terça-feira, 12 de maio de 2015

Documentário "Sem Pena" leva análise do sistema penal para além de seus muros


O Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa nos diz que há duas origens etimológicas do sentido pena. Uma decorre de uma expressão latina “penna” que significa o órgão que cobre o corpo das aves, mas também “4 O trabalho de escrita. 5 Os letrados e escritores. (…) 8 Autor, escritor.”. O outro sentido decorre da expressão latina “poena”, e pode significar: “sf (lat poena) 1 Castigo, punição”, e também  7 Compaixão, dó, piedade”[1].
É possível que o diretor tenha se utilizado desse substantivo como forma de, barrando a comunicação entre a preposição “sem” e o substantivo “pena”, sugerir as várias invocações possíveis da sentença: a) sem dó, sem compaixão; e também b) sem pena, sem prisão. Sentença essa sugestiva ao ser barrada por um muro que pode ser o muro do cárcere.
Mas eu quero aqui me apropriar da obra oferecida pelo diretor e mobilizar o outro sentido de pena, advinda de sua primeira origem etimológica aqui apontada, e pensar que também é possível entender o substantivo “pena” como “o trabalho da escrita dos letrados” ou como “autoria”. A perspectiva é ampliar a indagação sobre a pena, provocada que fui para o que vai além da obra e pelo que ela me ensinam com suas imagens.
Portanto quero indagar também sobre autoria do funcionamento do castigo prisão que sufoca e tortura cada um dos personagens trazidas pelo diretor. E o significado de autoria que utilizo aqui é a autoria como causa, como imputação de responsabilidade.
Eu me valho do mesmo recurso do diretor e exercito o argumento de cada um dos sentidos trazidos pelo nome da obra: sem castigo, sem dó, sem escrita, sem autoria. Eu o faço por meio de metonímias que falam do castigo prisão. O diretor constrói em suas imagens, tensionadas pelas falas, expressões metonímicas do sistema de punição carcerária, mostrando braços com armas, pernas sem corpo, sons estridentes do ambiente prisional sem revelar o objeto que o produz.
1. Sem autoria
Uma sequência de agentes e instituições são visibilizadas durante as imagens do filme: policiais, agentes carcerários, advogado, promotora, juiz e o sem número de sem nomes sobre os quais recaem o castigo. As imagens nos constrangem a perceber um movimento que parece desordenado, um vai e vem de intervenções e de pessoas que figuram como agentes para o funcionamento da grande máquina da tortura. Se de um lado os uniformes, as vestimentas, as cores que surgem na tela nos informam sobre as diversas posicionalidades e poderes assimétricos dos personagens nesse cenário de tortura, por outro, em algum momento elas nos confundem a saber quem é quem e nos remetem ao questionamento de entender até que ponto todos eles fazem funcionar as engrenagem às custas do próprio corpo. Muitos com seus corpos já sem vida, outros com um corpo psíquico devorado pelo trabalho sem fim e sem sentido. Existem os que são torturados e existem os que torturam. Mas qual o corpo, o nome, o cheiro, a representação dos  que torturam? Talvez efeito do aparente caos da administração da máquina de fazer tortura, talvez efeito de um mal arranjado modo de produção burocrático, as responsabilidades se diluem a tal ponto em que ninguém é autor do funcionamento da máquina. Se no plano micro, face a face, encontramos o algoz, ao darmos 10 passos atrás e procurarmos entender a autoria da ordem, tudo se mancha.

As vozes sem rosto do filme descrevem um cenário de terror, da parte de quem são os torturados e torturadas, e também da parte dos que dão os 10 passos atrás e que, portanto, dispõem-se a entender um pouco de onde vem e para onde vai essa máquina que tritura corpos. Os dedos invisíveis das falas sem rosto apontam para muitas direções, mas não são capazes de dar nome, corpo e autoria. O que acresce o terror da cena: a máquina de tortura parece não ter autoria.
2. Sem a escrita dos letrados
A máquina de tortura se vale da oralidade sem rosto e das imagens metonímicas para se fazer ver. Os labirintos e corredores acumulados por papeis não nos dão notícias de que lá possamos encontrar a escrita da tortura. Os papeis são levados sem direção, guardados sem propósito e manejados sem empatia pelos personagens que fazem a máquina de tortura funcionar, do mesmo modo com que as pernas dos torturados vagam sem sentido pelos corredores das celas e pelo pátio quadrado. Entre eles há um muro, mas é um muro que não foi escrito na escritura dos letrados. É um muro escrito com o silêncio e a carne produzida pela máquina de tortura. As palavras escritas nos papéis que se acumulam nos corredores falam de artigos de lei, de ordem pública, de critérios de necessidade que sobrepujam regras, de periculosidades. Mas não falam da cor dos corpos, não falam sobre o que acontece nas carnes que perambulam por dentro dos muros. O que acresce o terror da cena: a máquina de tortura não está na escrita dos letrados. Para fora dos muros a ausência da escrita dos letrados opera uma mágica: não existe máquina de tortura no mundo. Os rostos que aparecem quando a câmera espreita a Faculdade de Direito são bustos mudos de homens brancos. Os rostos que surgem no filme como exceção às vozes sem rosto são bustos mudos no pátio onde se barganham poderes no funcionamento da máquina de tortura.

3. Sem dó
Dó é um dos sentidos de pena, e pode significar em sua leitura mais corrente “compaixão lástima, comiseração”, mas também pode ter o sentido, segundo os dicionários, de “luto”.[2] Tomo a liberdade de me apropriar desse segundo e esgarçar as possibilidades de ensinamento da obra. A máquina de tortura mói corpos com cor, mói o tempo, mói o movimento, mói os desejos e as possibilidades, e mói, no limite a carne dos corpos. Ela funciona freneticamente a escolher mais corpos para alimentar seu funcionamento. Do outro lado os personagens que movimentam a máquina não têm tempo para dar 10 passos atrás, ocupados demais que estão em selecionar corpos, promover assinaturas sem autorias, escrever palavras do  mundo dos letrados que silenciam a tortura.

Se as imagens nos convocam a perceber o tempo arrastado, moído, confiscado dos torturados, também nos incitam a ver o trabalho de Sísifo dos que arrastam as pedras até a montanha para buscá-las em seguida. Não há tempo para perplexidade, não há tempo – e nem possibilidade de reconhecimento em virtude do racismo institucional da máquina - para o enlutamento dos corpos moídos. Tudo segue outra ordem, que não permite que um espaço se crie e que exista outra direção. As ordens são desencontradas, não tem autoria, e todos seguem seguindo as ordens do Outro, que teme aqueles corpos para os quais não há luto. Há um paradoxo do tempo entre os que dispõem de um tempo arrastado mas devastado pela falta de sentido, e um  tempo que exige tarefas, carimbos, transporte de papeis, transporte de corpos. A “luta contra o crime” não pode parar. E ao não parar não há o tempo dos 10 passos atrás, não se enlutam – e sequer se reconhecem - os corpos que são vítimas da luta contra o crime”, e assim não se criam espaços de novos horizontes.
4. Sem/pena
E por falar em horizontes, o nome do filme “sem pena” barrado pelo muro (e poderia se falar barrado pelo gozo dos que gozam a tortura do outro a partir de sua própria impotência, segundo uma das falas de uma voz sem cabeça de quem deu 10 passos atrás) nos sugere  poucos horizontes. Mas também nos convoca a subverter o sentido e desfazer o muro; enlutar os corpos caídos; romper com o silêncio da escrita dos letrados, chamar à responsabilidade as autorias ausentes.

É nesse horizonte que em algum momento pode se deflagrar algum sentido da justiça no campo do direito. Qualquer decisão do direito que determine a destinação de corpos à máquina de tortura, não só tem sua validade e sua legitimidade postas em questão, mas destitui qualquer possibilidade de realização de justiça, daquela justiça que nos fala Derrida, da justiça que não é direito, que é imponderável, indizível, mas que se concretiza sempre como apelo à justiça, e “que exige ser instalada num direito que deve ser posto em ação”[3]
Não se trata de uma justiça prévia, definida, fundada. Mas sim de um apelo que se faz, dentre outras tarefas, a partir de um questionamento em torno dos limites teóricos e normativos que nos propõem nossas heranças dos sentidos herdados de justiça. Trata-se da demanda por um “aumento hiperbólico na exigência de justiça”, o que nos leva “a denunciar não apenas os limites teóricos, mas também injustiças concretas.”[4]
Um questionamento que, segundo Derrida, “só pode ser motivado (...) na exigência de um aumento ou de um suplemento de justiça (...).” [5]Trata-se de uma tarefa politicamente motivada, com a intenção de ampliar os sujeitos a quem se endereçam a justiça e como forma de ampliar apelos à justiça. Em outras palavras: trata-se de incorporar os corpos torturados como corpos vivos, sujeitos a quem se endereçam a justiça e de onde se escutam e se protagonizam apelos à justiça.

[1] Pena. MICHAELIS: Dicionário de Português Online. São Paulo: Melhoramentos, disponível em http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=pena. Acessado em 28 de  abril de 2015.
[2] Dó. MICHAELIS: Dicionário de Português Online. São Paulo: Melhoramentos, disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=d%F3. Acessado em 28 de  abril de 2015.
[3] DERRIDA, Jacques. Força de lei: o pensamento místico da autoridade. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 43.
[4] Ibidem, p. 37.
[5] Ibidem, p. 39.

Camila Cardoso de Mello Prando é professora-adjunta da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Revista Consultor Jurídico, 11 de maio de 2015.

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