Como ainda estou recebendo ofensas eletrônicas devido à coluna em que me opus à redução da maioridade penal, acho que vale a pena voltar ao assunto, desta vez valendo-me do mais generoso espaço proporcionado pela internet.
Em primeiro lugar, um pouco de lógica. O fato de eu não concordar com a diminuição do limite legal de 18 para 16 anos não implica que eu seja favorável a assassinatos (versão dos mais raivosos) ou que defenda que menores não sejam punidos quando cometam crimes (imputação dos moderados). O que eu sustento é que os mais jovens recebam um tratamento diferenciado por parte da Justiça e que a barreira etária permaneça nos 18 anos.
Vale lembrar que o atual sistema já prevê internações (que é um eufemismo para prisão) em caso de delitos graves. Elas podem chegar a até três anos. Pode parecer pouco diante dos até 30 anos que o Código Penal reserva para maiores, mas, na prática, quem tem advogado não costuma passar tanto tempo na cadeia. Um réu primário consegue a progressão de regime após cumprir 1/6 da pena e o livramento condicional depois de 1/3. Um homicida neófito e bem assessorado que tenha sido condenado a 15 anos, consegue ir para o semiaberto (o que muitas vezes significa liberdade vigiada) após 2,5 anos e obtém a condicional depois do mesmo tanto. Menores condenados a três anos de internação tipicamente cumprem a medida até o fim.
As principais diferenças, fora o fato de a etiqueta de pena aparecer de forma mais transparente no caso dos menores, acabam sendo um juiz especializado (homicídios dolosos vão a júri no direito comum) e o jovem delinquente ter sua ficha zerada ao sair da unidade de internação (já o maior perde sua primariedade para sempre). No restante, os dois sistemas são bem parecidos. As unidades de aprisionamento dificultam ao máximo as possibilidades de reintegração e são verdadeiras escolas do crime.
Resolvida essa preliminar, passemos à discussão da função da pena. Para nós, humanos, é quase impossível deixar de pensar a sanção como um ajuste de contas cósmico. Fulano foi condenado porque "mereceu". É difícil, entretanto, conciliar essa concepção com as noções mais modernas de Direito.
Exceto pela lei de talião, o "olho por olho" da Bíblia, não há como estabelecer o que é ou não justo. Quantas cestas básicas pagam uma ofensa à honra e quantos anos de cadeia valem uma vida? Não há uma moeda comum que permita a transação. É fácil entender que o castigo para homicídio precisa ser maior do que o para lesões corporais que tem de ser superior a insultos. Mas, quando passamos a delitos mais abstratos, não sobra muito espaço para a coerência. Por que a falsificação de dinheiro rende até seis anos de reclusão e fazer sexo na frente de um menor custa até quatro? Por que não três e um respectivamente, ou oito e quatro?
Deixando a contabilidade um pouco de lado, podemos tentar salvar o conceito de justiça recorrendo a entidades metafísicas como papai do céu ou uma ideia meio platônica de Justiça com "j" maiúsculo. Mas, de novo, estamos apenas lançando o problema para uma outra esfera. Por que Deus quer que obedeçamos à lei?
A partir do século 18, com o avanço das teorias iluministas e utilitaristas, o conceito de justiça retributiva, que é o nome técnico do merecimento, começa a ser questionado por autores tão diversos como Cesare Beccaria (1738-1794) e Jeremy Bentham (1748-1832). Aos poucos, ganha importância a noção de que a função da pena não é "fazer justiça", a punição pela punição, mas garantir a ordem pública. O criminoso deve sofrer uma sanção para não voltar a delinquir e também para desencorajar outras pessoas a imitá-lo.
O terreno é pantanoso. Num sistema puramente retributivo, não há espaço para atenuantes ou agravantes. Cada delito ou pecado precisa ser expiado na proporção exata, seja nesta vida ou na próxima, para satisfazer a uma ordem externa que pode ter origem divina ou humana. O utilitarismo puro não é muito melhor. Desde que seja para garantir o bem-estar da maioria, torna-se legítimo fazer um criminoso entregar-se ameaçando matar sua família ou localizar seu paradeiro torturando seus comparsas. Não é uma coincidência que todos os sistemas penais sejam até hoje uma mistura de princípios retributivistas mitigados por posições humanistas e considerações utilitaristas.
O ponto central aqui é que a introdução das ideias de matriz mais racionalista serviu para afastar um pouco o Direito da noção de vingança e de pecado e permitiu avanços consideráveis. O mais notável deles é a constatação de que a pena já não precisava ser tão "cruel" como a ofensa que pretendia coibir. É a certeza da punição e não a dureza de castigo que serve de freio à criminalidade, apregoava Beccaria. Foi operando com esses conceitos que a humanidade obteve algumas de suas mais importantes conquistas civilizatórias que são os movimentos que buscavam eliminar chagas como a escravidão, a tortura judicial, o despotismo, a intolerância religiosa, a violência contra menores, mulheres e homossexuais.
O meu receio quando vejo propostas de endurecer leis, reduzir a maioridade penal e quejandos é que elas caminham no sentido oposto ao do grande salto civilizacional que assistimos do século 18 para cá. É claro, porém, que não acredito em princípios sagrados. É perfeitamente possível que, em determinadas situações, faça sentido agravar a sanção para este ou aquele crime ou mesmo mexer nos limites da maioridade penal. É importante, porém, que tais mudanças estejam escudadas em estudos empíricos bem fundamentados e não apenas em nossas emoções, que operam quase exclusivamente com a noção de justiça retributiva. Para satisfazer nosso sistema límbico (o cérebro reptiliano), o estuprador não apenas deve ser condenado a penas longas como ainda merece ser estuprado na cadeia. Basta lembrar que sempre existe a possibilidade de um inocente ser condenado injustamente para verificar o conceito é para lá de problemático.
Então vamos aos números. Em São Paulo, cumprem medida socioeducativa por homicídio 134 adolescentes. Eles correspondem a 1,5% dos 9.016 internos da Fundação Casa (antiga Febem). No mundo adulto, de acordo com dados compilados pela Secretaria da Justiça paulista, os homicidas representam, 12% da população carcerária do Estado.
Reconheço que esses indicadores são grosseiros demais para possibilitar uma análise muito sofisticada, mas eles já permitem constatar que não estamos diante de uma explosão de casos de menores assassinando pessoas. Supondo que a polícia não tenha um viés de prender mais os velhos do que os jovens e que o universo dos encarcerados seja representativo do que ocorre no mundo real, então a taxa entre adultos é oito vezes maior que a dos adolescentes. Seria interessante comparar o índice dos 17 aos 18 com o dos 18 aos 19. Se eles não forem muito diferentes, como imagino que não são, cai por terra a hipótese de que os criminosos terceirizam em massa os homicídios para adolescentes.
É preciso muito cuidado ao processar as informações que lemos nos jornais. Tende a sair na mídia o que é atípico e não o que é normal. De resto, casos trágicos ganham superexposição, o que frequentemente nos leva à falsa conclusão de que o caos está na esquina.
Voltando à questão do tratamento diferenciado para menores, a ideia em jogo aqui é que eles são seres em formação, aos quais se devem dar mais chances. Isso é difícil de engolir quando estamos diante de um sujeito que disparou a sangue-frio contra um outro jovem que nem sequer conhecia, mas faz sentido quando pensamos em termos de sistema. Não seria muito "justo" marcar indelevelmente a vida de um jovem que, deixando-se levar pelos amigos e algumas cervejas a mais, envolveu-se numa depredação ou assalto, por exemplo.
Avanços no campo da psicologia e da neurociência revelam que a gênese do comportamento criminoso é algo muito mais sutil e complexo do que as narrativas tradicionais de bandidos contra mocinhos. Ao que tudo indica, o que explica o delito é uma combinação de condições sociais com fatores disposicionais, em parte até genéticos.
Existem certos tipos de personalidade mais propensos a cometer crimes. A relação não é determinista, mas probabilística. O indivíduo que obtém uma pontuação alta nos testes para psicopatia não está fadado a assassinar os pais, devorar os vizinhos e disparar sua metralhadora contra criancinhas numa creche. Não obstante, encontraremos proporcionalmente mais pessoas com altos escores nas escalas de psicopatia nas cadeias do que na população geral.
E a questão da responsabilidade individual é apenas uma parte da história. Há toda uma família de pesquisas no campo da psicologia social que mostra que mesmo pessoas sob todos os aspectos saudáveis e normais são capazes de verdadeiras barbaridades, desde que envolvidas pela situação. Falo aqui de experimentos como o de Philip Zimbrado, que fez com que estudantes de Stanford encenando o papel de guardas de uma prisão logo desenvolvessem atitudes sádicas.
Jovens mais do que adultos crescidos embarcam nessas canoas furadas. O córtex pré-frontal, área do cérebro responsável por planejar o futuro, tomar decisões complexas e controlar a impulsividade, entre outras funções essenciais para a vida em sociedade, só amadurece depois da segunda década de vida. Poupá-los de um processo público e de uma pena demasiado longa, mas que ainda assim está longe de ser uma "passada de mão na cabeça", parece-me fazer todo o sentido.
Outro ponto a questionar é o real poder de penas longas na prevenção do crime. Não há dúvida de que a existência da sanção é fundamental. Modelos matemáticos mostram que sociedades só são estáveis quando punem os indivíduos que tentam levar vantagem indevida. Mas será que uma previsão de 5, 10, 20 ou 30 anos faz muita diferença? Criminosos acionam uma calculadora mental antes de cometer seus delitos? Acho bastante improvável. De novo, o apelo a penas altas é mais fruto de nossas noções retributivistas do que de relações de causa e efeito conhecidas.
Se algum estudioso, após processar alguns terabytes de dados, conseguir mostrar que o sistema se tornaria mais eficaz se aumentássemos a pena máxima prevista para adolescentes de três para quatro ou cinco anos, eu não teria nada a objetar. A manutenção do "statu quo" não é um fim em si mesmo. É importante, porém, que resistamos ao impulso de legislar sobre matéria penal sob o calor do momento. Nós já cometemos esse erro, como se viu com a Lei dos Crimes Hediondos (8.072/1990), uma das piores peças jurídicas de nosso já pouco judicioso sistema judicial. No fundo, ela é um catálogo dos crimes que mais abalaram a sociedade nas últimas décadas. O problema é que, para contentar os apetites aguçados, ela se choca com uma série de princípios básicos do direito penal e com a própria Constituição. O STF anulou um de seus dispositivos.
Defender que o sistema esteja baseado na razão não implica desconhecer a importância das emoções. É evidente que, se alguém, maior ou menor, matasse um familiar ou amigo meu, eu experimentaria o desejo de vingança em sua plenitude. Só que eu não posso querer que o Estado personifique minhas emoções. O que diferencia a justiça da vingança é o fato de que a primeira é aplicada de forma impessoal e universal por uma entidade neutra e que, por definição, só pode atuar sob o primado da razão. Ignorar isso é retroceder quase 300 anos na história do direito.
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia e colunista do jornal Folha de S. Paulo
*Texto publicado originalmente no site da Folha de S.Paulo dia 18 de abril de 2013.
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