É recorrente em parcela da jurisprudência nacional o argumento de que no processo de execução criminal incide o suposto princípio do in dubio pro societate, determinando que o interesse público deva prevalecer ao direito do sentenciado à gradual liberdade de locomoção, ainda que este tenha preenchidos os requisitos legais para a sua consecução, sempre que o magistrado “incorrer em dúvida acerca da adesão do criminalmente condenado aos mecanismos estatais de reintegração à sociedade”.
Essa corrente jurisprudencial, no entanto, é omissa em explicar o fundamento jurídico que justifique a existência desse princípio no sistema penal pátrio. Esse silêncio argumentativo decorre de uma lógica natural: do nada, nada surge. Não é possível “criar” um princípio jurídico a partir de (pré) conceitos empíricos do julgador.
Com efeito, como bem se sabe o direito positivo de um país busca na metodologia dos princípios o alicerce indispensável para consubstanciar o seu arcabouço jurídico(1). Em que pese a existência de princípios implícitos em determinado sistema jurídico, forçoso reconhecer que suas admissões decorrem ontologicamente da estrutura política fundante da Constituição de determinado Estado.
No Brasil adotou-se como valor-fonte e irradiante de todo o seu sistema jurídico a dignidade da pessoa humana, fundamento desta República que impõe ao Estado a afirmação das integridades física e moral do ser humano, pressupondo, portanto, a autonomia deste em relação ao corpo social(2). Tem-se, portanto, como aviltante a este fundamento um princípio que traça como diretriz a preponderância do interesse de uma determinada coletividade ao direito de liberdade de pessoa individualmente considerada. Ademais, não é arriscado concluir que é dever do Estado brasileiro proporcionar ao condenado condições dignas(3) de retorno à sociedade livre(4).
Outrossim, a característica principal de um Estado Democrático de Direito, como sói ser o Brasil, é a prevalência dos direitos humanos, ainda que eventualmente contrarie interesse da maioria, sob pena de o regime democrático tornar-se a capa de uma indisfarçável ditadura(5).
Neste contexto, é indispensável ao devido processo penal democrático, onde o acusado/sentenciado é visto como o sujeito principal de direitos e deveres e não objeto do processo, a adoção do sistema acusatório e, em decorrência deste, do sistema da persuasão racional, os quais inquestionavelmente se aplicam ao processo de execução criminal pátrio. Corolários, ainda, deste mesmo processo democrático e da dignidade humana são os princípios da individualização da pena(6)e da culpabilidade.
Dessa forma, para que o magistrado esteja em consonância com os princípios acima aludidos, ao julgar as pretensões relativas aos institutos que reinserem os condenados gradualmente à sociedade, é inevitável que sua cognição se circunscreva apenas ao modo como cada sentenciado cumpre sua pena e não aos fatos por que foram condenados ou à quantidade de pena aplicada no juízo condenatório, sob pena de inaceitável bis in idem, tendo em vista que na sentença condenatória essas situações já foram devidamente analisadas.
Ademais, os fatos anteriores ao cumprimento da pena privativa de liberdade são fatores extra-autos no processo de execução criminal, de maneira que opiniões e pré-conceitos do julgador acerca dessas situações não se coadunam com o sistema da persuasão racional, exatamente porque a sentença não estará fundamentada no processo de integração social do condenado conforme determinado pela Lei de Execuções Penais.
Nem se discute o inequívoco risco de o sentenciado em usufruto da liberdade gradual voltar a delinquir, haja vista que a própria lei penal previu os institutos da regressão de regime de cumprimento de pena e da suspensão cautelar ou da revogação do livramento condicional, sempre que houver o descumprimento das condições impostas ou da prática de novo crime, exatamente para que essa incerteza seja relevada, pois o juízo que se faz na execução criminal será sempre de prognose e nunca de diagnose, ou seja, é um juízo de probabilidade e não de certeza, pois as provas colhidas são apenas indiciárias de que o condenado aderiu aos mecanismos estatais (precários, diga-se por oportuno) de integração à sociedade.
Como se vê, não há qualquer sustentação jurídica que consubstancie a presença do in dubio pro societate como princípio jurídico dentro de um regime democrático, em que a dignidade humana é o seu conteúdo axiológico. Aliás, como ressaltado na brilhante lição de Carmen Silvia de Moraes Barros, “dar por prevalentes os interesses sociais na execução penal é negar vigência ao princípio da individualização da pena e às garantias constitucionais e usar o preso para dar satisfação à sociedade, ignorando sua individualidade e dignidade. Dessa forma, falar que na execução penal vige o in dubio pro societate é ignorar por completo que os princípios consagrados na Constituição se estendem à execução penal”(7).
NOTAS
(1) “Em toda ordem jurídica existem valores superiores e diretrizes fundamentais que ‘costuram’ suas diferentes partes. Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo o sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorridos”. (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 143).
(2) Ensina Sarlet que “é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal” (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. 2.ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 68).
(3) “De acordo com esse modelo, a Constituição é marcada pela presença de princípios, especificamente, de normas de direitos fundamentais que, por constituírem a positivação (expressão normativa) de valores da comunidade, são caracterizadas por seu denso conteúdo normativo de caráter material ou axiológico, que tende a influenciar todo o ordenamento jurídico e vincular a atividade pública e privada” (DO VALLE, André Ruffino. Revista brasileira de direito constitucional - RBDC n. 9 – jan./jun. 2007. p. 68/69).
(4) É exatamente este o teor do artigo 1º da Lei de Execuções Penais que aduz que “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou do internado”.
(5) “Direitos do Homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Ed. Campus: 1992).
(6) “E, individualizar a pena na execução penal é ter em vista o sentenciado e seu necessário retorno ao convívio social e ao mesmo tempo, impedir que sua individualidade sirva de exemplo para alcançar fins que não lhe dizem respeito. Assim não fosse e tampouco se poderia falar em respeito à dignidade do preso” (BARROS, Carmen Silvia de Moraes. A individualização da pena na execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 151).
(7) A individualização da pena na execução penal, op. cit., p 151.
Alexandre Orsi Netto, Defensor Público do Estado de São Paulo.
Boletim IBCCRIM nº 204 - Novembro / 2009
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