O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu nessa quinta-feira (14/5) que o Ministério Público tem competência para promover investigações penais por conta própria, desde que respeitados os direitos garantidos pelaConstituição, o devido processo legal e a razoável duração do processo. Na ocasião, o presidente da corte, ministro Ricardo Lewandowski, propôs inclusive a criação de uma súmula vinculante para os casos em que haja investigados com foro privilegiado.
A controvérsia existia desde 1988, quando a Constituição Federal redefiniu competências de instituições. Se já no Supremo o entendimento não foi unânime, no resto do mundo jurídico as opiniões divergentes ganham eco. Enquanto promotores, procuradores de Justiça e procuradores da República comemoraram a decisão, delegados de polícia e advogados ouvidos pela revista Consultor Jurídico a criticaram.
Para o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Marcos Leôncio Ribeiro, a interpretação do STF cria um precedente perigoso, pois, ao legitimar a estratégia do MP de “invadir e ocupar” a competência constitucional de investigar — das polícias judiciárias —, a corte abre as portas para que outros órgãos se atribuam de poderes alheios na expectativa de que eles sejam validados judicialmente.
De acordo com o delegado da PF, é preciso que haja colaboração mútua entre as polícias e o MP. “Se não houver cooperação, o MP deverá fazer o trabalho por conta própria, e não repassar atividades de investigação que não têm origem no inquérito para a PF. Na operação 'lava jato', por exemplo, tivemos medidas solicitadas pela Procuradoria-Geral da República e executadas pelo próprio MPF. Então tem que ser assim: quer ter o bebê? Então que embale e cuide da criança. Não pode passar a responsabilidade pra outro”, diz Leôncio Ribeiro.
O também delegado da PF e membro da ADPF Edson Garutti afirma que o Ministério Público não tem nem expertise nem pessoal para promover investigações com eficiência: “Em um ou outro caso, o MP pode até chegar a bom termo na investigação. Mas isso não significa que eles tenham técnica para investigar. Quando você tem um ou outro caso, é fácil se aprofundar nele. Mas na polícia, são milhares”.
Garutti argumenta que o Supremo reconheceu essa atribuição em um caso onde não houve investigação. Isso porque a apuração do órgão no caso se limitou à expedição de um ofício exigindo que o prefeito de Ipanema (MG) pagasse precatórios, e essa atribuição do MP já é prevista no artigo 47 do Código de Processo Penal.
O vice-presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) e advogado do prefeito no caso julgado pelo STF, Wladimir Sérgio Reale, compartilha da visão de que o MP não tem estrutura para apurar crimes: “Investigação pressupõe a existência de agentes. Não há uma ‘policia ministerial’ pra promover as averiguações. Não há pessoas suficientes, e as que tem não fizeram cursos de investigação. Além disso, o órgão não tem infraestrutura para isso”.
Segundo Reale, “certamente” surgirão rivalidades entre o MP e as polícias judiciárias devido a influência de um no trabalho do outro. Ele entende que o melhor para todos é que promotores e procuradores de Justiça continuem apenas acompanhando as apurações, e só as promovam em casos excepcionais.
Direito de defesa
Por sua vez, uma corrente de advogados aponta impactos no direito de defesa. Na opinião do presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Augusto de Arruda Botelho, é “temerária” a possibilidade de o MP conduzir investigações.
“A investigação unilateral e interna é prejudicial ao Estado Democrático de Direito e à paridade de armas. No sistema jurídico brasileiro, o advogado não pode produzir provas. Então, por que o MP pode fazer isso e usá-las no processo que poderá mover posteriormente? Com isso, o direito de defesa fica prejudicado, pois as prerrogativas dos acusados e dos advogados que são respeitadas no curso do inquérito policial podem ser desrespeitadas em investigações exclusivas do MP”, analisa Botelho.
Sobre essa quebra de isonomia, o delegado Leôncio Ribeiro diz que, “no mínimo”, é preciso proibir que o promotor ou procurador de Justiça que conduziu a investigação ajuíze a ação dela decorrente. E diz ser necessário também discutir a autorização da investigação defensiva, que permite que advogados produzam provas para seus clientes.
Wladimir Reale avalia que os membros do MP podem ficar “contaminados” por suas teses e averiguações, prejudicando a defesa dos acusados e o papel institucional do órgão. Para equilibrar o jogo, é essencial que seja estabelecido o contraditório na fase pré-processual, afirma o vice-presidente da Adepol.
Já o criminalista e professor de Direito Penal da USP Pierpaolo Cruz Bottini acredita ser imprescindível regulamentar — via lei infraconstitucional — o que os promotores e procuradores podem e o que não podem fazer em suas averiguações. Só com isso, afirma, os advogados poderão fiscalizar o trabalho do órgão, tal como fazem com as polícias judiciárias, que possuem diversas regras procedimentais.
Sem disputa
Em contrapartida, membros do MP elogiaram o reconhecimento de sua competência investigativa. Aos olhos do subprocurador-geral da República Mario Bonsaglia, chefe da câmara do Ministério Público Federal responsável pelo controle externo da polícia, a medida melhorará a solução de crimes no Brasil.
“Ganha com essa decisão a sociedade, pois os poderes investigatórios do MP são importantes para um mais eficaz combate à impunidade em geral e, em especial, a atos de corrupção e abusos da própria polícia. As instituições policiais nada perdem, pois mantêm suas atribuições investigatórias e já têm muitos crimes graves por investigar, como homicídios, cujo índice de solução é inferior a 10% dos casos; ou como crimes de roubo, que em sua esmagadora maioria sequer são investigados", afirma Bonsaglia.
O conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público Jarbas Soares Júnior afirma que a decisão do STF é um “grande avanço” para o Estado Democrático de Direito.
Ele diz que as instituições estatais podem trabalhar em conjunto, deixando interesses corporativos de lado, na luta contra o crime organizado. Soares Júnior se mostra otimista quanto a essa integração entre as instituições: “Com a decisão, a polícia será mais humilde em buscar compartilhar o seu trabalho com o MP, e o MP deverá ter o espírito público presente nas suas ações para saber que não pode tudo”.
"Me parece extremamente razoável a decisão adotada, na própria linha do reconhecimento, já de há muito realizado, de que, além da Polícia Judiciária, diversos outros órgãos públicos (como o Banco Central, a CGU, o TCU, etc.) têm competência para apurar irregularidades específicas ocorridas no âmbito de suas respectivas atribuições", defende o também conselheiroFábio George da Nóbrega.
Ele afirma que a regularidade das investigações feitas diretamente pelo Ministério Público já é garantida por norma do CNMP (Resolução nº 13/2006), "cujo cumprimento é objeto de contínua fiscalização por parte das corregedorias do Ministério Público e também da Corregedoria Nacional do CNMP". "A indefinição até então existente criava ambiente de insegurança jurídica no tratamento do tema no país", diz o conselheiro.
A decisão deve causar impacto em uma série de processos, inclusive alguns que foram anulados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, afirma o chefe da Procuradoria de Justiça Criminal do MP-SP, Marcio Sergio Christino.
Ele também garante que o MP não quer assumir o papel da polícia, apenas atuar de forma suplementar quando for necessário.
De acordo com Christino, essa é a maior vitória do órgão desde a rejeição da PEC 37/2011, que limitava o poder de investigação à PF e às Polícias Civis.
Revista Consultor Jurídico, 15 de maio de 2015.
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