O Juiz de Direito do TJRJ, comarca de São Gonçalo,André Luiz Nicolitt, autor de diversas obras e processualista penal respeitado (veja aqui), proferiu decisão nos autos n. 0162548-04.2013.8.19.0004 reconhecendo a inconstitucionalidade da investigação preliminar levada a efeito pelo Ministério Público. Como a apuração preliminar não seguiu ao modelo constitucional adotado, a denúncia de crime previsto no art. 217-A, do Código Penal, foi rejeitada.
Confira o inteiro teor abaixo:
Processo 0162548-04.2013.8.19.0004
RELATÓRIO
Trata-se de Ação Penal proposta pelo Ministério Público em face de C. B., relativamente aos crimes do art. 217-A, do Código Penal.
É o relatório.
Fundamentação
Prólogo
O tema objeto da presente decisão faz eclodir forte debate no meio jurídico e institucional, não sendo possível ocultar os apelos corporativistas que o envolve.
As conclusões que seguirão, no entanto, tem por único compromisso a afirmação dos princípios constitucionais que norteiam o processo penal e a responsabilidade de não transigir com os mesmos.
De início, deve-se destacar que as conclusões não revelam qualquer valoração ou desprestígio, tanto às instituições, Ministério Público e Polícia Civil, quanto as pessoas que atuaram no presente procedimento.
Muito ao contrário, deve-se destacar a importância do Ministério Público, não só como órgão essencial à justiça, mas como instituição fundamental para o sistema acusatório. Sem o Ministério Público não há sistema acusatório e, por consequência, não pode haver juiz imparcial, equidistante, tampouco processo justo.
A origem histórica do Ministério Público relaciona-se com a própria superação da idade média[1] e eclode com a modernidade e tudo que mais tarde viria a partir de tal ruptura, ou seja, o iluminismo, o renascimento, etc. Daí a indiscutível relevância institucional do Parquet.
De igual maneira, é louvável o desejo de servir da promotora que conduziu a investigação e redigiu a denúncia, tendo atuado, seguramente, pautada pelo desejo de que conduta tão repugnante como a que é objeto de investigação seja reprimida pelo Estado. Os fatos, se comprovados, são realmente graves, mas a gravidade exige do magistrado maior rigor e cuidado na condução do devido processo legal.
Com efeito, é preciso deixar claro, repita-se, que as conclusões aqui não revelam qualquer reprovação ou desvalorização institucional ou profissional. Isso deve ser dito porque, nos temas de repercussão corporativa, não raro se pessoaliza a questão.
No caso em exame, longe disso, atuamos motivados, tão somente, por apreço a princípios e ao Estado Democrático de Direito, no qual os fins não justificam os meios.
Sem sombra de dúvidas a decisão mais fácil, por exigir menos tempo de reflexão, estudo e fundamentação, bem como por não atrair censuras e críticas institucionais, seria lançar nos autos o despacho “não é hipótese de rejeição liminar, cite-se para a resposta à acusação”. No entanto, o papel do juiz não é de tomar apenas decisões fáceis ou fazer o que exige menos trabalho. Isto só é possível quando não se agride a Constituição e a própria consciência.
Dito isso, resta-nos seguir pela porta estreita…
Dos fatos
O Parquet recebeu, em 18 de dezembro de 2012, “denúncia” anônima oriunda do “Disque 100” (Disque Direitos Humanos), narrando que um indivíduo chamado Cosme, em sua casa, supostamente abusa sexualmente de sua filha de 08 (oito) anos, além de violentar psicologicamente os demais filhos com ameaças caso informassem tais fatos a terceiros. Ademais, suspeita-se que a genitora mantenha silêncio sobre tais violências em virtude do temor do suposto agressor.
Diante disso, a 8ª Promotoria de Investigação Penal da 2ª Central de Inquéritos de São Gonçalo, através de seu Promotor, requisita a certificação quanto à possível existência de inquéritos na Delegacia Policial responsável e caso não tivesse havido instauração de inquérito, que o GAP (Grupo de Apoio as Promotorias) realizasse diligência ao local com o fito de apurar a veracidade dos fatos narrados (conforme despacho do MP de fls. 04).
Embora não tenha tido qualquer informação sobre a existência ou não de inquérito em andamento, o GAP elaborou o relatório de fls. 05, resultado da sua verificação preliminar sobre a veracidade das informações.
Da diligência, o GAP relata que identificou a Sra. T. C. B. P., a qual informou ser irmã de J. B. P., esposa de C. B., suposto autor. Em adição, T. disse ao GAP que C. trata seus filhos com muita grosseria e ignorância, bem como os agride.
Em seguida o GAP menciona que fez contato com J., que disse ser mãe de A. C. B. P. B., M. .B. P. B. e W. B. P. B.. Acrescentou, ainda, que há cerca de 2 anos daquela data flagrou sua filha A. B. fazendo sexo oral no pai, C., o acusado.
O GAP verificou ainda que as crianças, após o ocorrido, passaram a residir com a avó e que esta ratificou as informações sobre o ato sexual suportado por sua neta, cuja autoria é atribuída ao acusado.
A par de tal relatório, determinou o MP que as testemunhas fossem notificadas para comparecerem perante o Parquet a fim de prestarem informações (fls. 09).
Em 02 de outubro de 2013, em atendimento à notificação expedida pelo MP, a Sra. A. L.B. P. compareceu à 8ª Promotoria de Investigação Penal de São Gonçalo e ratificou as declarações prestadas ao GAP (fls. 10).
Na mesma data de 02 de outubro de 2013, a Sra. J. B. P. prestou declarações e iniciou afirmando que faz uso de remédios controlados, mas não se acha “maluca”. J. continua afirmando que não sabe dizer a data do ocorrido, objeto da denúncia do Parquet. No mais, confirma as informações anteriormente prestadas ao GAP (fls. 13).
- finaliza suas declarações afirmando que nunca viu ou soube de C. abusando dos demais filhos, mas tem certeza do que afirma sobre A. B.e que já tentou conversar com a mesma, mas nunca obteve êxito, pois a filha é muito fechada e começa a chorar.
Da estrutura do procedimento investigatório
No caso dos autos, a investigação teve a seguinte estrutura:
- Através de “disque denúncia” (fls. 02), o MP determinou que se verificasse a existência de Inquérito Policial. Embora não tenha havido informação nesse sentido, passou o GAB a fazer verdadeira sindicância (relatório de fls. 05) que em tudo se equipara às famigeradas VPIs.
- Em seguida, sem qualquer portaria, ou ato de indiciamento, passou-se a ouvir pessoas.
- O acusado, durante a investigação do MP, não foi notificado para ser ouvido como prescreve o art. 6, V do CPP para o inquérito. Sequer teve ciência da investigação que houve contra ele.
- Foram requisitados documentos e estudos sobre a criança.
- Ao final, não houve relatório objetivo nos termos do art. 10, §1° do CPP, como ocorre no Inquérito Policial.
- Derradeiramente, foi feita a denúncia e o pedido de prisão do acusado. Destaca-se, contudo, que o mesmo membro do MP que presidiu os atos de investigação subscreveu a denúncia e o pedido de prisão. O resultado prático se equipara ao fato do Delegado de Polícia que presidiu o inquérito policial formular a denúncia. Ressalta-se, todavia, que o presente procedimento não atendeu às exigências aplicadas ao inquérito policial pelo CPP.
Da análise jurídica
Clarividente que o Sistema Processual Penal reflete o momento no qual se encontra um Estado. Partindo desse pressuposto, a nossa Constituição consagra, explícita e implicitamente, princípios que apontam a opção constitucional pelo sistema acusatório. Reforça tal opção a ratificação, pelo Congresso Nacional, de tratados e convenções internacionais de direitos humanos, como a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, os quais trazem diversos direitos e garantias que se amoldam a tal sistema.
O ponto crucial no Sistema Acusatório reside na separação das funções de cada um dos atores no Processo Penal, diferente da concentração das funções de investigar, acusar e julgar, típicas do Sistema Inquisitivo, como assinala ClausRoxin [2]. Da maneira que foi conduzida a investigação que serve de lastro à denúncia, não houve respeito à isenção necessária à formulação da opinio delicti, que restou viciada pela identificação de fontes de prova e os respectivos meios de obtenção, conduzidos única e exclusivamente pelo próprioParquet.
A priori, a Constituição de 1988 inaugura um novo momento de nosso Estado, qual seja, o Estado Democrático de Direito. Neste cenário exige-se um sistema de controle entre os poderes, chamado pela doutrina de Freios e Contrapesos, o qual não se restringe na fiscalização de um poder face o outro, pois ocorre também em outras searas e de forma mais ampla. Baseado nesse instituto, o MP é órgão fiscalizador externo da atividade policial, conforme art. 129, VII da CRF/88. Nesse sentido, trazemos à colação, a lição de Afrânio Silva Jardim[3]:
Temos asseverado, em outras oportunidades, que o verdadeiro Estado de Direito não pode prescindir de mecanismos de controle de seus órgãos públicos. Este controle deve ser efetivado seja pelas instituições da sociedade civil, de forma difusa, seja pelos próprios órgãos estatais.
Quando o MP assume para si investigação, age sem controle, fugindo dos ditames constitucionais, investiga com discricionariedade, que em excesso torna-se arbitrariedade, afastando o equilíbrio entre as partes, ferindo, por sua vez, o sistema acusatório previsto na Lei Fundamental Brasileira. Esse também é o entendimento de Aury Lopes Jr.[4], in verbis:
Na prática, o promotor atua de forma parcial e não vê mais que uma direção. Ao se transformar a investigação preliminar numa via de mão única, está-se acentuando a desigualdade das futuras partes com graves prejuízos para o sujeito passivo. É convertê-la em uma simples e unilateral preparação para a acusação, uma atividade minimista e reprovável, com inequívocos prejuízos para a defesa.
Não há que se discutir o peso de uma persecução penal. Diante disso, apesar do Inquérito Policial ser inquisitivo, a defesa pode atuar evitando maiores prejuízos futuros em certos casos. Ganha maior contorno a posição da impossibilidade de condução da investigação direta pelo MP fundamentada no desequilíbrio processual, em especial, com a dificuldade gerada no acesso, pela defesa, aos Autos da Investigação e nas diligências que poderiam ser solicitadas à autoridade que investiga.
Em igual sentido, Guilherme de Souza Nucci[5]:
O Ministério Público e a investigação criminal: embora seja tema polêmico, comportando várias visões a respeito, cremos inviável que o promotor de justiça (ou procurador da República), titular da ação penal, assuma, sozinho, sem prestar contas a ninguém e sem qualquer fiscalização, a postura de órgão investigatório, substituindo a polícia judiciária e produzindo inquéritos ou procedimentos próprios, visando à apuração de infrações penais e de sua autoria. A Constituição Federal foi clara ao estabelecer as funções da polícia – federal e civil – para investigar e servir de órgão auxiliar do Poder Judiciário – daí o nome polícia judiciária–, na atribuição de apurar a ocorrência e a autoria de crimes e contravenções penais (art. 144).
Sobre o tema também tivemos a oportunidade de inventariar os argumentos a favor e contra a investigação direta pelo MP[6]:
Os argumentos a favor, em síntese, são:
- a) O art. 129, I, da CF/1988 confere ao MP o poder de promover, privativamente, a ação penal pública e, portanto, quem pode o mais pode o menos, segundo a teoria dos poderes implícitos.
- b) O art. 129, VI, confere ao MP o poder de expedir notificações em procedimentos administrativos de sua competência (leia-se atribuição) e requisitar informações e documentos.
- c) Ainda o art. 129, VIII, atribui ao MP a requisição de diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, sendo lógico que quem pode “mandar fazer” poderia “fazer”, à luz da já referida teoria dos poderes implícitos.
- d) O art. 144 da CF/1988 não conferiu à polícia o monopólio da investigação.
- e) Há normas constitucionais de caráter principiológico que dão sustentação a esse entendimento, como a do art. 127 do CF/1988, que atribui ao Parqueta a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses indisponíveis.
- f) Afirma-se que, no direito comparado, a maioria dos países não mais discute se cabe à polícia o poder de investigar com exclusividade, pois o cerne de tal discussão reside em saber se é o Ministério Público ou o juiz instrutor que conduzirá a investigação.
- g) Por fim, no plano infraconstitucional, sustenta-se que o MP pode investigar diretamente à luz da Lei 8.625/1993, art. 26.
Os argumentos contrários à possibilidade de investigação criminal pelo MP podem ser sistematizados da seguinte forma:
- a) A Constituição não dotou expressamente o MP do poder de conduzir o inquérito;
- b) A Constituição atribuiu ao MP o poder de controle externo da atividade policial e não de condutor da investigação criminal;
- c) A legislação infraconstitucional não prevê, expressamente, o poder de investigação direta pelo MP, não sendo possível chegar a tal conclusão por meio de interpretação extensiva das disposições constitucionais e legais;
- d) Os projetos de emendas constitucionais que pretendiam dar tal poder ao MP foram rejeitados, o que evidencia a vontade do legislador em negar ao MP esta atividade de investigação direta;
- e) A investigação pelo MP sem previsão legal e sem controle daria azo ao arbítrio, ao voluntarismo e aos caprichos pessoais, além de não atender à impessoalidade e ao distanciamento crítico, necessários à análise sobre o oferecimento ou não da denúncia.
Na doutrina, o professor e promotor de justiça Fauzi Hassan Choukr[7], apesar de admitir a possibilidade de investigação pelo MP, também entende que não há disciplina legal vislumbrando a possibilidade de regramento por lei estadual, já que procedimento não é de exclusiva competência legislativa da União. No entanto, nega veementemente a possibilidade de regulamentação por ato normativo interno das agências públicas envolvidas, diante da reserva de lei.
O Conselho Nacional do Ministério Público publicou a Resolução 13/2006, que regulamenta a investigação direta pelo Ministério Público. A leitura da resolução permite concluir que o CNMP verdadeiramente extrapolou suas atribuições, já que o texto disciplina um inquérito policial no âmbito do Ministério Público, fixando prazos e, inclusive, dispondo que a conclusão do procedimento será em 90 dias, permitindo-se prorrogações sucessivas por decisão do próprio membro do MP que conduz a investigação. Note-se que tal disciplina é completamente diversa daquela citada pelo Código de Processo Penal, de forma que o CNMP não se limitou a regulamentar o art. 8.º da LC 75/1993, nem o art. 26 da Lei 8.625/1993 e, sim, legislou sobre processo, o que é de competência exclusiva do Congresso Nacional, sendo, portanto, inconstitucional a referida resolução.
No plano jurisprudencial a questão também está dividida. Há dois acórdãos da Segunda Turma do STF em sentidos diametralmente opostos, e o plenário ainda não decidiu a questão. Em 06 de maio de 2003, a Segunda Turma decidiu que:
A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art. 129, VIII). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar diligência nesse sentido à autoridade policial. Precedentes. O recorrente é delegado de polícia e, portanto, autoridade administrativa. Seus atos estão sujeitos aos órgãos hierárquicos próprios da Corporação, Chefia de Polícia, Corregedoria. Recurso conhecido e provido(RHC 81.326-DF, rel. Min. Nelson Jobim).
No entanto, em 10 de março de 2009, a mesma Segunda Turma decidiu:
Habeas corpus. Trancamento de ação penal. Falta de justa causa. Existência de suporte probatório mínimo. Reexame de fatos e provas. Inadmissibilidade. Possibilidade de investigação pelo Ministério Público. Delitos praticados por policiais. Ordem denegada. 1. A presente impetração visa o trancamento de ação penal movida em face dos pacientes, sob a alegação de falta de justa causa e de ilicitude da denúncia por estar amparada em depoimentos colhidos pelo Ministério Público. 2. A denúnciafoi lastreada em documentos (termos circunstanciados) e depoimentos de diversas testemunhas, que garantiram suporte probatório mínimo para a deflagração da ação penal em face dos pacientes. (…) 5. É perfeitamente possível que o órgão do Ministério Público promova a colheita de determinados elementos de prova que demonstrem a existência da autoria e da materialidade de determinado delito. Tal conclusão não significa retirar da Polícia Judiciária as atribuições previstas constitucionalmente, mas apenas harmonizar as normas constitucionais (arts. 129 e 144) de modo a compatibilizá-las para permitir, não apenas a correta e regular apuração dos fatos supostamente delituosos, mas também a formação da opinio delicti. 6. O 7. art. 129, I, da CF/1988, atribui ao parquet a privatividade na promoção da ação penal pública. Do seu turno, o Código de Processo Penal estabelece que o inquérito policial é dispensável, já que o Ministério Público pode embasar seu pedido em peças de informação que concretizem justa causa para a denúncia. 7. Ora, é princípio basilar da hermenêutica constitucional o dos “poderes implícitos”, segundo o qual, quando a Constituição Federal concede os fins, dá os meios. Se a atividade fim – promoção da ação penal pública – foi outorgada ao parquet em foro de privatividade, não se concebe como não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto, já que o CPP autoriza que “peças de informação” embasem a denúncia. 8. Cabe ressaltar, que, no presente caso, os delitos descritos na denúncia teriam sido praticados por policiais, o que, também, justifica a colheita dos depoimentos das vítimas pelo Ministério Público. 9. Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus (HC 91.661, rel. Min. Ellen Gracie).
No inteiro teor do voto, o rel. Min. Nelson Jobim faz uma exposição histórica de razões indicativas da ilegitimidade do Ministério Público para presidir a investigação, dentre as quais se destaca a rejeição pelo Congresso Nacional dos Projetos de Emenda Constitucional nº 945, 424, 1.025, 2.905, 20.524, 24.266 e 30.513, que pretendiam dotar o Ministério Público do poder de investigação.
De nossa parte entendemos o seguinte:
- A) O primeiro argumento contrário à investigação direta pelo MP decorre da interpretação literal da Constituição. No art. 129, I, o legislador escreveu: “promover, privativamente, a ação penal pública (…)”; enquanto que no inciso III a redação é: “promover o inquérito civil e a ação civil pública (…)”. Desta redação extraem-se duas conclusões. Primeiro, o legislador constituinte não atribuiu ao MP a promoção do inquérito penal como fez com o inquérito civil. Segundo, não deu atribuição privativa para a promoção da ação civil pública. Do contrário, teria formulado redação idêntica aos dispositivos simétricos.
- B) Ainda no plano constitucional, a teoria dos poderes implícitos deve ser vista com cautela, pois nem sempre quem pode o mais pode o menos. Para exemplificar, o juiz pode condenar o acusado (que seria o mais), mas não pode pedir a condenação (que seria o menos). Isto porque estamos diante de funções incompatíveis. A teoria dos poderes implícitos só é aplicável quando estivermos lidando com funções compatíveis entre si. No caso em exame, o munus do controle externo da atividade policial é incompatível com o de investigar, pois se quem tem o dever de controlar a investigação é quem investiga, a investigação fica sem controle, contrariando a vontade constitucional.
- C) O art. 26 da Lei 8.625/1993, em seu inc. I, atribui uma série de poderes investigatórios ao MP, mas estes se referem tão somente ao inquérito civil e aos procedimentos administrativos pertinentes (inciso I, parte final); ao contrário, no inciso IV do mesmo artigo, os poderes atinentes ao inquérito policial são ligados à requisição de diligência e de instauração do inquérito. Dessas premissas cremos que a investigação realizada pelo Ministério Público no atual sistema legal em vigor não possui amparo. Entendemos, por outro lado, que não haveria qualquer inviabilidade de o legislador atribuir ao MP essa atividade, desde que fossem estabelecidas regras relativas às hipóteses de cabimento e à forma de condução, bem como um órgão de controle que não fosse o Judiciário, vez que esta função é incompatível com a jurisdição. A possibilidade de investigação direta pelo Ministério Público não pode prescindir de controle, sob pena de violar a Constituição (art. 129, VII, da CF/1988).
Em resumo, a investigação pelo Ministério Público só terá validade quando houver lei, em sentido formal, que autorize expressamente a investigação. Ademais, a lei só teria validade constitucional se estabelecesse também uma forma de controle sobre a investigação realizada pelo Parquet, controle este que não arranhasse o sistema acusatório, ou seja, controle não judicial.
Por fim, cumpre dizer que a Resolução 13/2006 do CNMP não atende aos referidos dispositivos, apresentando flagrante inconstitucionalidade.
Nem se pode imaginar que a rejeição da PEC 37, por via oblíqua, teria dado ao MP o poder de investigar. Na verdade, o texto pretendia tão somente incluir um parágrafo (§10) no art. 144, deixando expresso a exclusividade investigativa pelas polícias. Desta forma, a rejeição daquele projeto não preenche o vazio normativo para atribuir ao Parquet poder que não tem e nunca teve a partir da Constituição de 1988.
Para nós, toda investigação direta, pautada na Resolução 13/2006 do CNMP, é inconstitucional, ilegal e nula.
Por outro lado, cumpre registrar que há casos com expressa previsão legal de investigação criminal pelo MP. É o que se observa, por exemplo, na LC75/1993, em seu art. 65, III, que dispõe sobre a competência do Corregedor-Geral do Ministério Público para instaurar inquérito contra integrante da carreira, e no parágrafo único do art. 41 da Lei 8.625/1993, ao prever que, na hipótese de indícios de infração penal recaindo sobre membro do Ministério Público, o Procurador-Geral de Justiça deve prosseguir com a apuração.
A conclusão de que a função investigativa é vedada, igualmente encontra defensores no próprio quadro doParquet, como leciona Renato Brasileiro de Lima, Promotor Militar[8]:
Independentemente dessa discussão, é certo dizer que as atividades investigatórias devem ser exercidas precipuamente por autoridades policiais, sendo vedada a participação de agentes estranhos à autoridade policial, sob pena de violação do art. 144, §1º, IV da CF/1988, da Lei 9.883/1999 e dos arts. 4º e 157 e parágrafos do CPP.
Da análise crítica do procedimento que lastreia a denúncia
Da inconstitucionalidade da investigação direta pelo MP
A partir das ideias acima expostas é possível concluir que o procedimento investigativo em exame ofende o texto constitucional e viola o princípio da legalidade, notadamente na perspectiva de Hely Lopes[9], no sentido de que, enquanto o particular pode fazer o que a lei não proíbe, a legalidade impõe que o poder público só pode fazer o que a lei autoriza. Com efeito, sem previsão legal e em desacordo com a missão constitucional de controle da investigação pelo MP, imperioso reconhecer a invalidade do procedimento.
No Estado Democrático de Direito a Constituição é o fundamento de validade de todo ato do poder público. A ofensa à Lei Fundamental importa invalidade, ou seja, os atos não podem produzir nenhum efeito, inclusive o de servir de justa causa para a denúncia.
A incompatibilidade do procedimento com a estrutura exigível para a investigação.
Todavia, não é apenas esta a razão. O indigitado procedimento viola, ainda, a estrutura da investigação presente no ordenamento jurídico, tanto na Constituição, como no CPP, na Lei 12.830/2013 e na própria resolução do CNMP, como se verá até o final.
A súmula vinculante n° 14 do STF, de igual maneira, é, obliquamente, violada, vez que referido verbete consagra a garantia constitucional do indiciado de conhecer e acompanhar, ainda que parcialmente, a investigação que pesa sobre ele. No entanto, na medida em que o procedimento investigatório exclui o investigado, transforma-o em um objeto, retirando sua possibilidade de atuar como sujeito, vulnera-se, de uma só vez, a garantia constitucional de defesa e a própria dignidade humana, na perspectiva de raiz kantiana. Dürig defini as formas de violação da dignidade a partir da ideia da fórmula-objeto, ou seja, a dignidade humana é aviltada quando o homem é reificado[10].
Da falta de indiciamento, de oitiva do indiciado e de relatório
Como se extrai dos autos, o investigado não foi ouvido como ocorre no Inquérito Policial, tampouco tomou ciência da investigação. Tal fato viola as garantias do ser humano diante de uma investigação, garantias estas previstas, repita-se, na Constituição, no CPP e na Lei 12.830/2013.
Note-se, por exemplo, que se encerrou a sindicância do GAP em maio de 2013 e o MP deu andamento na investigação em julho de 2013 (fls. 05, 07 e 09), quando já estava em vigor a Lei 12.830/2013.
Referida lei estabelece em seu artigo 2°, § 1° o seguinte:
- 1o Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
Sem que ficasse registrada qualquer informação sobre a existência de inquérito ou não, conforme determinado no primeiro despacho do MP (fls. 04), o Parquet, mesmo na vigência da Lei 12.830/13, passou a conduzir diretamente a investigação, olvidando as prescrições da referida lei.
Destaque-se que no procedimento investigatório em exame não se promoveu o indiciamento que se traduz em exigência da referida lei nos termos do §2° do art. 2°, vale citar:
- 6o O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.
O indiciamento é ato importantíssimo, cuja ausência de previsão legal até então há muito era sentida e criticada pela doutrina[11]. Em boa hora a legislação brasileira, embora timidamente, seguindo o exemplo de outros países, como Portugal que prevê em seu CPP o ato formal de “constituição de arguído”[12], determinou o indiciamento como ato formal e fundamentado, que exige análise técnico-jurídica do fato, o que não foi observado pelo MP, que simplesmente não procedeu ao ato de indiciamento.
Por outro lado, o art. 6°, V do CPP, determina que a autoridade policial proceda à oitiva do indiciado com observância das prescrições legais para o interrogatório judicial, ou seja, respeito ao direito ao silêncio. De igual maneira, o MP não notificou o investigado para dar-lhe ciência da investigação e não procedeu a sua oitiva.
Desta forma, inviabilizou também o cumprimento do art. 14 do CPP, ou seja, vulnerando uma garantia de defesa do investigado na investigação, vale transcrever:
Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.
Por fim, o procedimento levado a cabo pelo MP não cumpriu a prescrição do art. 10, §1° do CPP, ou seja, não fez minucioso relatório do que tiver sido apurado.
Da instituição de VPI através do GAP
Com base no citado § 3.º, do art. 5.º, do CPP, criou-se uma prática criticável de se efetuar verdadeiras sindicâncias (procedimentos administrativos investigatórios), dando-lhes o nome de Verificação Preliminar de Inquérito ou Verificação da Procedência das Informações. Ocorre que, seja qual for o nome que se dê, estaremos sempre diante de um procedimento investigatório e, por tal razão, submetido ao controle do Ministério Público, não podendo ser arquivado em sede policial. Neste sentido, sinaliza a doutrina abalizada de Afranio Silva Jardim[13].
No caso em exame, o que se fez na prática foi instaurar uma verdadeira VPI no âmbito do GAP, ou seja, uma VPI conduzida por policiais militares que atuam junto ao Ministério Público.
Desta forma, de uma só vez viola-se a concepção constitucional e legal de investigação externamente controlada, como também se subverte o art. 144 da Constituição, dotando a polícia militar de funções que não possui, salvo para os crimes militares.
Da violação da própria Resolução 13/2006 do CNMP
Ainda que admitíssemos a constitucionalidade e legalidade da investigação direta pelo MP, o caso dos autos, ainda assim, não teria solução distinta. Isto porque, adotando-se tal entendimento, seria indiscutível que o marco legal do procedimento investigatório pelo Parquet seria a Resolução 13/2006 do CNMP.
Ocorre que o procedimento investigatório levado a efeito pelo MP não respeitou sequer as regras da referida resolução, violando vários de seus artigos.
Prescreve o art. 4° da referida resolução o seguinte:
Art. 4º O procedimento investigatório criminal será instaurado por portaria fundamentada, devidamente registrada e autuada, com a indicação dos fatos a serem investigados e deverá conter, sempre que possível, o nome e a qualificação do autor da representação e a determinação das diligências iniciais.
Note-se que no procedimento não há portaria de instauração, tampouco qualquer ato formal fundamentado.
A fundamentação neste caso seria não só sobre os elementos que determinam a investigação, como também o porquê de se ter partido para a investigação direta e não por meio de requisição de instauração de inquérito. Note-se que a investigação direta foi iniciada sem que houvesse qualquer informação sobre existência ou não de inquérito. Ao que parece quem, de fato, iniciou a investigação foi o GAP e não o MP.
Tal fato permite uma seletividade investigativa. Como saberemos os critérios determinantes sobre quando o MP requisita a instauração do inquérito e quando irá investigar diretamente? Ao que parece, a fundamentação exigida pela resolução deve tratar deste tema também.
Prosseguindo, a resolução determina ainda:
Art. 5º Da instauração do procedimento investigatório criminal far-se-á comunicação imediata e escrita ao Procurador-Geral da República, ProcuradorGeral de Justiça, Procurador-Geral de Justiça Militar ou ao órgão a quem incumbir por delegação, nos termos da lei.
Neste caso, de igual maneira, não houve qualquer registro nos autos sobre o cumprimento de tal exigência do art. 5° da Resolução 13/2006.
O que é mais grave é a negligência para com o art. 7° da referida resolução, que é norma tendente a dar efetividade às garantias da defesa na investigação:
Art. 7º O autor do fato investigado será notificado a apresentar, querendo, as informaçõesque considerar adequadas, facultado o acompanhamento por advogado.
Aqui também, inexplicavelmente, o investigado não foi notificado para apresentar informações, prestar declarações, não tendo sido informado, inclusive, da possibilidade de se ver assistido por advogado.
Como reflexo da garantia constitucional estabelecida no art. 5°, LVXXVIII, temos as regras sobre o prazo de duração do inquérito e também dos procedimentos investigatórios do MP, conforme art. 12 da Resolução 13/2006:
Art. 12 O procedimento investigatório criminal deverá ser concluído no prazo de 90 (noventa) dias, permitidas, por igual período, prorrogações sucessivas, por decisão fundamentada do membro do Ministério Público responsável pela sua condução.
Como se extrai dos autos, não há qualquer decisão fundamentada sobre a duração do procedimento investigatório para além do prazo da resolução, demonstrando a falta de controle sobre a mesma, concretizando a preocupação com a investigação direta que possibilita tal resultado.
Por fim, o art. 17 da resolução ressalta a necessidade de preservar as garantias do indivíduo, bem como a aplicação subsidiária da legislação, destacadamente do CPP:
Art. 17 No procedimento investigatório criminal serão observados os direitos e garantias individuais consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil. aplicando-se, no que couber, as normas do Código de Processo Penal e a legislação especial pertinente.
Neste particular a resolução também não foi observada, pois as regras sobre inquérito constantes do CPP em tudo seriam aplicáveis à investigação direta do MP, o que não foi feito.
Desta forma, este arremedo de inquérito e VPI afigura-se inconstitucional, ilegal, violador da resolução do CNMP e, portanto, imprestável para lastrear a denúncia, inservível como justa causa para a ação penal.
Destarte, não há alternativa senão a rejeição liminar da denúncia, ex vi, art. 396 c/c art. 395, III do CPP.
DISPOSITIVO
Isto posto, REJEITO A DENÚNCIA formulada em face de C. B., relativamente ao crime do art. 217-Ad CP, ex vi, art. 395, III C/C art. 396, ambos do CPP. Indefiro o pedido de prisão.
PRI. Após o trânsito dê-se baixa e arquive-se.
São Gonçalo, 30 de abril de 2015.
ANDRÉ LUIZ NICOLITT
Juiz de Direito
[1]Os primeiros membros do Ministério Público surgiram no reinado de Felipe III (1245-1285), da França, sendo denominados procureurs du roi (Procuradores do Rei). Tratavam-se de juízes, ou magistrados especiais, designados para proceder à acusação. Mas foi no reinado seguinte, de Felipe IV, o Belo (1285-1314), que o Ministério Público surgiu como instituição. A Ordenança de 23 de março de 1303 é considerada sua certidão de nascimento, regulando as competências dos Procuradores do Rei e instituindo o Ministério Público como magistratura especial, encarregada exclusivamente de perseguir, de ofício, os delinquentes de delitos conhecidos (ARAÚJO, Kleber Martins A origem histórica do Ministério Público. Revista ANPR online, v. 8, p. 6-6, 2009.)
[2] ROXIN, Claus. DerechoProcesal Penal. Trad. Gabriela E. Córdobra Y Daniel R. Pastor. Buenos Aires: Editores del Puerto S.R.L., 2000, p. 86.
[3] JARDIM, Afrânio Silva. O Ministério Público e o controle da atividade policial. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999, p.337.
[4] LOPES JR, Aury. Direito de defesa e acesso do advogado aos autos do inquérito policial: desconstituindo o discurso autoritário. In BONATO, Gilson (org). Processo Penal: leituras constitucionais. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p.97.
[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. Rio de Janeiro: Ed. Forense. 13ª Ed. Versão digital, 2014. Posição 1578.
[6]NICOLITT, André Luiz. Manual de Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 5ª edição, 2014. p. 176.
[7]CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal. comentários consolidados e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 22.
[8]LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus. 2013. p.76.
[9] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Malheiros, 2005, pág 52.
[10] NICOLITT, Manual… op. cip., p. 114-117.
[11] NICOLITT, Manual…op. cit., p. 193.
[12] SILVA, Germano Marques da. Curso de Processo Penal I. Lisboa, Verbo, p. 301-322.
[13]JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 187-
203.
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