terça-feira, 7 de abril de 2009

"Sequestro relâmpago" em debate

Leia abaixo texto analítico do Professor João Paulo Orsini Martinelli produzido exclusivamente para o PORTAL IBCCRIM e participe da enquete na nossa "home page":

PROJETO DE LEI QUE TIPIFICA O "SEQUESTRO RELÂMPAGO" APROVADO PELO SENADO



Foi aprovado pelo Senado, no último dia 24 de março, o projeto de Lei 54/2004, que acrescenta o § 3.º ao art. 158 do Código Penal. O projeto seguiu para análise do Presidente da República, que poderá vetá-lo ou sancioná-lo. Caso haja sanção presidencial, o artigo 158 passará a ter a seguinte redação:

Art. 158 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar fazer alguma coisa:
Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
§ 1º - Se o crime é cometido por duas ou mais pessoas, ou com emprego de arma, aumenta-se a pena de um terço até metade.
§ 2º - Aplica-se à extorsão praticada mediante violência o disposto no § 3º do artigo anterior.
§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente.”

A conduta batizada popularmente como “seqüestro relâmpago” apresenta alguns problemas que merecem maior atenção. Neste breve espaço, colocaremos duas questões que entendemos, no mínimo, curiosas para a possibilidade de vigência da nova lei: (1) Há conflito aparente de normas considerando outros tipos penais já existentes? e (2) Existe proporcionalidade nas penas cominadas? Estas são duas perguntas que acreditamos fundamentais à compreensão do novo tipo penal que está em vias de integrar nosso ordenamento.

a) Do conflito de normas

A consumação do crime é o momento em que se realizam todos os elementos do tipo. A conduta a ser apurada é a combinação do caput com o § 3.º. É necessário que ocorra o constrangimento ilegal com a finalidade de se obter vantagem econômica indevida e que haja a restrição da liberdade da vítima, sendo tal restrição condição necessária para a obtenção da vantagem. Vislumbramos os seguintes requisitos para a existência do chamado seqüestro relâmpago: (1) o constrangimento ilegal; (2) a finalidade da vantagem econômica indevida; (3) restrição da liberdade de vítima; (4) impossibilidade de praticar tal constrangimento ilegal sem a restrição apontada anteriormente.

O constrangimento ilegal é conduta compreendida como obrigar alguém, mediante violência ou grave ameaça, a fazer ou deixar de fazer algo, que não seja obrigação legal. Quer dizer, se não existir lei determinando, ninguém é obrigado a agir ou omitir-se para satisfazer o desejo de alguém. Mais grave ainda é constranger alguém a desfazer-se de seu patrimônio, contra sua vontade, em proveito de quem o constrange. Ninguém recusa a necessidade do tratamento criminal para estes casos. No entanto, a alteração proposta para o Código Penal parece ter um grande equívoco.

Afirmar que o seqüestro relâmpago seria mero constrangimento ilegal não seria viável, pois é sabido que o tipo previsto no artigo 146 é a forma mais básica de constrangimento e outras existem na legislação, como o estupro, o roubo, a extorsão. Acontece que, diante da pluralidade de condutas, a criação de novos tipos penais pode complicar ainda mais a aplicação da norma diante da confusão legislativa. Se hoje já existe divergência entre a configuração do fato (se seria roubo majorado ou extorsão mediante seqüestro), um outro tipo acarretaria em nova e desnecessária discussão.

Entendemos que o próprio texto do projeto de lei o prejudica. Se a restrição da liberdade da vítima é condição necessária para a configuração do novo § 3.º, já há equivalente legal para o seqüestro relâmpago. Quem obriga uma pessoa a sacar dinheiro para entregar-lhe comete crime de roubo com a restrição de liberdade, podendo, ainda, incidir outra majorante, se houver uso de arma. Não enxergamos haver extorsão, pois a finalidade do agente é a subtração de coisa alheia móvel, no caso, o dinheiro. A distinção entre roubo e extorsão baseada apenas no comportamento do agente e da vítima é insuficiente. Dizer que o caso é de extorsão porque a vítima é quem age não satisfaz a problemática. Se assim o fosse, quando a vítima entregar seu veículo mediante ameaça também deveria ser o crime de extorsão, o mesmo valendo para a hipótese daquele que enfia a mão no bolso, abre a carteira e entrega o dinheiro exigido. Em ambas as situações, houve um comportamento ativo da vítima, e nem por isso teremos extorsão.

O seqüestro relâmpago, portanto, já está tipificado como roubo majorado pela restrição da liberdade da vítima. Dois foram os bens jurídicos atingidos: o patrimônio e a liberdade. Não vamos discutir aqui se é correto considerar o patrimônio como bem predominante, pois esta questão atinge também os crimes de extorsão e extorsão mediante seqüestro (são todos crimes contra o patrimônio, não contra a pessoa). O que pretendemos afirmar é que o destino final do produto do crime é sua subtração pelo agente, que obriga o ofendido a sacar o dinheiro. Se o legislador entende que o seqüestro relâmpago não encontra tipificação legal atualmente, a única conclusão, apesar de absurda, seria aceitar a possibilidade de uma revisão criminal para que todos os condenados até eventual vigência da nova lei, pois o fato, a rigor, seria atípico no momento de sua consumação.

Outro absurdo seria aceitar a existência de duas espécies de subtração de coisa alheia móvel com restrição da liberdade: quando a restrição foi condição fundamental ou quando não for. Se até hoje houve vários inquéritos policiais concluídos e diversas decisões condenatórias, a restrição necessária da liberdade nunca foi elementar necessária para configurar o crime. Por isso, as sentenças condenatórias anteriores que não discorreram sobre a “necessidade de restringir a liberdade da vítima” seriam todas nulas, por falta de fundamentos fáticos e jurídicos.

b) Das penas desproporcionais

As penas cominadas ao seqüestro relâmpago surgem em três hipóteses: se ocorrer apenas a restrição da liberdade da vítima, 6 a 12 anos; se houver lesão corporal de natureza grave, 16 a 24 anos; se houver morte, de 24 a 30 anos. Se fizermos uma breve comparação com outros tipos penais, a desproporção entre as penas fica evidente.

O roubo qualificado pela lesão corporal grave tem pena que varia de 7 a 15 anos, enquanto a qualificadora morte implica em pena variável entre 20 e 30 anos. Nota-se que no caso de lesão corporal grave, a pena do projeto de lei é muito mais grave que a do roubo qualificado. Se o projeto for sancionado, haverá uma grande desproporção entre duas condutas que se correspondem, conforme defendido anteriormente. Se o agente esperar a vítima sacar o dinheiro por conta própria para subtrair a quantia, a pena será muito menor do que na hipótese do saque mediante constrangimento.

Comparando-se o projeto de lei com a atual previsão do roubo majorado pela restrição da liberdade, notamos outro desequilíbrio. Se considerarmos a pena do caput (4 a 10 anos) e a majorante (um terço até a metade), teremos uma pena que pode variar de 5 anos e 4 meses a 15 anos. São 3 anos de diferença entre as penas máximas, para condutas semelhantes, o que não parece razoável como técnica legislativa.

Se considerarmos, ainda, os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, condutas das mais repugnantes, cujas penas variam de 6 a 10 anos, verificamos outro desequilíbrio. Para o projeto de lei, é mais grave praticar o seqüestro relâmpago do que um constrangimento ilegal de ordem sexual. Acreditamos que todos os comportamentos criminosos são reprováveis, mas nunca um crime patrimonial pode ser considerado mais grave que a violação à liberdade sexual da vítima.

Estas são apenas algumas observações sobre a desproporcionalidade das penas cominadas pelo projeto de lei. Entendemos que houve uma supervalorização do chamado seqüestro relâmpago e, assim, seria este mais um argumento contrário ao projeto aprovado pelo Senado Federal.

Conclusão:

Em nossa opinião, o projeto de lei aprovado pelo Senado Federal não pode ser sancionado pelo Presidente da República por duas importantes razões. Primeiramente, o que se conhece por seqüestro relâmpago já está tipificado pelo Código Penal como roubo majorado pela restrição da liberdade da vítima. Segundo, as penas cominadas são desproporcionais e, em caso de sanção, devem ser revistas.

Acreditamos que o bom senso vai prevalecer. Conforme noticiado no site O Globo, em 25 de março último, o Ministério da Justiça vai recomendar o veto presidencial. O secretário de Assuntos Legislativos do Ministério, Pedro Abramovay, afirmou que “do ponto de vista técnico, não temos dúvida de que o projeto deve ser vetado”, opinião com a qual concordamos. Enfim, agora é esperar para ver.

JOÃO PAULO ORSINI MARTINELLI
Advogado em São Paulo. Mestre e Doutorando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Pesquisador visitante nas Universidades de Munique (Alemanha) e California (EUA). Professor do UniAnchieta e da FACAMP. Membro da Comissão de Jovens Penalistas da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Coordenador-adjunto de internet do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).


IBCCRIM.

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