A recente ação anticorrupção deflagrada no país pelo Ministério Público, com amplo apoio judicial, foi acusada de ser política por vários e respeitados especialistas, em virtude da discussão sobre a Proposta de Emenda à Constituição 37, que pretende retirar o poder de investigação da instituição, consagrando um verdadeiro monopólio investigativo às carreiras policiais.
Refletindo sobre o tema, não acredito ter sido esse o sentimento da população brasileira, cansada de ver os cofres públicos saqueados, com desvios de milhões de reais que deveriam ser utilizados no combate a miséria, na melhoria da educação e saúde públicas — enfim, no desenvolvimento de nosso país.
Se o combate à corrupção, à criminalidade organizada e à impunidade são desejos de toda a sociedade brasileira, como se justifica a apresentação de uma proposta de emenda constitucional (PEC 37) que pretenda reduzir o importante papel institucional do Ministério Público no regime democrático, enfraquecendo sua missão constitucional?
Consagra-se, entre nós, o reconhecimento ao Ministério Público de competências genéricas implícitas que possibilitem o exercício de sua missão constitucional de promoção da ação penal pública e combate ao crime, com a adoção da teoria dos poderes implícitos — inherent powers —, pela qual, no exercício de sua missão constitucional enumerada, o órgão executivo deveria dispor de todas as funções necessárias, ainda que implícitas, desde que não expressamente limitadas.
A existência de poderes implícitos ao Ministério Publico, no sentido de realizar investigação criminal é autoaplicável e não invade as atribuições previstas constitucionalmente à polícia — conforme entendimento da ministra Ellen Gracie —, mas afasta qualquer tentativa de monopólio da competência penal investigatória —de acordo com o ministro Celso de Mello —, o que não seria uma interpretação razoável do texto constitucional.
Insisto. Não guarda qualquer razoabilidade com o espírito da Constituição, o engessamento do órgão titular da ação penal, impedindo-o de realizar, quando necessário, investigações criminais. Isso significaria diminuir a efetividade de sua atuação em defesa dos direitos fundamentais de todos os cidadãos, cuja atuação autônoma, configura a confiança de respeito aos direitos, individuais e coletivos, e a certeza de submissão dos poderes à lei.
Obviamente, o exercício do poder de investigação criminal pelo Ministério Público deve estar sujeito às proibições e limites estruturais da Constituição Federal. Porém, sem possibilidade de afastamento do poder investigatório criminal dos promotores e procuradores — para que, em casos que entenderem necessário, produzam as provas necessárias para combater, principalmente, a criminalidade organizada e a corrupção.
Para o bem da República, devemos substituir a estéril discussão sobre diminuição de mecanismos de defesa da sociedade (PEC 37) por uma melhor disciplina normativa sobre o tema, que permita efetivamente um avanço institucional. Como Cícero afirmava, fazem muito mal à República os agentes públicos corruptos, pois infundem os próprios vícios em toda a sociedade. A punição com o afastamento da vida pública desses agentes corruptos, salientava Platão, é essencial para fixar uma regra proibitiva em defesa dos interesses do Estado. E nesse sentido, a contribuição do Ministério Público é inegável.
Não há dúvidas da necessidade de aprimoramento na regulamentação normativa desse importante papel investigativo do Ministério Público, por meio de alterações na Lei Complementar do Ministério Público da União e na Lei Orgânica dos Ministérios Públicos dos estados. O objetivo não deve ser cerceá-lo, mas discipliná-lo. Obviamente, o poder investigatório do Ministério Público não é sinônimo de poder sem limites ou avesso a controles, mas derivado diretamente de suas funções constitucionais e com plena possibilidade de responsabilização de seus membros por eventuais abusos cometidos no exercício de suas funções, pois em um regime republicano todos devem fiel observância à lei.
Tanto a condução das investigações na área do patrimônio público e social, por meio de inquérito civil, quanto as investigações criminais realizadas pelos promotores de Justiça e procuradores da República, merecem urgente regulamentação legal. Deve haver a necessária ponderação entre o exercício integral dos poderes implícitos do Ministério Público e a plena efetividade das normas de proteção aos direitos e garantias dos investigados e de sua defesa, essenciais ao regime democrático.
Há a necessidade de que as investigações criminais realizadas pelo Ministério Público sejam precedidas de instauração de procedimento oficial, que indique o objeto investigado, sua necessidade e, quando possível, delimite os investigados, a fim de se evitar eventuais inclusões fortuitas.
É preciso que se estabeleça regras claras de distribuição ao órgão do Ministério Público dotado de atribuição legal fixada por critérios objetivos e prévios em respeito ao princípio do promotor natural, evitando, dessa forma, a possibilidade de “investigadores de exceção”, assim como já não se permite “acusadores de exceção”.
Também é preciso o detalhamento da instrumentalização da coleta de provas, das intimações para depoimentos e organização de audiências, prevendo a possibilidade de prévia ciência da defesa técnica do investigado, mesmo sendo inquisitivo o procedimento.
São fatores essenciais para legitimarem o exercício das importantes atribuições do Parquet a fixação de prazos a serem cumpridos — assim como já existentes nos inquéritos civis públicos —, oficialidade na juntada de todos os documentos, relatórios e periciais produzidos, com pronto acesso do investigado e de sua defesa técnica assim que juntados ao procedimento, nos termos da Súmula Vinculante 14.
Igualmente, o exercício desse importante poder/dever de investigação deve ser absolutamente transparente. Isso de modo a garantir que a sociedade, e aqueles que encaminham as representações e os próprios representados, conheçam as razões da instauração daquele procedimento investigatório pelo Ministério Publico ou do arquivamento das peças encaminhadas — com a necessidade do regular controle judicial existente nas hipóteses de promoção de arquivamento de inquérito policial —, ou ainda, a requisição de instauração de inquérito pela Polícia.
Em sessão do dia 21 de junho de 2012, o Supremo Tribunal Federal iniciou a discussão para definição desse tema, tendo ocorrido manifestações dos ministros Ayres Britto, Celso de Mello, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa sobre a possibilidade constitucional do Ministério Público exercer a plenitude de sua missão constitucional, inclusive com a realização de investigações criminais. Por outro lado, os ministros Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski, apesar de não afastarem a constitucionalidade dessa possibilidade, concordaram com a necessidade de edição de norma permissiva, com as hipóteses e exceções.
A discussão está posta na sociedade brasileira. Tanto o Congresso Nacional, quanto o STF, devem se posicionar sobre o modelo de combate a corrupção e a criminalidade organizada que pretendem para o Brasil. Do contrário, corre-se o risco de as gerações futuras lamentarem a cessação dos avanços institucionais que o país vem experimentando nesses quase 25 anos de nossa Carta Magna.
Alexandre de Moraes é advogado e chefe do Departamento de Direito do Estado da USP, onde é professor livre-docente de Direito Constitucional.
Revista Consultor Jurídico, 19 de abril de 2013
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