii) à incapacidade de oferecer resistência à ação criminosa, por qualquer motivo.
Em outras palavras, o art. 217-A concentra em seu texto o que era previsto no art. 224, CP, que, por sua vez, foi expressamente revogado pela Lei n. 12.015/09. Além disso, pode-se claramente perceber que o legislador houve por bem dar um tratamento mais adequado aos casos de estupro em que a vítima, por ser vulnerável, encontra maior dificuldade em resistir ao ataque do agressor. Trata-se, na verdade, de tipo penal derivado do crime de estupro, por prever proteção específica do bem jurídico.
Para reforçar o argumento, vale lembrar que o STF recentemente reafirmou o entendimento anteriormente consolidado no sentido de que “o eventual consentimento da ofendida menor de 14 anos para a conjunção carnal e mesmo sua experiência anterior não elidem a presunção de violência, para a caracterização do estupro”(2). Veja-se que é exatamente disso que o caput do art. 217-A do CP está cuidando. Desta forma, nada mais razoável compreender-se o alcance da previsão legal acerca da prisão temporária por prática de crime de estupro também para os casos de estupro de vulnerável, em razão de uma interpretação sistêmica e teleológica.
Pode-se levantar como argumento em sentido contrário que se estaria fazendo uma interpretação extensiva ou aplicação analógica (art. 3º., Código de Processo Penal) do texto da Lei de Prisão Temporária, contrariando a regra em que normas restritivas da liberdade do cidadão somente podem ser interpretadas restritivamente, já que nenhuma modificação foi realizada na referida lei em virtude da promulgação da Lei n. 12.015/09.
Reforça-se a ideia já lançada: seria irrazoável restringir-se temporariamente a liberdade em caso de crime “menos grave” (o estupro) e não o fazer em caso de crime “mais grave” (estupro de vulnerável). Desta forma, não há empecilho algum em se decretar a prisão temporária daquele que tenha supostamente praticado a infração penal de estupro de vulnerável (art. 217-A, CP), ainda mais quando se trata de crime levado à categoria de hediondo, conforme previsão no texto da LCH (art. 2º., § 4º.), que, de forma indistinta, arrola todos os crimes hediondos como suscetíveis de prisão temporária(3).
Sabemos que o tema é recente, e, como tal, não está infenso a discussões. Mas, prima facie, é o que se pode concluir. Aguardemos as manifestações da doutrina, bem como as decisões dos Tribunais Superiores.

NOTAS

(1) STF. HC 81.288/SC. 2ª. T. rel. min. Maurício Corrêa. J. em 17 dez. 2001. DJ 25 abr. 2003, p. 34.
(2) STF. HC 93.263/RS. 1ª. T. Rel. min. Carmen Lúcia. J. 19 dez. 2008. DJe 065, 11 abr. 2009.
(3) TÁVOR, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 3. ed. Salvador: Jus Podivm, 2009, p. 470.


Nestor Eduardo Araruna Santiago, Doutor em Direito Tributário, mestre e especialista em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor dos Cursos de Graduação e Mestrado em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do Curso de Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Professor da Universidade Potiguar (UnP).
Coordenador das Especializações da FESAC (OAB/CE). Assessor Jurídico da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Ceará (TJCE).



Boletim IBCCRIM nº 204 - Novembro / 2009

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