Hipótese interessante que ainda não foi definida pelo Supremo Tribunal Federal no tocante ao exercício do princípio constitucional da ampla defesa diz respeito à conciliação entre a autonomia das instâncias penal e administrativa/disciplinar e o ato de interrogatório como momento processual importante da defesa.
Inúmeras e importantes operações realizadas pelas polícias Federal e Civil vêm dando ensejo à abertura simultânea de PAD (Procedimento Administrativo Disciplinar) e AP (Ação Penal), tendo como evidências exatamente os mesmos indícios e provas colhidos no campo penal (“prova emprestada” para o campo administrativo).
Assim, os PADs são instaurados sem que haja nenhuma prova nova e autônoma obtida no campo administrativo, que “emprestou” todas do inquérito policial que serviu de base ao Ministério Público para o oferecimento de denúncia contra os acusados. Na sequência, os acusados são intimados para interrogatório no campo administrativo, antes do término da instrução processual penal.
O interrogatório do acusado como ato processual de defesa, inclusive permitindo o “direito ao silêncio”, que engloba o privilege against self-incrimination (privilégio contra autoincriminação, em tradução livre) do réu em procedimentos sancionatórios, é direcionado no intuito de preservar o caráter voluntário de suas manifestações e a regularidade de seu julgamento, com um diálogo equitativo entre o indivíduo e o Estado, como bem salientado por T.R.S. Allan (Constitucional Justice. Oxford: University Press, 2006, p. 12).
A amplitude do interrogatório como meio de defesa, englobando o “direito ao silêncio” e o “direito de falar no momento adequado”, sob a ótica da impossibilidade de alguém ser obrigado a produzir provas contra si mesmo, seja em suas declarações, seja na compulsoriedade de entrega de provas com potencial lesivo à sua defesa no processo penal, tornou-se tema obrigatório a ser discutido em relação ao direito constitucional à ampla defesa, tanto que submetido à alteração legislativa que não só o transformou em meio de defesa, mas também o situou após o término da instrução processual penal.
A participação do réu em seu julgamento não é apenas um meio de assegurar que os fatos relevantes sejam trazidos à tona e os argumentos pertinentes considerados. Mais do que isso, o direito do acusado em ser ouvido no momento processual adequado é intrínseco à natureza do julgamento, cujo principal propósito é justificar o veredicto final para o próprio acusado, como resultado legal justamente obtido, concedendo-lhe o respeito e a consideração que qualquer cidadão merece.
É necessário conciliar a autonomia das instâncias administrativa/disciplinar e penal com a garantia constitucional da ampla defesa, quando o acusado, tanto em sede de PAD quanto em AP , pretende no momento processual penal adequado apresentar em seu interrogatório sua versão dos fatos, impugnando – como a lei lhe permite – a prova produzida pela acusação durante a instrução processual penal. Conforme apontado pelo ministro Celso de Mello (8ª Questão de Ordem na Ação Penal nº 470, DJe de 02/05/2011), o interrogatório é “um ato de defesa”, e tem lugar “na última fase da instrução probatória”, pois somente nesse momento o “acusado terá plenas condições de estruturar de forma muito mais adequada a sua defesa”, mesmo que possa optar por “calar-se”,
Toda vez que o acusado é forçado a depor no campo administrativo antes de encerrada a produção probatória penal por parte da acusação, pelos mesmos fatos, ou produzir prova contra si mesmo em procedimentos que pretendam qualificá-lo como “testemunha”, enquanto sujeito de direitos, não pode ser considerado como participante em um diálogo processual genuíno, consagrado constitucionalmente, havendo grave ferimento no devido processo legal e em seus principais corolários, o direito à ampla defesa e ao contraditório, como salientado pela Corte Suprema Norte Americana (R.v.Sang – 1980 – AC 402).
Kent Greenawalt (Silence as Moral and Constitucional Right – 1981 – 23, Willian & Mary LR, PP. 35-6) salienta que o suspeito está normalmente sujeito ao alcance dos poderes compulsórios do Estado necessários para assegurar a confiabilidade da evidência, podendo, se preciso, submeter-se à busca de sua pessoa ou propriedade, dar suas impressões digitais quanto autorizado em lei e ser intimado para interrogatório. Cabe, entretanto, ao réu escolher até onde vai auxiliar a acusação, oferecendo explicações ou admissões à luz das evidências contra ele, e sendo interrogado, desde que no momento processual adequado, “ao final da instrução, depois de ouvidas as testemunhas arroladas, bem como após a produção de outras provas, como eventuais perícias”, como salientado pelo Ministro Ricardo Lewandowski (STF, AP 528 AgR/DF), pois somente o respeito ao momento certo do depoimento do acusado “mostra-se mais benéfico à defesa”.
Não é constitucionalmente razoável e exigível que alguém traia a si mesmo — nemo debet prodere se ipsum —, como bem observado por Kent Greenawalt (Silence as a Moral and Constitucional Right, 1981 – 23 William & Mary LR 15, pp. 40-41), antecipando o importante momento de seu ato de defesa, qual seja seu interrogatório, sem que tenha tido contato com todas as provas produzidas para sua incriminação; mesmo que o faça no campo administrativo.
A existente de autonomia das instâncias penal e administrativa não pode ter o condão de permitir a inversão de um ato de defesa, impedindo ao acusado a “oportunidade para esclarecer divergências e incongruências que, não raramente, afloram durante a edificação do conjunto probatório” (STF, AP 528, ministro Ricardo Lewandowiski).
Não haveria razoabilidade em se exigir que, em relação aos mesmos fatos, pudesse o impetrante ser notificado para comparecer perante a Comissão Processante para apresentar sua versão dos fatos antes do término da instrução probatória na ação penal, sob pena de inversão tumultuária dos atos processuais,com claro prejuízo a ampla defesa e contraditório.
É reconhecido pelo Poder Judiciário brasileiro que o Princípio da Razoabilidade impede os tratamentos excessivos (ubermassig), inadequados (unangemessen), buscando-se sempre no caso concreto o tratamento necessariamente exigível (erforderlich, unerlablich, undedingt notwendig).
Nessas hipóteses, independentemente da autonomia de instâncias, o tratamento exigível, adequado e não excessivo aos acusados, deve possibilitar que o mesmo somente seja interrogado pelos fatos surgidos na operação policial no momento processual adequado, ou seja, após a instrução processual penal instaurado para apuração dos mesmos fatos, independentemente da esfera de apuração.
Se os fatos são os mesmos! Se as provas que justificaram a instauração do procedimento disciplinar são somente as “provas emprestadas” da investigação penal! Se as imputações são idênticas! Deve ser observado o Devido Processo Legal e garantida a Ampla Defesa ao acusado, permitindo-lhe que seja intimado na condição de investigado e seu interrogatório no campo administrativo somente possa ser realizado após o término de todo produção probatória no campo processual penal.
O Princípio do Contraditório somente estará plenamente assegurado e será absolutamente respeitado se o acusado — na condição de réu — for interrogado na Ação Penal e em qualquer procedimento administrativo sancionatório que trate dos mesmos fatos, após toda a instrução processual penal, para ter a oportunidade, como já salientado, de “esclarecer divergências e incongruências que, não raramente, afloraram durante a edificação do conjunto probatório”.
Exigir-se do acusado que compareça a Comissão Processante — mesmo que na fictícia condição de testemunha — para antecipar seu interrogatório sobre os mesmos fatos e provas existentes no processo penal constitui ferimento de morte a ampla defesa e ao due process of Law (devido processo legal).
O direito de ser interrogado após o término da instrução processual penal, o direito ao silêncio, e, consequentemente, o direito de não produzir provas em momentos inoportunos, também demanda a exclusão de uma testemunho impropriamente obtido por outros meios que destroem sua natureza voluntária, seja por fictamente tratar o acusado como testemunha, seja por inverter a ordem natural do interrogatório, pois não é constitucionalmente possível qualquer indução de natureza de promessa ou ameaça exteriorizada pela pessoa com autoridade para obter ou forçar o interrogatório ou a entrega de documentos e provas desfavoráveis (Corte Suprema Norte-Americana: R.v. Baldry (1852) 2 Den 430, p. 445; R. v. Priestley (1965) 51 Cr App R1, Ibrahim v. R. (1914) AC 599; McDermott v. R. (1948) 76 CLR 501).
A obrigação do acusado, no campo do procedimento administrativo, em responder perguntas ou de fornecer evidências sobre os mesmos fatos imputados como criminosos no âmbito penal, antes do término da instrução processual penal, destruiria a natureza voluntária de qualquer interrogatório, ferindo de morte as garantias processuais do acusado, pois poderiam colocá-lo ilicitamente sob suspeita de culpabilidade perante a Comissão Processante, pelo não comparecimento ou pelo exercício do direito ao silêncio, com grave ferimento aos direitos constitucionais como proclama a Suprema Corte Norte-Americana (R. v. Payne (1963) 1 WLR 637; R. v. Mason (1987) 3 AII ER 481).
O acusado, portanto, não pode ser forçado a testemunhar na esfera administrativa sobre absolutamente os mesmos fatos de que está sendo acusado criminalmente antes do término da instrução processual penal, pois ainda deverá ser feita toda a colheita de provas por parte do Ministério Público para que somente então ele possa exercer com plenitude seu direito de defesa.
O acusado tem o direito de ser ouvido no procedimento administrativo na condição de investigado e somente após a produção probatória no campo penal, quando se tratam dos mesmos e idênticos fatos, para que possa exercer em sua plenitude o Direito à Ampla Defesa e contraditório, analisando as provas produzidas pela acusação e demonstrando suas divergências e incongrugências.
Alexandre de Moraes é advogado e chefe do Departamento de Direito do Estado da USP, onde é professor livre-docente de Direito Constitucional.
Revista Consultor Jurídico, 11 de outubro de 2013
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