Conforme noticiado nesta ConJur, o plenário do STF entendeu ser constitucional a investigação preliminar feita diretamente pelo Ministério Público. A polêmica é antiga e várias já foram as decisões proferidas pelas turmas, mas agora o reconhecimento é do plenário do STF. A decisão não foi unânime e o voto vencido do Ministro Marco Aurélio é enfático no sentido de que o MP não tem poderes para fazer sua própria investigação, senão de acompanhar o desenrolar do inquérito, requerer diligências e exercer o controle externo, enfim, os poderes tradicionalmente reconhecidos pelo Código de Processo Penal. Mas destacou: “O que se mostra inconcebível é um membro do Ministério Público colocar uma estrela no peito, armar-se e investigar. Sendo o titular da ação penal, terá a tendência de utilizar apenas as provas que lhe servem, desprezando as demais e, por óbvio, prejudicando o contraditório”.
O entendimento prevalente, contudo, foi no sentido da legalidade, desde que “respeitados os direitos garantidos pela Constituição, o devido processo legal e a razoável duração do processo.” E é exatamente aqui que gostaríamos de situar a discussão: com essa decisão, acabaram os problemas da investigação preliminar? Está resolvida a crise do inquérito?[1] Claro que não. Temos agora ‘outro’ longo problema a ser enfrentado: como será essa investigação? E ainda, qual será o papel da polícia judiciária neste cenário e como será a relação polícia/MP?
Comecemos pela questão o relacionamento polícia/MP. Continuaremos tendo o inquérito policial e, paralelamente, a possibilidade de o MP investigar através do seu próprio procedimento. Mas como se dará a seleção dos casos penais a serem investigados por cada órgão? Posso registrar o roubo/furto do meu carro no MP para ele investigar? Ou haverá uma “seletividade informal”, leia-se, o MP vai investigar o que ele quiser e o “resto” ficará com a polícia?
Não deveria haver uma clara definição em lei (sim, a reserva legal é crucial neste tema!) sobre as esferas de atribuições de cada órgão, bem como a clara demarcação dos ‘espaços investigatórios’? E se forem instaurados procedimentos paralelos, pela polícia e pelo MP, como ficarão? Um prevalece sobre o outro ou tramitarão em paralelo, com evidente duplicidade? Há prevenção? Aliás, a Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público possui força de lei, do mesmo patamar do CPP? Afinal de contas se as regras processuais e da investigação devem estar previstas em Lei no sentido estrito, suprimiu-se a competência do Congresso Nacional na elaboração das regras de Processo Penal. Imaginamos a situação de o Conselho Nacional de Justiça edite uma Resolução ditando o novo Código de Processo Penal. Se o CNMP está autorizado a produzir normas processuais, embora a Constituição proíba, qual o impeditivo do CNJ?
Essa são questões da maior importância e, como ocorreu nos países que adotaram a figura do promotor investigador (Alemanha em 1974, Itália e Portugal em 1988, por exemplo), é importante que a lei defina a relação polícia/MP, demarcando as esferas de atuação e subordinação, como bem pontua Manuel Valente.
Na Espanha, cujo modelo é predominantemente de juiz instrutor (figura inquisitória e em completo abandono)[2], existe a possibilidade de o MP investigar, mas a prevalência é do juiz. E a polícia judiciária? Tem dependência funcional e orgânica expressa no artigo 126 da Constituição espanhola, regulamentada pela Ley de Enjuiciamiento Criminal (Código de Processo Penal) e também pela Instrução Normativa 2/1988 que determina que procuradores ‘chefes’ do MP devem despachar, pelo menos, semanalmente com os chefes de polícia, sobre assuntos que interessem a investigação. São demarcadas ainda as chamadas instruções gerais e as instruções específicas, entre MP e polícia. Enfim, o que pretendemos demonstrar com esse rápido exemplo, é que o relacionamento MP/polícia judiciária é algo da maior importância e que exige clara demarcação legal. Sem falar que tampouco foi essa a opção do legislador constituinte.
Neste terreno, extremamente sensível, essa (e as anteriores decisões do STF), não incursiona, criando (mais uma vez) uma zona cinzenta de poder, fértil para disputas, atritos e desgastes institucionais. Além de possíveis manobras escusas. Mas o ponto nevrálgico, superada a demarcação das esferas de poder investigatório, é: como será a investigação do Ministério Público? O inquérito policial e seus problemas já são por todos conhecidos, mas e a investigação realizada pelo promotor/procurador, como se dará? Seguirá o CPP e as regras do inquérito quando lhe convém?
Se tomarmos a diretriz genérica, generalíssima... do STF, de que devem ser “respeitados os direitos garantidos pela Constituição, o devido processo legal e a razoável duração do processo”, então vamos ter de reconhecer a inconstitucionalidade do inquérito policial...Teríamos, sem dúvida, uma investigação normativamente muito melhor! Mas, para isso, precisamos de lei que defina!
Sem lei prevendo essa “nova e constitucional investigação”, ficaremos na dependência da ‘bondade dos bons’, ou seja, cada promotor poderá escolher,a la carte, o que entende “conforme a constituição” e dispensar o resto? Ou vamos incorrer, mais uma vez, na crise da teoria das fontes, e permitir que isso seja definido por uma “portaria”, “resolução”, “regulamento”, “provimento”, ou qualquer outra mediocridade legislativa do gênero? Considerando a gravidade e importância de uma investigação criminal, não é aconselhável dispensar a reserva de lei, por elementar. O caos se potencializa e em nome da necessidade da investigação, criamos uma Investigação de Exceção, ao gosto dos investigadores públicos.
Mas o MP vai precisar da polícia, nem que seja para investigar a criminalidade-chinelo-de-dedo, ou ainda, quando precisar do apoio policial armado e toda sua estrutura para uma operação de vulto. Neste caso, como será essa relação? E o tal controle externo da atividade policial, ilustre desconhecido no Brasil, como se efetivará? Na ausência de respostas, sigamos.
O STF fala em respeitar os direitos fundamentais, o devido processo e o prazo razoável. Para isso, precisamos de lei... precisamos de uma nova investigação. É fundamental definir o objeto da investigação preliminar e os limites da cognição, para termos uma fase pré-processual verdadeiramente sumária (e jamais plenária, como se converteu na prática).
É preciso definir a situação jurídica do sujeito passivo, bem como a necessária incidência do contraditório e do direito de defesa, diante da inafastável aplicação do artigo 5°, LV da Constituição na investigação preliminar. É imprescindível responder aos seguintes questionamentos: A partir de que momento alguém deve ser considerado como sujeito passivo? Que circunstâncias devem concorrer para que se produza a situação de imputado já que o indiciamento é privativo da autoridade policial? De que forma se deve formalizar essa situação? Que consequências endoprocedimentais produz? Que cargas assume o sujeito passivo? Que direitos lhe correspondem?
Qual será o alcance do segredo (interno e externo) da investigação, bem como sua duração e requisitos para decretação. O artigo 20 do CPP não regula absolutamente nada e, o pouco que diz, não resiste a uma filtragem constitucional. Como o MP irá lidar com isso? O STF fala em prazo razoável, esse ilustre desconhecido do processo penal brasileiro! Mas qual é o prazo razoável? Não basta ter um ‘prazo’, precisamos ter uma ‘sanção’ pelo descumprimento.[3]
A disciplina do CPP acerca do prazo é pífia e completamente ineficaz, não atendendo ao mandamento constitucional e tampouco ao critério destacado pelo STF. É preciso definir o prazo máximo da investigação preliminar adotando uma resolução ficta quando superado o limite (como ocorre no CPP paraguaio) ou uma pena de inutilidade (inutilizzabilità do sistema italiano) dos atos praticados após o término do prazo legal. Nessa matéria, de nada serve a definição de um prazo sem a correspondente sanção processual pela violação.
Por último, dado o limite de espaço da coluna, pois várias outras questões devem ser abordadas, questionamos: como vamos reduzir os danos da quebra de igualdade de tratamento e oportunidades probatórias? Sim, porque é elementar que quando o acusador investiga, ele não vê mais do que uma direção. De que forma essa situação será contornada? A defesa poderá fazer investigação paralela? Terá acesso aos dados brutos e o investigado, será indiciado por quem? Depois de indiciado exercerá este status de indiciado como?
E antes que nos critiquem injustamente, dizendo que ser contra a investigação pelo MP é tipico de quem quer a ‘impunidade’, respondemos: leia tudo de novo, pois você não entendeu nada... A discussão situa-se no marco da legalidade, de ter regras claras do jogo. Em democracia, todo poder precisa ser condicionado e demarcado. Forma é garantia. Há uma salutar desconfiança e patrulhamento dos excessos e questionamento da legitimidade. A informalidade só interessa ao discurso autoritário.
Essas são questões muito mais relevantes e que deixam em segundo plano a rasteira discussão em torno da autoridade encarregada da investigação. Enfim, é preocupante o reducionismo da discussão, que deixa de lado questões muito mais graves do que definir quem será o inquisidor. O problema está na própria inquisição. Mudem ou mantenham os inquisidores, pois a fogueira continuará acesa. E, como fiz Luis Alberto Warat, direitos sem garantias são promessas de amor.
[1] Sobre o tema, para uma ampla análise dessas questões, recomendamos a leitura da obra “Investigação Preliminar no Processo Penal”, de Aury Lopes Jr e Ricardo Jacobsen Gloeckner, publicada pela editora Saraiva.
[2] Sobre as vantagens e inconvenientes dos modelos de investigação a cargo do Juiz, Promotor e Polícia, consulte-se a obra “Investigação Preliminar no Processo Penal” anteriormente referida.
[3] Sobre o direito de ser julgado em um prazo razoável, remetemos o leitor para o Capítulo II da obra “Direito Processual Penal”, 12ª edição, de Aury Lopes Jr., publicada pela editora Saraiva.
Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2015.
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