Por Welliton Caixeta Maciel
Experiências de controle com a manutenção de pessoas em seu domicílio foram utilizadas pioneiramente no Canadá, na década de 40. Contudo, a monitoração eletrônica de pessoas, tal como a conhecemos hoje, foi criada na década de 60, mas passou a ser utilizada somente duas décadas depois quando se popularizou principalmente nos Estados Unidos, inserida na lógica da disseminação de medidas adicionais direcionadas à fiscalização das decisões judiciais atinentes ao exercício do poder punitivo estatal, com a intenção explícita de evitar que o sujeito vigiado/monitorado continuasse sendo uma fonte de ‘riscos’ à sociedade; ou seja, uma forma concreta de restrição da liberdade, sem necessariamente implicar em encarceramento. Desde então, a medida passou a ser empregada em inúmeros países da Europa, África, Ásia, Oceania, América do Sul e, principalmente, América do Norte[1].
Aplicada no sistema prisional a vigilância eletrônica tem sido associada, basicamente, a três finalidades principais: a detenção, a restrição e a vigilância propriamente dita. A detenção tem sido seu propósito mais comum, visando ao controle acerca da permanência do indivíduo em local predeterminado (por exemplo, sua residência, tornando mais eficaz a prisão domiciliar). Utilizada também como meio de restringir a liberdade, serve para impedir que o infrator se aproxime de determinadas pessoas ou frequente certos locais (em se tratando de crimes nos quais a pessoa da vítima ou o lugar do seu cometimento assume papel relevante). Finalmente, sob o prisma da vigilância, o sistema evita possíveis fugas, controlando, porém sem restringir, a movimentação do sujeito.
Atualmente, quatro opções técnicas de vigilância eletrônica estão disponíveis no mercado: a) adaptação de uma pulseira; b) adaptação de uma tornozeleira; c) adaptação de um cinto; d) adaptação de um microchip implantado no corpo humano. Os dados contidos nesse chip podem ser transmitidos via satélite, informando a localização exata de quem o esteja portando.
No Brasil, presenciamos a incorporação e a utilização da vigilância eletrônica tanto na modalidade câmeras de vigilância (de espaços públicos e privados) quanto na modalidade tornozeleiras eletrônicas, esta última como alternativa exequível nos casos de prisões processuais (prisão cautelar) e domiciliares, bem como auxiliando no acompanhamento das condições impostas no livramento condicional, da saída temporária do estabelecimento penal e do trabalho externo.
A título de conhecimento e ilustração comparativa, cito o caso de dois outros países na utilização de tais mecanismos: Canadá e França.
Entre 1987 e 2007, os programas de monitoramento eletrônico foram implementados em cinco províncias do Canadá (Colúmbia Britânica, Saskatchewan, Alberta, Ontário e Terra Nova; cada uma com regime de implementação diferente). Em 2005, no conjunto do país, havia 154.000 adultos ‘sob guarda’ ou ‘monitoramento eletrônico’, em diferentes outras províncias tanto do ‘Canadá inglês’ quanto do ‘Canadá francês’ com práticas penais e prisionais peculiarmente específicas.
Ressalte-se, no entanto, que, segundo Vacheret e Gendrou (2008: 111)[2], desde 1995, a taxa de encarceramento das prisões estaduais não cessou de aumentar. O gráfico a seguir ilustra a taxa de encarceramento no país entre os anos 1991 e 2009.
Gráfico 1 – População Prisional Total – Canadá – 1991-2009
Fonte: ICPS/Londres.
Em março de 2012, segundo estatísticas do Correctional Service of Canada (CSC) do Ministry of the Solicitor General, fornecidas ao International Centre for Prision Studies (ICPS), com sede em Londres, o país possuía 40.544 presos, enquanto a capacidade do seu sistema prisional era de 38.604 vagas[3].
É nesse contexto que a vigilância eletrônica tem sido apresentada não somente como medida alternativa ao encarceramento, mas também como medida intermediária entre a privação de liberdade e a restrição de direitos.
Segundo Oliveira (2007: 38)[4], o monitoramento eletrônico no Canadá abrange duas categorias de usuários: os condenados a uma pena de sete dias e seis meses de prisão, e os presos, cujos resquícios de pena não excedem quatro meses. Todavia, nem todos/as fazem jus ao benefício, ficando afastada a medida para aqueles/as que cometeram crimes sexuais ou crimes com violência, bem como àqueles/as que não procuram uma atividade permanente. Segundo o autor, a medida é adotada, geralmente, para pessoas condenadas pelo crime de embriaguez ao volante ou por dirigir sem habilitação, delinquentes grávidas, infratores portadores do vírus da AIDS e de outras doenças infectocontagiosas, assim como para doentes terminais ou idosos.
Já na França, que em julho de 2014 possuía uma população prisional de 68.295 presos (mesmo com um sistema prisional com capacidade para 57.712)[5], a ‘vigilância eletrônica móvel’ por meio de um bracelete ou tornozeleira (“le placement sous surveillance électronique móbile” – PSEM) tem consistido em um sistema aplicado não apenas como alternativa ao encarceramento, mas podendo ser utilizado durante o procedimento de instrução do processo, e também continuar após o fim da pena de prisão, primeiro como parte de uma supervisão sócio-judicial e, em seguida, como parte da “supervisão de segurança” (“surveillance de sûreté”).
Gráfico 2 – População Prisional Total – França – 1992-2010
Fonte: ICPS/Londres.
O monitoramento eletrônico de pessoas foi estabelecido no país por meio da Lei 2005-1549, de 12 de dezembro de 2005[6], e, posteriormente, ampliado pela Lei 2008-174, de 25 de fevereiro de 2008[7], sendo que várias tecnologias vêm sendo utilizadas. A mais conhecida é uma espécie de relógio de pulso (ou bracelete eletrônico) que funciona com sistema de GPS permitindo a comunicação entre uma central de monitoramento e a pessoa monitorada. Seus dados são mantidos durante todo o período de vigilância além de guardados por um período de dez anos[8].
Estão sujeitas a esse tipo de monitoramento eletrônico na França as seguintes pessoas: aquelas acusadas ou postas à prova (do francês “mise en examen” – sob fortes suspeitas de cometimento de algum crime ou delito) por determinação do juiz de instrução (“juge d’instruction”) ou do juiz das liberdades e detenção (“juge des libertés et de la détention”); e aquelas que foram condenadas por uma ou mais penas privativas de liberdade cuja duração não exceda um ano ou que possuam pena remanescente igual ou inferior a um ano.
No Brasil, por sua vez, que atingiu em dezembro de 2013 a cifra de 581 mil presos (segundo o Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça – DEPEN/MJ), é relativamente recente a discussão a respeito da utilização do monitoramento eletrônico de pessoas[9].
Gráfico 3 – População Prisional Total – Brasil – 1995-2010
Fonte: ICPS/Londres.
Em 2001, começaram a surgir no Congresso Nacional projetos de lei direcionados à positivação do monitoramento eletrônico no direito brasileiro. Dentre eles, iniciaram junto à Câmara dos Deputados: o Projeto de Lei 4.342/01, do Deputado Marcus Vicente Garcia (PSDB/ES); e o Projeto de Lei 4.834/01, do Deputado Vittorio Medioli (PSDB/MG).
Em 2008, uma série de iniciativas governamentais buscou evidenciar a importância da introdução do uso do monitoramento eletrônico. Até que, em outubro de 2009, o Conselho Nacional de Justiça manifestou-se favoravelmente à substituição do cumprimento das penas privativas de liberdade em regimes semiaberto e aberto pelo monitoramento eletrônico e, em 15 de junho de 2010, foi sancionada a Lei 12.528 autorizando o monitoramento eletrônico de pessoas, o que poderia ser feito por meio de pulseiras e tornozeleiras.
Recentemente, após aprovação no Congresso Nacional, foi sancionada pela Presidência da República a Lei 12.403/2011, que entrou em vigor no dia 4 de julho de 2011, prevendo um conjunto de medidas cautelares diversas da prisão preventiva, entre as quais a chamada ‘monitoração eletrônica’. Segundo Oliveira e Azevedo (2011: 105-106)[10], “(…) trata-se de sistematização similar àquela havida em outros países, como Portugal, em que, ao lado da prisão preventiva, há um vasto conjunto de medidas de coação, constituindo-se a prisão preventiva como última alternativa dentro do rol das medidas a serem aplicadas, quando as menos gravosas mostrarem-se inadequadas ou insuficientes, no caso concreto”.
A referida lei, entretanto, não regulamentou o monitoramento eletrônico, delegando aos Estados a competência para tanto, no âmbito dos órgãos de fiscalização do sistema prisional (MAYA, 2011)[11]. Neste sentido, a monitoração eletrônica de pessoas em situação de cumprimento de medidas judiciais tem sido apontada como alternativa e, até o presente momento, foi implementada e encontra-se em funcionamento nas seguintes Unidades da Federação (UFs): Acre, Alagoas, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo. Não implementaram: Amapá, Bahia, Mato Grosso do Sul, Roraima, Sergipe e Tocantins; e o Distrito Federal[12].
A utilização de mecanismos de vigilância e controles eletrônicos nos sistemas prisionais canadense e francês pode nos auxiliar na reflexão sobre os rumos da política de monitoração eletrônica no contexto brasileiro, por exemplo, não apenas pela questão da comercialização em escala mundial de tecnologias de vigilância e controle, uma das evidências empíricas do fenômeno da globalização. Observadas as peculiaridades sociais, legislativas, culturais e jurídicas de cada um desses três países (localizados em regiões distintas da parte ocidental do globo), as possibilidades de utilização do monitoramento eletrônico e os argumentos (ou discursos de justificativa) para tal parecem, de certo modo, similares ou convergentes: descarcerização (diminuição da população encarcerada), medida alternativa à pena de prisão, menor custo para o Estado[13].
A partir dessa perspectiva comparativa, tenho argumentado que mecanismos, dispositivos e/ou medidas de controle (inclusive eletrônicos) sobre os corpos têm sido incrementados nestas (e em outras) sociedades (contemporâneas) nos últimos anos, sobretudo no plano das políticas criminais e com reflexos em seus sistemas de justiça e sistemas prisionais, sob a justificativa do enfrentamento à dinâmica de endurecimento penal e ao controle da criminalidade, como medida descarcerizante (ou, simplesmente, alternativa à prisão), com evidente fortalecimento da lógica (e do argumento) do controle absoluto do (e pelo o) Estado sobre os extratos ou camadas menos favorecidos da população (sempre queixosos da estigmatização a ela inerente).
Com isto, o monitoramento eletrônico de pessoas tem se constituído em mais um recurso tecnológico dentro do quadro mais amplo das sociedades de vigilância constantemente guiadas pela cultura do controle como pressuposto fundamental para a manutenção do poder, da ordem, dos interesses, da segurança etc.[14]. Todavia, os tempos são outros para as prisões e sinalizam uma mudança de paradigmas, com o aprimoramento e a potencialização da disciplina e dos mecanismos de controle, ao que tenho chamado de (re)significação do cárcere a partir da ideia de ‘virtualidade das prisões’[15].
Enfocando a questão prisional brasileira (com todos os problemas que lhe são característicos, dentre eles: sobrecarga populacional, carências estruturais em todas as esferas, elevada frequência na decretação de prisões cautelares etc.), bem como diante da preocupação antiga com outras formas de punição descentradas da pena privativa de liberdade, apenas confirma-se a necessidade de alternativas ao encarceramento (provisório ou definitivo) calcadas na defesa dos direitos humanos e dos direitos fundamentais dos cumpridores contra qualquer espécie de violência arbitrária, o que pressupõe inevitavelmente uma maior limitação do poder punitivo do Estado.
A monitoração eletrônica de pessoas em situação de cumprimento de medidas judiciais, entretanto, ainda é cercada de muito ceticismo no país, tanto pelo segmento punitivista quanto pelo segmento garantista, o que faz com que de ambos os lados ainda haja resistência à sua aplicação como medida alternativa à prisão preventiva[16]. Tendo a concordar com Souza (2013), contudo, que vivenciamos uma nova fase do Direito Penal e Processual Penal onde não deve haver brechas para tecnofobias, desde que se criem espaços para todos e quaisquer tipos de esclarecimentos necessários sobre as tecnologias utilizadas e seus propósitos pragmáticos. Além disso, faz-se necessária a afirmação de limites às mesmas com modelos políticos de gestão muito bem delineados para evitar a expansão injustificada do controle penal.
__________
Texto apresentado na mesa de debate “Tornozeleira Eletrônica”, I Seminário de Justiça Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, realizado de 20 a 22 de maio de 2015.
[1] Cf. CAIXETA MACIEL, Welliton. 2014a. Os “Maria da Penha”: uma etnografia de mecanismos de vigilância e subversão de masculinidades violentas em Belo Horizonte/MG. Dissertação de Mestrado (Antropologia). Brasília: Universidade de Brasília.
[2] VACHERET, Marion; e GENDROU, Josiane. 2008. O monitoramento eletrônico no Canadá – Retrato de um sistema. In Monitoramento Eletrônico: uma alternativa à prisão? Experiências Internacionais e Perspectivas do Brasil. Brasília: Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Ministério da Justiça, Brasil.
[3] Para maiores informações, Cf.: aqui, ou o site do Correctional Service of Canada (CSC).
[4] OLIVEIRA, Edmundo. 2007. Direito Penal do Futuro: a prisão virtual. Rio de Janeiro: Forense.
[5] Dado obtido junto à Direction de l’Administration Pénitentiaire do Ministère de la Justice et des Libertés. Para maiores detalhes, cf. aqui ou também disponível aqui.
[6] Cf. “Loi n° 2005-1549 du 12 décembre 2005 relative au traitement de la récidive des infractions pénales” (veraqui).
[7] Cf. “LoI n° 2008-174 du 25 février 2008 relative à la rétention de sûreté et à la déclaration d’irresponsabilité pénale pour cause de trouble menta”l (ver aqui).
[8] “Délibération n° 2008-183 du 3 juillet 2008 portant avis sur le projet de décret modifiant l’article R. 61-12 du code de procédure pénale relatif au placement sous surveillance électronique mobile dans le cadre d’une surveillance de sûreté” (ver aqui).
[9] Em dezembro de 2012, a população encarcerada no Brasil atingia algo em torno de 548.003 presos. Naquele momento, a capacidade do sistema prisional era de 318.739 vagas.
[10] OLIVEIRA, Janaína Rodrigues; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. 2011. O monitoramento eletrônico de apenados no Brasil. Revista Brasileira de Segurança Pública. São Paulo, Ano 5, Edição 9 – ago/set 2011.
[12] Levantamento Departamento Penitenciário Nacional, Ministério da Justiça, maio de 2015.
[13] Para maiores detalhes sobre peculiaridades sociais dos três contextos e os argumentos que levaram à escolha dos mesmos, cf. CAIXETA MACIEL, Welliton. 2014b. Da Estigmatização do Controle à (Re)significação do Cárcere: uma etnografia das redes, instituições e mecanismos de vigilância eletrônica e política criminal no Brasil, França e Canadá, em perspectiva comparada. Projeto de Tese de Doutorado (Sociologia). Brasília: mimeo.
[14] Cf. GARLAND, David. 2005. La Cultura del Control: crimen y ordem social en la sociedad contemporánea. Barcelona: Gedisa.
[15] Cf. CAIXETA MACIEL, 2014a.
[16] Cf. SOUZA, Bernardo de Azevedo e. 2013. O Monitoramento Eletrônico como Medida Alternativa à Prisão Preventiva. Dissertação de Mestrado em Ciências Criminais. Porto Alegre: PUCRS.
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