A Organização das Nações Unidas, em relatório elaborado por seu grupo de trabalho sobre detenção arbitrária, expressou preocupação sobre o uso excessivo da privação de liberdade no Brasil. De acordo com o documento, privar as pessoas de sua liberdade é o recurso mais comum utilizado no país, tanto em termos de detenção administrativa quanto no sistema de Justiça Criminal.
“Existe uma cultura do uso de privação de liberdade como a norma e não como uma medida excepcional reservada para delitos graves, conforme exigido pela normas internacionais de direitos humanos”, disse o especialista em direitos humanos Roberto Garretón ao final da visita oficial de dez dias ao Brasil, na última quinta-feira (28/3).
O grupo de especialistas indicados pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU para investigar alegações de privação arbitrária de liberdade visitou, entre os dias 18 e 28 de março, várias instalações de detenção, incluindo prisões, delegacias, centros de detenção para migrantes e instituições psiquiátricas.
A delegação viajou para Campo Grande, Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo, além de Brasília, onde se reuniu com as autoridades do Executivo, Legislativo, órgãos judiciais nas esferas federal e estadual, bem como organizações da sociedade civil.
"Membros do Judiciário também reconhecem que há uma necessidade de mudanças robustas a fim de reestruturar seu sistema e permitir um melhor acesso à Justiça. Esta é uma revelação positiva, à medida que a percepção dos problemas e desafios impulsionem, esperançosamente, ações e iniciativas para efetivamente resolver estas questões", diz trecho do relatório.
Audiência pública
As manifestações da ONU às condições de privação de liberdade ocorrem em um momento que o Judiciário brasileiro discute a falta de vagas nos órgãos prisionais do país. Em fevereiro, o Supremo Tribunal Federal convocou audiência pública para discutir o cumprimento de penas em regime mais vantajoso ao condenado nos casos em que o Estado não tem vagas suficientes para acomodar presos no regime semiaberto. As entidades inscritas têm até o dia 1º de abril par apresentar suas sugestões.
A audiência publica foi convocada pelo ministro Gilmar Mendes, relator de um Recurso Extraordinário interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, que contesta acórdão do Tribunal de Justiça do estado. A decisão fixou prisão domiciliar de um condenado "enquanto não existir estabelecimento destinado ao regime semiaberto que atenda todos os requisitos da Lei de Execução Penal", diz a decisão. O STF reconheceu a repercussão geral do tema.
A falta de vagas no sistema penitenciário é confirmada pelos dados publicados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça. Até junho de 2012, última data de publicação no site, a quantidade total de presos era de 508 mil. Já o número de vagas era de 309 mil. Entre os presos, 191 mil são provisórios.
Apesar de os números do Depen não identificarem em separado a deficiência de vagas no semiaberto, revelam que a população carcerária nesse regime mais que dobrou. Em 2003, eram 30.929 detidos. Em 2009, chegou a 66.670. No regime fechado, eram 139.057 presos em 2003, e 174.372 em 2009. No caso dos homens, a maior parte das condenações é por roubo (29%), enquanto que, no das mulheres, é por tráfico (59%).
Jurisprudência
Ao passar de um regime para outro, é comum que o condenado em regime de fechado se depare como a falta de vagas no semiaberto para cumprimento do restante da pena. As soluções são diferentes em cada caso e partem da convicção de cada juiz. Alguns passam o condenado diretamente para o regime aberto ou domiciliar, acreditando que a demora na transferência resulta em constrangimento ilegal. Outros mantêm o regime fechado.
Levantamento do Anuário da Justiça de São Paulo de 2013, editado pela revista Consultor Jurídico, mostra que não há consenso entre os desembargadores das Câmaras de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo a respeito da progressão de regime quando faltam vagas no semiaberto.
Para o desembargador Renê Ricupero, da 13ª Câmara, o Judiciário não pode validar a falha do sistema prisional, que não tem meios para manter os detentos em local apropriado. “A eventual solicitação de vagas não elide o constrangimento ilegal, não excluindo a responsabilidade pelo fiel cumprimento da lei, pois, ainda que concedido prazo razoável para o cumprimento da ordem judicial, essa tolerância não pode alargar-se em demasia, a ponto de manter paciente indefinidamente em regime mais gravoso”, decidiu em julgamento de Habeas Corpus.
O desembargador Alberto Viégas Mariz de Oliveira, da 16ª Câmara, em julgamento de HC, também se manifestou favoravelmente ao princípio mais vantajoso ao condenado. Para ele, se o sentenciado tem o benefício reconhecido, a falta de estrutura do estado não pode servir de argumento para o desrespeito desse direito. “Para hipóteses como esta, a jurisprudência tem entendido que cabe a determinação de transferência imediata do reeducando a regime menos gravoso, ainda que mais leve do que o que lhe fora concedido, sob pena caracterização de constrangimento ilegal”, escreveu.
Já o desembargador José Raul Gavião de Almeida, da 6ª Câmara, tem posicionamento diferente. Em julgamento de HC, ele afirma ser compreensível que se leve mais tempo para a materialização do comando judicial diante das dificuldades próprias de um país em desenvolvimento. "A consideração dessa realidade enseja a aplicação do princípio da razoabilidade, pois a limitação de vagas nos estabelecimentos apropriados para o cumprimento de pena no regime semiaberto exige respeito à fila existente. Assim, é equivocado que a atual falta de vaga acarrete o imediato ingreso no regime aberto", decidiu.
Leonardo Léllis é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 29 de março de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário