quinta-feira, 2 de abril de 2009

Artigo: Poder de requisição para a defesa no processo penal: em busca da real paridade de armas

1. Introdução

O problema da atividade probatória em processos nos sistemas jurídicos da família romano-germânica parece sempre ter sido relegada a um segundo plano teórico. Na maioria dos compêndios, tratados e ma­nuais, mesmo naqueles exclusivamente dedicados à prova, a impressão que se tem é a de que a prova é mais um capítulo dogmático da teoria do processo, que sequer compõe, autonomamente, a sua tríade fundamental: jurisdição, ação e processo.

Assim, o que importa no que toca a prova, desde este ponto de vista, é tratar, superficial e artificialmente, da sua tipologia, da sua admissibilidade no processo, no procedimento de sua produção, e no de sua avaliação — o que é especialmente importante quando se adota, total ou parcialmente, o sistema da prova legal, mas praticamente desimportante para o sistema do livre convencimento.

Esgotada esta etapa, todavia, a prova não parece interessar mais como campo de indagação teórica ao processualista. A atividade probatória, em si, no seu aspecto dinâmico, praticamente não importa, ainda mais porque um aprofundamento horizontal e, principalmente, vertical no campo da prova exigiria uma interseção interdisciplinar para o qual ainda estamos engatinhando — máxime no Direito. Mais ainda: nomeadamente no campo do processo penal, uma atenção mais profunda à prova implicaria reconhecer que a produção da prova como atividade necessita não só de ser balizada legalmente segundo os parâmetros do devido processo legal, senão também, e principalmente, de ser assumida no seu aspecto dinâmico, aspecto que traz em si uma dimensão político-jurídica de colecionamento de ícones, indícios e símbolos(1) com vistas à (re)produção atual de uma verdade sobre o passado, com vistas a resultados futuros(2).

Sem dúvida esta tarefa de mistura temporal entre passado, presente e futuro, permeada e possibilitada pela atividade probatória é tarefa demasiado complexa e ingente para que dela possa dar conta apenas uma pessoa ou mesmo órgão de pessoas. Ainda mais quando o que está em jogo é a construção de uma verdade processual, uma narrativa conjunta e complexa(3), segundo a qual a vida de uma pessoa será determinada. Daí a necessidade de reconhecer, como propõe Geraldo Prado(4), uma estrita divisão de tarefas entre os três principais atores do processo: acusação, defesa e órgão julgador. Porém, para que esta divisão de tarefas seja real e produtiva para o processo, é preciso que ela se dê segundo parâmetros bem definidos e no máximo de igualdade possível, consideradas as características específicas de cada uma das partes. No presente artigo, será proposta a adoção de uma específica medida de igualdade entre acusação e defesa, a fim de que ambas possam contribuir, com as suas atividades parciais, à verdade processual possível e imparcial ditada pelo julgador. Esta medida é a atribuição de poderes de requisição de informações de documentos pela defesa técnica.

2. A concepção publicista do processo e a questão da paridade de armas

Um dos motivos pelos quais a atividade probatória, no seu aspecto dinâmico e político-social, é deixada de lado na dogmática processual penal é o fato de que, notadamente na família romano-germânica, como dito, vigora ainda a ideia de que o processo é uma atividade pública e que, portanto, as partes devem ser meros coadjuvantes ou colaboradores para o correto desfecho processual, a cargo do julgador(5). Ada Pellegrini Grinover bem resume o argumento:

“À raiz do modelo que confia ao juiz a condução do processo, inclusive no que diz respeito à iniciativa instrutória, está uma escolha política que diz respeito à concepção publicista do processo e à percepção de sua função social.”(6)

É difícil pensar, no entanto, como poderá um órgão julgador — as mais das vezes, uma só pessoa, o juiz — dar conta da dificílima tarefa que lhe é imposta. Ele terá de, a um só tempo, coordenar a produção de prova de acusação e defesa, corrigir eventuais deficiências que identifique nesta produção, e, por fim, avaliar todo o conjunto probatório, produzido por ele em conjunto com as partes, devendo sempre manter a imparcialidade. Como poderá este juiz resistir à tentação de dirigir a produção de prova, da qual é não só destinatário, mas também participante e mesmo, por vezes, protagonista; como resistirá, dizíamos, a dirigir a atividade probatória para a confirmação das impressões que ele já tenha sobre o objeto do processo, possivelmente mesmo antes do seu início?

Por outro lado, além do órgão julgador, também o principal acusador, o Ministério Público, é órgão do Estado e tem poderes e prerrogativas dados pela Constituição e pelas leis orgânicas respectivas. Além disso, possui toda uma estrutura constituída e mantida pelo poder público, a fim de lhe dar apoio nas suas tarefas. A defesa, dos três envolvidos no processo é o único ator “privado” no processo. Portanto, como uma “concepção publicista” do processo pode garantir a igualdade processual, ou, como popularmente é chamada, a paridade de armas, a qual, em última análise, deve servir de instrumento para o contraditório e a ampla defesa?

Ora, se existem três atores no processo, dois são públicos e um é privado, está claro que já de início, uma concepção que torne o processo, e, especialmente a atividade probatória, uma atividade colaborativa orien­tada pelo bem público está fadada a desequilibrar a balança a favor da acusação. Afinal, mantido o argumento publicista, por assim dizer, de todos os três, o único que tem interesse (privado) em algum desfecho processual específico é a defesa. Os outros, atores públicos num processo público, só quereriam a justiça.

A vingar este argumento, então, como agora parece óbvio, toda a atividade probatória — e processual em geral — da defesa merece uma espécie de presunção de descrédito, já que a ela, ao contrário dos outros atores do processo, cabe proteger interesse privado. E isso, para o que aqui particularmente interessa, se traduz no fato de que, ao contrário do julgador ou do Ministério Público, a defesa não tem nenhum poder que a auxilie na sua tarefa de coligir elementos para subsidiar e mesmo constituir a sua atividade probatória — afinal, ela é um parte “privada”, “interessada”.

Ela pode, quando muito, sugerir ou requerer determinadas diligências investigativas durante a fase de instrução preliminar — amparada, principalmente, no direito fundamental de petição (art. 5º, XXXIV, a) —, ou requerer produção de provas durante a instrução processual (p. ex., arts. 243, contrario sensu, 396-A, 402, todos do Código de Processo Penal). Em todos estes casos, a autoridade presidente da respectiva fase da perseguição criminal pode deferir ou não tal requerimento, sob a única exigência de que eventual indeferimento seja cuidadosamente fundamentado.

Naturalmente, a mudança de cultura e de pré-compreensão normativa quanto a um sistema acusatório realmente respeitoso da igualdade processual e da paridade de armas, um sistema em que as duas partes contendem em torno de narrativas e contranarrativas igualmente dignas de atenção e consideração, esta (nova) leitura conceitual do processo penal pode levar tempo para ser construída. No entanto, nada impede que se façam ajustes nesta direção. A interrogação direta de testemunhas (instituída pela Lei nº 11.690/2008) já foi um passo. Aqui propomos um novo passo.

3. O poder de requisição pela defesa

Para que a defesa seja efetiva, ela precisa dispor dos meios que lhe assegurem uma atividade de qualidade na defesa dos interesses do acusado(7). Normalmente, essa exigência é ligada ao direito de ser cientificado de prazos e atos processuais, direito de acesso aos autos, direito à palavra e à ter duas considerações levadas em consideração, e, ainda direito à fundamentação das decisões com base nessa consideração(8).

Embora todos estes direitos e prerrogativas do acusado e de seu defensor técnico sejam indispensáveis ao contraditório e ampla defesa, eles, certamente, não garantem uma efetiva paridade de armas. O Ministério Público, seja o da União, seja o dos Estados, tem amplos poderes requisitórios(9). Tais poderes derivam da sua própria qualidade de autoridade pública, além de da sua função de fiscal da lei e defensor dos direitos coletivos e difusos (art. 127, da Constituição de 1988).

Noutro giro, embora a Lei nº 8.906 de 04.07.1994 preveja o caráter público da função advocatícia (art. 2º, §1º), e a Constituição de 1988 a reconheça essencial à justiça (art. 133), é preciso densificar normativamente tais declarações principiológicas, a fim de que possam ser mais do que ornamentos retóricos. O advogado não conta com prerrogativas instrutórias. Se desejar avaliar a viabilidade da apresentação de uma determinada prova, ou se quiser ter acesso a alguma informação ou documento que possa influir na(s) sua(s) tese processual, precisará, como já visto, requerer ao julgador que oficie ao órgão que os detenha, para que os forneça diretamente ao juízo; isso se o órgão julgador deferir o requerimento.

Ora, se, como bem diz Ricoeur, o devido processo implica a sua concepção “na forma de um debate, [...], [com o] acesso à palavra sendo igual para uma parte e para a outra”(10), muito dificilmente se pode divisar devido um processo em que uma parte representa uma autoridade e a outra nenhuma autoridade tem. O acesso igual à palavra pressupõe a igual possibilidade de controlar o fluxo de informações que entram no processo através dos argumentos das partes.

E mesmo que se afirme, seguindo uma já criticada “concepção publicista do processo”, que as provas são “do processo” e não “das partes”, é preciso ainda convir que, se uma parte (acusadora) tem uma prerrogativa, a outra (defensora), por isonomia, também deve tê-la — sob pena de vulnerar-se, de resto, o próprio contraditório.

Aproveitando, pois, a onda de reformas processuais penais, talvez seja o caso de inserir uma disposição que garanta ao advogado, quando constituído para atuar em processo penal, a prerrogativa de requisitar documentos e informações de entidade privada ou pública(11). Dever-se-ia prever, ainda, obviamente, que ele fosse responsável, civil, disciplinar e criminalmente pelo uso indevido das informações e documentos, especialmente aqueles sob sigilo – na forma, aliás, do que já se prevê para o Ministério Público (art. 40 do CPP; art. 26, § 2º da Lei 8.625/93; art. 8º, § 1º da LC 75/93).

Este certamente será um grande passo em direção a um processo mais justo, em que as armas sejam, de fato, paritárias.

NoTas

(1) Segundo a tipologia semiótica de PIERCE, Charles Sanders. “What is a sign”. In: The Pierce Edition Project. The Essential Pierce: Selected Philosophical Writings, volume 2 (1893-1913). Bloomington: Indiana University Press, 1998. pp. 4-10.

(2) Cf. OST, François. Le Temps du Droit. Paris: Odile Jacob, 1999; MESSUTI, Ana. “O terceiro: Uma interpretação”. In: ________. O Tempo como Pena. Trad. Tadeu Antoio Dix Silva e Maria Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: RT, 2003. p. 103.

(3) Cf. TIERSMA, Peter. Legal Language. Chicago: University of Chicago, 2000, p. 147 et seq.

(4) PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

(5) Cf., para a concepção publicista do processo, agora e no que segue, GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório”. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 347, p. 3-10, jul.-set. 1999.

(6) GRINOVER, Ada Pellegrini. Ob. cit., p. 5.

(7) Cf. MALAN, Diogo. “Defesa técnica e seus consectários lógicos na Carta Política de 1988”. In: PRADO, Geraldo e MALAN, Diogo. Processo Penal e Democracia: Estudos em Homenagem aos 20 Anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. pp. 169-175.

(8) Cf. ibidem; cf. também MENDES, Gilmar Ferreira. “Significado do direito de defesa”. In: ________. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. pp. 97-99.

(9) Cf., por exemplo, Lei nº 8.625 de 12.02.1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), art. 26, I, b e II; Lei Complementar nº 73 de 20.05.1993 (Lei de Organização do Ministério Público da União), art. 8º, II e IV.

(10) RICOEUR, Paul. Le Juste, la Justice et Son Échec. Paris: L’Herne, 2005. p. 30.

(11) Prerrogativa, aliás, que já cabe, institucionalmente, por exemplo, aos membros da Defensoria Pública da União (art. 89, X da Lei Complementar nº 80 de 12.01.1994), embora sem correspondência sistemática ao Processo Penal e sem regra correlata no Código de Processo Penal.


João Pedro Chaves Valladares Pádua
Advogado, doutorando em Letras (Estudos da Linguagem) PUC/RJ, mestre em Ciências Jurídicas (Direito Constitucional e Teoria do Estado) PUC/RJ, professor de Direito Penal Tributário da Pós-Graduação (Lato Sensu) da Universidade Estácio de Sá e professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio De Janeiro (Emerj)

PÁDUA, João Pedro Chaves Valladares. Poder de requisição para a defesa no processo penal: em busca da real paridade de armas. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 196, p. 13, mar. 2009.

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