Ernst Mayer é uma espécie de Darwin moderno. Morreu em 2005, constando ter sido um dos maiores biólogos da atualidade. A certa altura de um escrito seu começa a discutir como um grupo cultural adquire normas éticas próprias. Várias explicações havia, inclusive advindas de filósofos anteriores a Darwin. Acentuou que o que é moral e o que é melhor para um grupo pode depender de circunstâncias temporárias. Dá exemplos. Há uma sugestão utilitária: a norma ética deveria ser julgada pelo seu grau de contribuição ao maior bem possível para o maior número de pessoas. A China tem regras morais peculiares. Limita o número de filhos por casal, trata o trabalhador de forma absolutamente autoritária e reduz, com certeza, direitos e garantias individuais. Aliás, os países orientais primam por soluções extremamente ofensivas ao nosso gosto. Houve numa dessas nações, há muito pouco tempo, incidente em que cantora famosa, antiga namorada de um líder político, teria cometido atos envoltos em pornografia. Foi executada três dias depois, em praça pública, com um tiro na nuca. Já se percebe a existência de variadíssimos fatores estimulando, aqui e ali, comportamentos éticos diferentes. Isso existe, inclusive, entre os chamados animais inferiores, com destaque para os símios (chimpanzés). Não se dirá que tais macacos, em grupos variados, ajam da mesma forma. Deixando-os numa floresta, os zoólogos hão de ver, com o tempo, o aumento de uma comunidade em detrimento da outra, fechando-se cada qual na defesa grupal. Dentro de tal contexto, não se sabe bem se nós imitamos os animais menos dotados intelectualmente ou se estes estão a se aproximar dos humanos.
Parecerá um sarcasmo a utilização de exemplos, vincados na biologia, para comentar o conflito vertente entre o Ministério Público Estadual e organizações criminosas resumidas em siglas muito conhecidas por todos. Explode nos jornais, hoje, 11 de outubro de 2013, noticiário correspondente a investigações antigas realizadas pelo Parquet paulista em redutos eletrônicos postos junto a penitenciárias, com relevo para Presidente Prudente. Ali, precavendo-se contra possível crítica ou censura, a diferenciada Instituição Pública dá demonstrações de ter isolado, tocante a tais sociedades delinquenciais, a participação de três dezenas de líderes, buscando os persecutores, então, a prisão destes em regime disciplinar diferenciado. A utilização da mídia para o engordamento da eficácia das medidas eletrônicas investigatórias tem duas finalidades essenciais: a) — dá-se à comunidade ciência da eficiência no uso da aparelhagem referida e na utilização de policiais militares como agregados úteis ao manuseio; b) — defesa preventiva contra imputação de ilicitude na aquisição do instrumental e forma de respectiva utilização. Em síntese, o grupo se protege em aspectos aparentemente éticos e prepara terreno a outras incursões mais poderosas.
Não há desdouro algum na assimilação de atividades humanas àquelas exemplificadas no início. É assim que funciona, quer entre as árvores do jângal ou dentro dos muros de um bunker eletronizado. Desgraçadamente, é assim, havendo pressupostos éticos análogos. E não se diga que a comparação é demeritória. Sabe-se que o homem é, na face da Terra, único animal que tortura suas vítimas. Os outros, os chamados inferiores, matam para comer e deixam as carcaças a outros muitos que vêm depois e comem também, triturando os ossos. Nós não: matamos devagar e, quando cometemos atos não éticos, dizem que temos consciência quando o fazemos, o que é muito pior.
Os mesmos anatomistas, taxonomistas ou zoólogos analistas das miríades de espécies postas no mundo acentuam que o ser humano parece estar chegando ao seu limite de aperfeiçoamento, atemorizando-se os sábios com conceitos éticos primitivos agregando comportamentos a prazo médio. Dir-se-ia, ainda, que conjugar Direito Penal a atividades praticadas por chimpanzés constituiria alienação ou estultice. Não, pensando bem, a comparação é absolutamente possível, porque as faladas sociedades criminosas, segundo notícia fornecida pelo próprio Ministério Público, argumentaram no sentido de que elas próprias estariam cooperando na redução da criminalidade, pois erradicando dos presídios o uso do crack, compondo-se, então, no contexto delinquencial, uma atividade meritória. A nobre instituição, de seu lado, não se tem preocupado em obedecer estritamente a regras de direito público atinentes à utilização, como agregados, de servidores pertencentes a outros segmentos da autoridade. Assemelhadamente, mantém em segredo minúcias correspondentes ao funcionamento da espionagem praticada, ligando-se, é óbvio, a uma ou outra autoridade judiciária acobertadora da pretensa legitimidade do espiolhamento. Fica tudo numa zona cinzenta, pondo-se à consideração popular o aplauso coletivo e intimidando, paralelamente, entidades dispostas, em princípio, a exigir adequação à legislação reguladora do poder investigatório do Ministério Público. Sem qualquer crítica maior ao pragmatismo da caminhada de uns e de outros, é preciso dizer que, no passado, muitas comunidades dedicadas, em princípio, à luta contra o crime, acabaram tisnando seus movimentos com as cinzas refluídas dos inimigos da lei, havendo, com o tempo, uma mestiçagem extremamente perigosa (os chamados “justiceiros”, as “escuderias” e entidades afins). Nasceu assim, lá atrás, o esquadrão da morte, vicejando, igualmente, a Scuderie le Cocq. O cinema, aliás, arremeda tais contingências (Super Homem, Batman e Mulher Maravilha), convindo dizer que heróis assim gerados ganham, na ficção, proteção especialíssima da própria comunidade posta sob o manto dos adeptos da lei.
Raciocine-se, a título de fecho, com a singularidade do texto: começa com os macacos, desenvolve-se sobre as chamadas sociedades criminosas, esvoaça nas sombras dos defensores da lei e da ordem e, no fim das contas, expõe toda a perplexidade daqueles que, já muito antigos na arte, mantêm a capacidade de contextualizar um raciocínio crítico adequado às circunstâncias. Em síntese, é preciso muito cuidado no próprio desenvolvimento das investigações destinadas à descoberta de minúcias atinentes às denominadas sociedades de bandidos. O direito penal brasileiro caminha celeremente para empoçamento enodoado dos chamados preceitos éticos clássicos. Agasalhou a delação premiada, constituindo esta última uma dança morfética entre o bandido e o mocinho; premiou o delinquente, dando-lhe a proteção e o estímulo dos próprios acusadores públicos (plea bargain); ligou o Poder Judiciário a tal bolero enegrecido, mimetizando o juiz, antes órgão julgador, num enlaçamento de três personagens: o pretor, o acusador e o infrator, todos apertados no mesmo leito. Evidentemente, a metáfora é abstrata, ligando-se intimamente, entretanto, à legalidade processual penal brasileira.
Extrai-se do miolo a ética toda peculiar atinente ao combate à criminalidade no Brasil, imitando-se o direito penal saxônico. Em suma: os perseguidores se comportam mal, os bandidos acentuam estarem a reduzir a criminalidade nos presídios, os juízes, abertamente ou atrás das portas, aquecem sob a toga os impulsos justiceiros da diferenciada instituição perseguidora e os hipotéticos críticos, assim eleitos por força dos próprios regulamentos, se quedam soturnamente, por receio de serem mal interpretados enquanto atentos ao fenômeno particular tramitando à frente. Uns e outros, antes processualistas penais, agora biólogos por opção, tentam entender nossas realidades com o chamamento do comportamento dos chimpanzés nas florestas. Encontram algum consolo, porque é preferível comparar o ser humano aos símios que aos lobos, embora se diga que o homem é o lobo do próprio homem.
Paulo Sérgio Leite Fernandes é advogado criminalista.
Revista Consultor Jurídico, 11 de outubro de 2013
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