quarta-feira, 3 de abril de 2013

País deve criar centros médico para violência doméstica


Onde a violência intrafamiliar acontece por agressões conjugais, quando na maioria dos casos os casais em disputa possuem filhos menores, são estes, crianças e adolescentes, as maiores vitimas. Como testemunhas presenciais dos conflitos que dilaceram a família, os efeitos da violência doméstica são os mais graves para essas vitimas específicas. Recente estudo português situa que em 42% dos casos de agressões entre casais, os filhos “assistem na primeira fila”, sofrendo, daí, maus-tratos psíquicos (Revista Visão nº 1.044; PT, 7 de março de 2013).
Assim, impõe-se admitir que esses danos psicológicos refletem-se no futuro em cadeia sucessória, tornando, mais das vezes, a cultura da violência algo natural. No ponto, campanha lusitana agora levada a efeito contra a violência doméstica indica uma mãe questionando o médico sobre as reações estranhas do filho, devolvendo-lhe o clínico o questionamento, com a pergunta: “Há quanto tempo é o que seu marido lhe bate?”.
No Brasil, a questão foi abordada pela primeira vez na Síntese de Indicadores Sociais, do IBGE (2012), com dados sobre violência contra a mulher. Revela a pesquisa que as agressões familiares são em 66,1% dos casos presenciadas pelos filhos. Os registros indicam que “crianças que acompanham atos de violência podem vir a ser futuros agressores”. Certo que em 74,6% das ocorrências os agressores são cônjuges, companheiros ou namorados e que em 20 anos (1998/2008), das cerca de 42 mil mulheres assassinadas no país, 70% delas foram na própria casa (SPM), o número de filhos menores expostos nos ambientes familiares violentos torna-se praticamente incalculável.
Na violência doméstica, onde a família é um retrato na parede, há dois retratos de vítimas-tipo: (i) mulher, casada e com filhos; (ii) filho menor, criança ou adolescente, criado em ambiente hostil, testemunha de agressões entre os pais. Os filhos menores, vitimas especificas, envolvidos nas emoções contraditórias dos pais diante de pugilatos verbais ou físicos, colocam-se muitas vezes vitimas permanentes, porque continuam a ser vitimas mesmo depois da separação dos pais, quando vitimizados indiretos por alienações parentais ocorrentes.
Na atual campanha contra a violência doméstica, conduzida pelo governo português, através da Comissão de Igualdade de Gênero (CIG), o tema dos “filhos da violência” é tratado por seus multifacetados aspectos, com devida seriedade de políticas públicas, rigor científico e amplitude de situações. “Impõe-se acabar com a crença de que “ele é mau marido mas é bom pai; porque os efeitos sobre as crianças são muito nefastos”, expressou Marta Silva, do Núcleo de Violência Doméstica da CIG. De fato, a violência contra a mulher mãe é sempre, em regra, também contra os filhos, à exata medida do impacto indiretamente por eles vivenciado.
Mas não é só. Os filhos da violência representam, atualmente, uma tragédia sem fronteiras, preocupando juristas, profissionais da saúde, políticos e sociedade civil do mundo inteiro, diante de um histórico de horror que compromete as futuras gerações. Afinal são as agressões de casa que fazem o mundo mais violento. Convém, diante da atualidade do tema, assinalar alguns pontos relevantes:
(i) Projeto europeu produzido para a análise dos modelos agressivos de relações em família, vitimizando os filhos, originou o livro Witnesssing Violence (Testemunhando a Violência). Nele, as estatísticas são alarmantes. Os filhos são referidos como as "vítimas esquecidas" já que as intervenções em geral visam a vítima ou o agressor adulto. Essa vitimização se constitui, aliás, em fator de sério risco para problemas ao longo da vida, como já revelado em uma amostra nacionalmente representativa de homens e mulheres norte-americanos (Straus, MA; Columbus, 1992).
(ii) A pesquisa do psicólogo Kaethe Weingarten, da Harvard Medical School, também examinou os efeitos biológicos e psicológicos de ser o filho um testemunho de violência dos pais, revelando e definindo uma questão que até agora não tinha nome. Ele a chama de “choque comum”, como intitula a sua obra Common Shock (Com. NAL, 400 pp., Amazon), oferecendo ferramentas para uma análise proativa do problema. Cuida-se do melhor estudo a respeito. Weingarten fundou e dirige o “Projeto Testemunhar”, lecionando no Instituto da Família de Cambridge.
(iii) Ao tempo preciso que os filhos, testemunhas das agressões, são obrigados a relatar a violência doméstica entre os pais, reaviventando nos relatos as situações sofridas, os seus depoimentos pessoais implicam, por isso mesmo, em danos indiretos a si impostos, em manifesta revitimização. Em casos que tais, a política judiciária do “depoimento sem danos” (DSD), exigindo no trabalho judicial a intervenção de especialistas (pedagogos, psicólogos, etc.) tem sido exitosa em nosso país, a partir das práticas pioneiras de Porto Alegre (2003) e Recife (2009). Em Portugal, opera-se mais um avanço, quando se torna procedimento obrigatório garantir “depoimentos para memória futura”, ou seja, acautelar a espontaneidade do relato das vitimas, em momento imediato dos fatos, cujos depoimentos adiante poderão servir com maior presteza ao exame do caso.
Pois bem. Não há negar que as crianças da violência interparental sofrem um longo prazo de impacto psicológico e social por testemunhar conflitos físicos entre os pais. Mais ainda, em ocorrendo o fenômeno da “Parentificação”, na sua espécie emocional (Gregory J. Jurkovic, New York, 1998) quando uma criança ou adolescente assume o papel de confidente ou mediador entre os pais.
No elevado espectro da violência doméstica, quando os filhos sobreviventes da violência de casais tornam-se, ao fim e ao cabo, também vitimas do agressor, impende o enfrentamento com politicas públicas de saúde. O problema da violência agudiza-se e torna-se também um problema de saúde pública, a tratar de novos pacientes, os filhos menores em situação de risco, a exigir intervenções multidisciplinares de profissionais de saúde, pedagogos e psicólogos.
Em Portugal, existe apenas um único hospital na área da violência doméstica, o Centro Hospital Médio Tejo, em Abrantes, onde inclusive funciona uma unidade de recolha de provas forenses. Agora, colima-se estender a experiência a outros hospitais. É urgente adotar essa experiência em nosso país, com centros médicos avançados destinados à violência doméstica contra a mulher e ao tratamento psicológico dos filhos da violência, em unidades de terapia e psicopedagogia especializadas, com apoio do SUS. Por certo, o projetado Hospital da Mulher, em Recife, bem poderia ser projeto-piloto de uma politica objetiva nesse fim.
Afinal, diria Sigmund Freud: “a criança é o pai do homem”. Esse futuro exige uma resposta adequada no presente.
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e coordenador da Comissão de Magistratura de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
Revista Consultor Jurídico, 2 de abril de 2013

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