Irineu Herreira viveu um pesadelo numa comunidade terapêutica para tratar do alcoolismo
Sob protestos, Governo pretende criar normas para o funcionamento dessas instituições
Irineu Herreira, que ficou internado em uma comunidade terapêutica. / VICTOR MORIYAMA
Quando a família do vigia Irineu Herreira, de 68 anos, encontrou na internet a comunidade terapêutica Voltar a Viver, no município de Cajamar (Grande São Paulo), ficou impressionada com o serviço que o pai, alcoólatra, teria à disposição para se tratar do vício. Seriam oferecidas cinco refeições por dia, uma academia equipada e piscina. Ele dividiria o quarto com mais um dependente em tratamento e teria terapeutas, psicólogos e enfermeiros à disposição. “Brinquei que era um Spa”, conta a filha Rosmary Herreira Jacinto, que assinou o contrato em que se comprometia a pagar 5.400 reais, divididos em seis parcelas, pelos quatro meses de internação do pai.
Mas bastou a família ir embora para o pesadelo do vigia começar. Ele foi levado para um quarto, onde já dormiam outras 11 pessoas, conta ele. Sem cama para todos, foi colocado para dormir na “praia” –expressão usada por presidiários para se referir ao pedaço de chão onde ficam os colchonetes dos novatos, também usada ali. A comida era uma “lavagem”, define ele. O chuveiro eram dois “canos velhos”, um com água quente e outro com água fria. E, às vezes, gritos eram ouvidos vindos de um “quarto de castigo”. Os mais rebeldes recebiam um coquetel de drogas chamado de “Danoninho”: dormiam um dia e uma noite inteiros. A piscina e a academia eram apenas de fachada.
Muita casas terapêuticas funcionam de forma correta, mas relatos de irregularidades nessas instituições sem fins lucrativos não são incomuns. Na maioria das vezes, trata-se de casas ligadas à Igrejas Católica ou igrejas evangélicas, onde os próprios dependentes de drogas, em estágio mais avançado de recuperação, conduzem os demais pelo caminho da abstinência do vício. O tratamento, muitas vezes, é baseado na leitura da bíblia e o consumo da droga é creditado à influência de espíritos malignos. Não há um número oficial de quantas dessas instituições existem no Brasil, mas um Censo de 2011 da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) aponta que são cerca de 1.800. Em 2011, 68 delas foram fiscalizadas pelo Conselho Federal de Psicologia, que apontou que a regra nas comunidades visitadas era o tratamento sem recursos terapêuticos, com uso de castigos, torturas e a imposição religiosa.
Esse tipo de instituição se tornou o centro das atenções no final de 2011, quando o Governo Dilma Rousseff (PT) lançou o programa “Crack, É Possível Vencer”. Desde então, essas entidades, que não faziam parte da rede de atenção aos dependentes de drogas do Governo federal, passaram a ser financiadas pelo poder público. Em 2013, o Governo Rousseff liberou às entidades 82 milhões de reais. Em 2014, o valor subiu para 99,6 milhões, destinado a 375 entidades, que têm, juntas, 8.300 vagas. Órgãos Estaduais e municipais também as utilizam. O Governo de São Paulo, por exemplo, criou o programa Recomeço, em 2013, uma política baseada na parceria com essas comunidades terapêuticas em que a internação à força de dependentes de droga é permitida.
As entidades existem, as famílias as têm como referência em muitos casos e é nossa obrigação regulamentar o funcionamento dessas entidades
Vitore Maximiano, da Senad.
O mar de dinheiro investido nessas parcerias, entretanto, foi depositado sem que elas tenham regras claras de funcionamento, algo que, agora, o Governo federal pretende regular por meio de uma portaria doConselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (CONAD), que deverá ser lançada nos próximos meses, apesar da resistência de entidades que abordam a questão das drogas, que veem na medida um incentivo para que o poder público invista mais ainda nelas.
Como não são consideradas unidades de saúde, mas equipamentos assistenciais, já que não são baseadas em regras médicas, elas são fiscalizadas apenas pelas sobrecarregadas vigilâncias sanitárias municipais.
As raras visitas tornam possíveis casos como o da Voltar a Viver, que existia desde pelo menos 2012 e chegou a ter parcerias com o poder público, conta o defensor Raul Carvalho Nin Ferreira, do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo.
Foi o núcleo que, após denúncias, visitou a comunidade em dezembro do ano passado e ouviu relatos de tortura e maus tratos. Dias antes da visita, um grupo de internos havia se rebelado e fugido do local. Irineu viveu o episódio, que ocorreu pouco antes de a família encontrá-lo desnutrido, com pneumonia e uma forte diarreia e retirá-lo de lá. “Se ficasse mais um mês, não teria sobrevivido”, diz. A Justiça mandou interditar a clínica e, quando a Guarda Municipal chegou para cumprir a ordem judicial, encontrou um interno morto. A reportagem tentou contato com a entidade, mas ninguém atendeu os telefones.
"É o fomento a uma política higienista", critica especialista
T.B
Diante da epidemia de crack nas grandes metrópoles e das críticas de que o poder público tem falhado em resolvê-la, as comunidades terapêuticas passaram a ser vistas como uma alternativa para retirar os dependentes das ruas. A legislação não permite longas internações, no máximo são 90 dias em equipamentos de saúde, graças a uma regra estabelecida em 2001 como resultado da mobilização do movimento antimanicomial, que visa destruir a concepção de segregação dos doentes mentais impostas pelos manicômios. A norma prevê que "a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes".
Para muitos críticos, as comunidades se tornaram hoje os novos manicômios. “O Governo tem procurado investir cada vez mais nessas instituições, que pregam o isolamento e a abstinência. É o fomento a uma política higienista, que visa tirar essa população do meio da sociedade”, diz Alessandra Souza, diretora do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS). O Governo, por sua vez, diz que os espaços não são voltados para um tratamento de saúde e, sim, para o acolhimento de pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade e precisam ser retiradas de seus ambientes, explica o secretário Vitore Maximiano, da Senad.
A portaria que o CONAD deve lançar nos próximos meses que traz essas novas regras de funcionamento tem enfrentado o protesto de instituições que abordam o tema da dependência química, como o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Conselho Federal de Psicologia e o próprio CFESS.
Entre as críticas das entidades está o fato de que as novas regras autorizam a internação por até 12 meses e permitem o “desenvolvimento da espiritualidade”, o que autorizaria, para elas, a imposição religiosa que acontece em muitas unidades. Também não especifica qual a equipe que deve fazer parte desses locais e nem as sanções sofridas em caso de irregularidades. Para o CFESS, o tratamento dos dependentes químicos deve ser feito nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), para onde o viciado vai algumas vezes na semana para passar por atendimento psicológico e permanece em contato com a sua realidade social, e não excluído da sociedade.
"As famílias brasileiras têm, em muitos casos, a comunidade terapêutica como sua referência. A obrigação do Estado brasileiro é regulamentar o funcionamento dessas entidades. O Brasil não pode não reconhecer esse problema. As entidades existem, as famílias as têm como referência em muitos casos e é nossa obrigação regulamentar o funcionamento dessas entidades", argumenta o secretário da Senad. "Temos que estruturar cada vez mais os serviços brasileiros com abordagens diversificadas."
Fonte: El País. 28.03.2015.
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