Os poderes dos emissores da informação, concatenados à tecnologia das mídias e meios eletrônicos são elevados a um status sem precedentes na chamada sociedade de informação. Tamanhos benefícios não vieram desacompanhados de preocupações. Como se fosse a essência do humano um eterno maniqueísmo, a sociedade de informação trouxe ao homem benefícios e malefícios imensuráveis.
O professor francês Lucien Sfez, um dos maiores teóricos em comunicação no planeta, por exemplo, manifestou sua preocupação com o controle exercido pelo emissor da comunicação sobre a população(1). Isso nos faz enxergar o paradoxo de nosso tempo. A informação que veio como forma libertária do ser humano, ao tirá-lo da escuridão da ignorância para a luz do conhecimento, quando atinge seu ápice até então, no agora, o mesmo remédio começa a agir como forma de controle das liberdades ou direcionamento da mesma população a um ponto de vista de outrem.
Vê-se, diuturnamente, a imposição de modelos de status e sucesso econômico pela mídia. E também o sensacionalismo em paralelo na exploração dos resultados dos crimes graves e dos desajustes sociais das periferias. Trata-se da própria materialização da Teoria da Anomia de Émile Durkheim, aprimorada por Robert Merton. Teoria, diga-se, atualíssima no Brasil atual de guetos, favelas e rincões, onde o estado não vai com seus benefícios e regulações, sendo atingidos apenas por seus modelos hegemônicos de status, como se fossem avisos sobre o caminho a ser percorrido para aquele ápice do welfare state.
Outra preocupação diz respeito à nossa condição de cobaias nesta novíssima era. Necessitamos aprofundar o estudo dos modelos inversos que hoje, na vastidão dos meios de comunicação e na evolução da internet, são disponibilizados a todos, como perfis de idolatrias de homicidas seriais, de pedófilos, de francos-atiradores em escolas, de criminosos organizados, facções políticas criminosas, de terroristas, ou seja, no viés da sociedade de comunicação, na era da informação, junto às benesses do conhecimento humano, vieram também a publicidade de suas sombras e do próprio mal. Ser dual, masculino e feminino, bom e mau, o homem contém em si a dualidade característica que pode levá-lo a um outro caminho em menor ou maior ênfase e os modelos têm grande influência sobre isso.
Alguns modelos poderão exercer fortes influências sobre alguns e não influenciar outros. Um bom exemplo é dado de forma singular por Jean Paul Sartre, através do personagem Paul Hilbert, em Érostrate. Trata-se de personagem que odeia a humanidade e que gosta de caminhar armado pelas ruas de Paris, fazendo de seu revólver a própria extensão de sua mão(2), segurando a arma dentro do casaco, no personagem obcecado para atirar contra desconhecidos.
Hilbert, em conversa com seus amigos, demonstra sua admiração pelos héros noirs em oposição ao amigo que se diz admirador do aviador Lindbergh. Ele é observado em suas vontades, percebendo seu amigo a posição contrária ao senso comum, chamando-o Érostrate, o rei que queria ser ilustre, célebre, mas que nada achou para fazer a não ser queimar o Templo de Éfeso, uma das maravilhas do mundo antigo e entrando, assim, para história. Pergunta, então, Hilbert, ao amigo, quem seria o arquiteto construtor do templo destruído por Érostrate, e o colega não sabe responder, mas tem claro em mente o nome de seu destruidor(3).
A sociedade de informação permite a celebridade não apenas de um Érostrate, mas de grupos que aparecem em idolatria a tais modelos, bem como o fácil acesso a quaisquer grupos de pensamentos antissociais e homogêneos, antes isolados nas individualidades.
Esses são alguns dos grandes problemas de base geral, mas o que realmente vem afetando na carne aqueles que operam o Direito Penal é o julgamento público na era da informação. Esta conotação de “público” é vastíssima, pois se a publicização se dá através dos meios de informação atuais, a força trazida pelos meios comunicativos consegue atacar a própria forma penal, como veremos a seguir.
O homem urbano, do acordar ao dormir, está inserido no que chamamos plasma informativo. Dele não se livra nem se quiser, pois as tecnologias de informação mesclaram-se às atividades produtivas e hoje são uma só ferramenta. Não se consegue mais, sequer, trabalhar, ter lazer, em suma, viver em isolamento ao mundo que o cerca e ao plasma da informação. Qual homem é capaz de viver em sociedade e ser livre da influência dos conteúdos trazidos por tamanho poderio?
Alguns crimes têm sido eleitos como objeto de exploração da mídia, causando clamor público desmesurado pela potencialização dos meios comunicativos. Um exemplo do poder invasivo da informação foram perguntas que vivenciamos de uma criança de três anos aos pais sobre o caso Isabela. Criança, que, pensavam os pais, assistia seus desenhos animados, vivia seu mundinho infantil, distante dos horrores da realidade penal.
Nestes casos que se tornam cases da mídia, as medidas penais constritivas vem sendo aplicadas nas cortes inferiores de justiça, encaradas como sendo de razoabilidade ações graves contra os personagens dos cases. Há verdadeiro disparate de tratamento judicial entre acusados de crimes idênticos que não são cases e os dos cases.
Os réus e averiguados “inimigos”(4) recebem aquilo que os leigos exigem nesta poderosa voz coletiva indeterminada que advém do sistema comunicativo. Não importa à coletividade se houve tortura contra os réus, se houve excesso de força, se os acusados estão encarcerados sem necessidade, se os direitos deles estão sendo colocados de lado, se eles têm a chance de serem inocentes e que eles façam jus a um julgamento justo. A poderosa voz indeterminada exige imediata ação do Estado. O sobrepeso colocado sobre o Estado traz a desproporcionalidade à balança no sopesamento dos direitos fundamentais dos eleitos párias, inimigos gerais da nação e do outro, o pseudo manifesto interesse público.
A forma que reveste o Direito Penal material e o instrumental é o que garante a segurança do cidadão em sua liberdade diante do Estado, pois este não necessita do Direito Penal para exercer seu poder sobre o cidadão. O Estado é a própria força e não há anteparos ao seu poder, senão aqueles traçados pelo seu corpo legislativo, tendo na Constituição Federal sua lei maior, com a criação de seus limites.
No Direito Penal evoluído à condição de ultima ratio regum, em jogo coloca-se a liberdade do ser humano, segundo bem jurídico mais importante depois da própria vida. Tamanha importância é correspondente, de seu turno, ao emaranhado de garantias que são essencialmente vinculadas à forma do Direito Penal.
A forma do Direito Penal limita e estreita as vias de poder do estado com relação ao cerceamento da liberdade humana, dificultando a ação estatal no ataque aos direitos fundamentais. A forma penal é anterior à pena e posterior ao ato jurisdicional constritivo da liberdade humana, pois mesmo após o acautelamento do condenado, a forma penal persiste na medida em que delimita o tempo e o modo de constrição.
Quando tais regras, sejam elas anteriores ou posteriores à condenação, passam amiúde a serem desobedecidas por pressão desproporcional da mídia em invocação a outros bens públicos feridos, há a desformalização penal.
Possibilita-se, assim, a repetição de atos judiciais viciados com a criação de precedentes construídos de maneiras disformes, pela desproporcional pressão nos “cases”. Dessa forma, não se torna possível a manifestação de medidas razoáveis ou proporcionais em casos do gênero, diante do desmedido poder colocado sobre os julgadores, estando o sistema jus-punitivo do estado democrático de direito do país vivendo uma era de absoluta crise de identidade.
Presenciamos nos recentes confrontos entre tribunais superiores e inferiores e entre setores ligados à defesa e aos de acusação, um desacerto em termos de aceitação das regras. E aí voltamos a Lucien Sfez e sua preocupação sobre a influência de poderosos na liberdade de informação.
Concluímos que vírus leigos são inoculados sobre os operadores do direito em doses homeopáticas e às vezes em doses cavalares, contaminando todos os dias aqueles que deveriam ser imunes à peste, para colocarem-se sobre os “cases” descontaminados, apreciando-os como casos. Só assim terão estes acusados um julgamento proporcional, razoável e justo e o Direito Penal manterá intacta sua forma. A era da informação, como vimos, é o refestelar da liberdade com uma não prevista e infeliz ressaca.
Notas
(1) In SFEZ, Lucien. A Comunicação. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 2004, p. 59.
(2) Michel Rouche faz referência a esta característica presente no homem medieval, “a mão e a arma formavam, pois, uma coisa só, nada refreava o ato instintivo de sangrar o outro” (in AURIÈS, Philippe e DUBY, Georges. Direção da Coleção - História da Vida Privada. Volume I, tradução de Hildergard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 485.) Sartre recria na ficção o homem moderno com instintos primitivos, como aqueles que tinham as armas como extensões das mãos. Hoje, tornou-se comum que pessoas que têm instintos similares ao de Hilbert, encontrem-se em ambientes do ciberespaço e dividam conhecimentos e suas idolatrias, reforçando seus atos doentios e seus desvios homicidas, fazendo-os celebridades instantâneas, cultivando fãs e seguidores. Daí que, o culto ao mau modelo existe de forma real no mundo atual e é disponibilizado facilmente nas redes de comunicação.
(3) “Je le connais votre type,me dit il. Il s’appelle Érostrate. Il volait devenir ilustre e il na rien trouvé de mieux que brûler le temple d’ Éphèse, une de sept merveilles du monde”. In SARTRE, Jean Paul. Le Mur, Paris: Gallimard, 1939, p. 88.
(4) Estamos aqui diante da real manifestação do Direito Penal do inimigo, não na maneira apontada por Jakobs, mas com efeitos idênticos. Vivenciamos a adoção do modelo brasileiro.
Fábio Antônio Tavares dos Santos
Advogado em São Paulo
SANTOS, Fabio Antonio Tavares dos. Preocupações com a era da informação e a desformalização penal. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 196, p. 9, mar. 2009.
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