A concepção Constitucionalista de Estado Democrático legitima-se pelo exercício de liberdades individuais, que compreende, em sua vertente negativa, uma visão intimista de plenitude de existência e de escolha de posições as quais contêm a omissão característica do "não-fazer" aquele comportamento que reproduz regras socialmente admitidas, e o do "não-ser-idêntico" aos modelos pré-constituídos.
Assim, para a construção da subjetividade, o resguardo da esfera de intimidade da vida privada é indispensável ao desenvolvimento da identidade pessoal e da personalidade humana, pois possibilita a experimentação de situações privativas, particulares, de forma independente, sem interferências exteriores de repressão ou julgamentos sociais (Belloque, Juliana: Sigilo Bancário, p. 22).
Nesse passo, como expressão de "dignidade", compete ao aparato estatal a garantia de efetividade e defesa da privacidade dos cidadãos, nos termos expressamente previstos pela Carta Magna em seu preceptivo 5.º, incisos X e XII.
Como decorrência da liberdade viabilizada por esse mesmo Estado, as ideologias punitivistas - remanescentes do paradigma etiológico - veiculadas pelos meios de comunicação sustentam-se na possibilidade de manifestação de pensamentos sem qualquer forma de censura.
O discurso midiático acrítico que exige a contenção da violência mediante instrumentos institucionais - aqui, funcionalidade atribuída às regras materiais e processuais penais - está cotidianamente autorizado pelo senso comum, alheio aos reais fatores condicionantes da reprodução da criminalização, gerenciada pelo sistema-penitência.
De tal forma, para atribuir eficácia (simbólica!) às medidas repressivas - apenas em tese adequadas a todo o contingente social - utiliza-se como exemplo de satisfação a punição de cidadãos de elevados extratos sociais, imputando-lhes ilícitos que atentam contra a ordem econômica.
Nessa linha, percebe-se que o "eficientismo" atribuído aos órgãos jurisdicionais autoriza a superinflação de mecanismos variados para a contenção da "marginalidade" econômica, incluindo, nesse passo, àqueles que afrontam as estruturas do Estado de Direito: aqui, em especial, enfatiza-se a invasão do espaço intimista do "outro" das mais variadas formas, tais como, a interceptação de telefones, a quebra de sigilo bancário e fiscal, e na pós-modernidade, a quebra de fontes informáticas ou telemáticas.
Tais modalidades se intensificam naqueles ilícitos que ultrapassam a criminalidade "comum" para violar bens jurídicos transindividuais: nesses casos, a complexidade no funcionamento das instituições econômico-financeiras justificariam investigações dirigidas a todos os seus representantes, mesmo que ausentes as condições subjetivas para a imputação de autoria delitiva.
Em tese, a interceptação telefônica classifica-se como meio probatório subsidiário para a reconstrução da famigerada "verdade real", que pode ser utilizado na fase processual, bem como durante as investigações preliminares - frise-se, de forma alguma tido como instrumento para o início das investigações! - desde que presentes indícios razoáveis de autoria ou participação e o fato investigado se encontre no rol das infrações penais punidas com pena de reclusão (respaldo normativo na Lei n.º 9296/96, que apresenta, em seu art. 2.º, a contrario legem, os requisitos para concessão).
Não fosse a regra extremamente ampla - ofendendo o postulado da proporcionalidade, em razão de que todos os injustos sancionados com tal sorte de pena autorizariam a relativização da garantia constitucional, independentemente do risco causado ao bem jurídico protegido -, ainda se destaca divergência jurisprudencial referente à duração da medida.
Nesse ponto, destacam-se julgados com entendimentos divergentes acerca da possibilidade de prorrogação dos 15 dias determinados pela regra do artigo 5.º da Lei 9296, alguns, admitindo-a (STF, RHC 88371, Ministro Gilmar Mendes RHC 88371-SP - j. em 14/11/2006 - DJU de 2/2/2007 e STJ HC 50193 - ES - Rel. Min. Nilson Naves DJU 21/8/2006) e outras não (STJ - HC 76686/PR. - Rel. Ministro Nilson Naves, J. em 9/9/2008, DJU 10/11/2008).
Em que pese a previsão normativa de possibilidade de prorrogação dos 15 dias autorizativos da interceptação (art. 5´), não existe menção objetiva acerca da quantidade de renovação da quinzena citada, limitação que não se justificaria, em tese, quando os fatos investigados fossem complexos os quais, em sua grande maioria, referem-se à condutas que atentam contra a ordem econômica.
Como resultado dessa orientação observam-se situações extremas em que as restrições à intimidade perpetuam-se por anos, abrangendo centenas de indivíduos, que na maioria das vezes, sequer relacionam-se aos fatos investigados.
Utiliza-se da escuta para reafirmar a expansão dos preceitos punitivos, vez que se ampliam os sujeitos passíveis de monitoramento. As palavras de Zaffaroni (Direito Penal do Inimigo, p. 118) afirmam que admitir um tratamento penal diferenciado para inimigos não identificáveis nem fisicamente reconhecíveis significa exercer um controle social mais autoritário sobre toda a população, como um único modo de identificá-los e, ademais, impor a toda população uma série de limitações à sua liberdade e também o risco de uma identificação errônea, e conseqüentemente, condenações e penas a incoerentes.
As informações oficiais de que aproximados 400 mil telefones estão interceptados denota a banalização do instituto, consolidando, como reflexo, o fenômeno do Estado de Emergência permanente tal como citado por AGAMBEN, no qual "mais do que tornar lícito o ilícito, a necessidade age aqui como justificativa para uma transgressão em um caso especifico por meio de uma exceção": o fundamento simbólico de que o crime precisa ser erradicado mediante a atividade cada vez mais repressiva das regras jurídicas autoriza a suspensão de direitos fundamentais, imprescindíveis para a defesa da sociedade "sadia".
Nesse cenário paradoxal traz-se à explanação as palavras expressas na obra literária de ORWELL (1984, p. 18), suscitando que no sistema democrático falacioso a "liberdade" (aparente) "é escravidão", uma vez que a "regra" utilizada pelo Estado-Penitência passa a ser a violação da privacidade relativizando o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana consubstanciado no "direito ao livre desenvolvimento da personalidade" (SARLET, Ingo.
Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 90), que, a todo tempo, macula a possibilidade de construção das características pessoais do sujeito e de suas formas de comunicação.
Diante da complexidade das situações imanentes à sociedade de risco, sabe-se que princípios fundamentais podem ser conflitantes no caso concreto - como foi problematizada a contraposição entre a liberdade subjetiva e a segurança social - razão pela qual, ao realizar o processo de subsunção do fato à regra, o operador jurídico deve atuar ciente de que é sujeito numa relação exteriorizada pela linguagem, na qual interagem poder e comunicação, devendo ponderar quais direitos serão relativizados e quais conseqüências surtirão na esfera de proteção do bem jurídico.
Como premissa final, deve-se almejar respeito ao exercício da dignidade do sujeito com as condições, frisem-se, democráticas, de regular exercício do jus puniendi atribuído ao Estado.
Trabalho apresentando no grupo de pesquisa nominado Mundialização do Capital, Crimes Contra a Ordem Econômica e Dignidade da Pessoa Humana: Revisão da efetividade da Investigação e da Persecutio Criminis in Juditio, do Curso de Direito do Unicuritiba, coordenado pelo professor doutor Luiz Antonio Câmara. Cristina Oliveira é especialista em Direito Criminal e Criminologia pelo ICPC/UFPR e em Direito Constitucional pela ABDConst. Advogada Criminal. coliveira@camaraeassociados.com.br
O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 06/04/2009.
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