quarta-feira, 17 de abril de 2013

A OPACIDADE DA DISCUSSÃO EM TORNO DO PROMOTOR INVESTIGADOR (MUDEM OS INQUISIDORES, MAS A FOGUEIRA CONTINUARÁ ACESA


Assistimos ultimamente a uma ferrenha polêmica em torno da possibilidade ou não de o Ministério Público realizar a investigação preliminar. A questão não é nova e dela já nos ocupamos há algum tempo e em algumas oportunidades, especialmente na obra “Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal”
O que sim nos causa muito espanto e preocupação, é a dimensão que a discussão tomou: de um reducionismo sem igual. Ficou limitada a uma questão pontual (e que não é a mais relevante!!): Ministério Público ou Polícia? Pode o Ministério Público investigar ou não?
Talvez parte da opacidade da discussão derive da velocidade e da urgência, marcas indeléveis das sociedades (complexas) contemporâneas e que também afetam os juristas e o direito, na medida em que o presenteísmo e a cultura da urgência fazem com que (até inconscientemente) não queiramos “perder” tempo com longas e profundas análises (verdadeira anamnese). A ditadura da urgência é terreno fértil para discussões superficiais, reducionistas e soluções epidérmicas e sedantes.
Mas uma coisa é certa: não se estrutura nenhuma modificação legislativa sólida e progressista sem uma discussão séria, profunda e que transcenda questões pontuais. Basta de reformas pontuais e visões minimalistas.
Partindo da categoria “órgão encarregado”, encontramos atualmente três sistemas de investigação preliminar: investigação policial, juiz instrutor ou promotor investigador. Está mais do que constatada a falência do inquérito policial e do sistema de investigação a cargo da polícia. O próprio exemplo brasileiro é uma demonstração inequívoca disso. 
Quanto ao juiz instrutor, a situação é ainda mais grave. Se o modelo policial agoniza, o juiz de instrução já está morto. Há séculos. Ressuscitá-lo hoje seria um imenso retrocesso. Recordemos que esse é um erro histórico no qual não podemos voltar a incidir. Basta lembrar da barbárie iniciada no século XII, quando começou a transferência de poderes instrutórios para o juiz e que culminou na inquisição e toda uma era de escuridão jurídica. 
Ainda que se diga que a situação seria diferente – talvez porque as fogueiras seriam simbólicas...- na essência o problema permaneceria: a falha está na estrutura do sistema. Mudem os nomes, as aparências, mas o cerne continua igualmente ruim. Que o digam os mais de vinte anos de jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos... ou os quadros mentais paranóicos dos juízes com poderes investigatórios/instrutórios, tão bem descritos por CORDERO ao apontar para o predomínio das hipóteses sobre os fatos. 
Sobra então – literalmente - a figura do promotor investigador. Sempre dissemos que essa era a opção “menos problemática”, principalmente quando comparada com as demais (policial e judicial). Basta analisar as vantagens e inconvenientes de sua estrutura, bem como o funcionamento em sistemas concretos (Itália, Alemanha, Portugal e os híbridos Espanha e França), para concluir que a investigação a cargo do Ministério Público é aquela em que os inconvenientes (igualmente existentes) são mais facilmente contornáveis e passíveis de superação.
Mas isso não significa que sejamos defensores ferrenhos do promotor investigador, como interpretaram alguns leitores apressados. Estamos muito longe disso, e sempre tivemos uma posição de desconfiança em relação ao acusador oficial, até porque ele não passa disso: uma parte acusadora, cuja tal imparcialidade só é alardeada por quem não sabe o que fala. Por quem não sabe o que é imparcialidade e desconhece a origem do Ministério Público (que nasce como contraditor natural do imputado e imposição do sistema acusatório). Nessa matéria estamos com GUARNIERI, quando afirma que acreditar na imparcialidade do Ministério Público é uma ilusão. A mesma ilusão de confiar ao lobo a melhor defesa do cordeiro...
No campo da patologia, é elementar que elas existem, como em toda e qualquer atividade. Ninguém nega a existência (e a gravidade) de alguns bizarros espetáculos levados a cabo por promotores e procuradores autoritários e prepotentes, verdadeiros justiceiros da (sua) ideologia de “lei e ordem”. Também existem os amantes do holofote, adeptos da maior eficiência da imputação midiática. Mas tudo isso também ocorre, nessa mesma dimensão patológica é claro, na investigação policial. E, não raro, tem-se notícia de que a polícia foi ainda mais longe nos abusos, alcançando terrenos ainda não galgados pelo MP (e espera-se que nunca cheguem lá). Ora, ainda que a discussão equivocadamente seja reduzida ao campo da patologia, também nisso a investigação policial é mais fértil a práticas abusivas.
Não obstante, desde que desveladas algumas hipocrisias e falácias discursivas, a investigação a cargo do Ministério Público é o caminho natural diante do fracasso dos demais sistemas. Mas isso está ainda muito longe de qualquer evolução significativa, pois o problema não se encerra no órgão encarregado. Vai muito além.
Aqui reside nossa inconformidade: muito mais importante do que decidir quem vai fazer a inquisição (MP ou Polícia), está em definir como será a inquisição, sempre mantendo o juiz – obviamente - bem longe de qualquer iniciativa investigatória.
A discussão em torno da autoridade encarregada é reducionista e minimalista, pois deixa de lado aspectos verdadeiramente fundamentais, tais como:
1. Definir a função do juiz na investigação, bem como sua esfera de atuação. Deverá ter uma postura ativa, mas não como inquisidor (ou investigador, o que significa a mesma coisa), mas sim como garantidor da máxima eficácia dos direitos fundamentais do imputado, sempre pronto para, mediante invocação da defesa, fazer cessar ou impor limites ao (ab)uso do poder investigatório do Ministério Público (ou da polícia). 
2. Repensar a prevenção, pois é óbvio que ela deve ser uma causa de exclusão da competência (e não de fixação como temos hoje), pois em nenhum caso esse juiz da fase pré-processual poderá ser o mesmo que irá instruir e julgar o processo. Juiz prevento é juiz contaminado e, pois, jamais poderá julgar. Essa é a lição de mais de 20 anos de jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.
3. Definir claramente o controle externo da atividade policial (talvez através das instruções gerais e específicas), que continua um ilustre desconhecido no Brasil (que policia judiciária é essa que não está subordinada ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público?).
4. Jamais poderá se admitir que medidas restritivas de direitos fundamentais (prisões cautelares, busca e apreensão, interceptações telefônicas, etc.) sejam empregadas pelo investigador sem prévia autorização judicial. Tampouco é admissível, à luz do constitucional sistema acusatório, que o juiz o faça de ofício.
5. É fundamental definir o objeto da investigação preliminar e os limites da cognição, para termos uma fase pré-processual verdadeiramente sumária (e jamais plenária, como se converteu na prática).
6. Definir o prazo máximo da investigação preliminar adotando uma resolução ficta quando superado o limite (CPP paraguaio) ou uma pena de inutilidade (inutilizzabilità do sistema italiano) dos atos praticados após o término do prazo legal. Nessa matéria, de nada serve a definição de um prazo sem a correspondente sanção processual pela violação.
7. Determinar a situação jurídica do sujeito passivo, bem como a necessária incidência do contraditório e do direito de defesa, diante da inafastável aplicação do art. 5°, LV da Constituição na investigação preliminar. É imprescindível responder aos seguintes questionamentos: A partir de que momento alguém deve ser considerado como sujeito passivo? Que circunstâncias devem concorrer para que se produza a situação de imputado? De que forma se deve formalizar essa situação? Que conseqüências endoprocedimentais produz o indiciamento? Que cargas assume o sujeito passivo? Que direitos lhe correspondem?
8. Adotar o sistema de exclusão física dos autos da investigação de dentro do processo, excetuando-se as provas técnicas e aquelas produzidas no respectivo incidente judicializado de produção antecipada de provas. Isso significa fortalecer a sumariedade da cognição (limitada ao fumus commissi delicti) e a função endoprocedimental dos atos de investigação. Mas, principalmente, acaba com o absurdo das sentenças condenatórias baseadas no “cotejo” como os elementos do inquérito. Ainda que a sentença não indique, é inegável a contaminação do julgador por esses elementos colhidos na fase inquisitorial. Sem mencionar o Tribunal do Júri, onde os leigos julgam de capa a capa (e mesmo fora da capa...) e sem fundamentar.
9. Definir o alcance do segredo (interno e externo) da investigação, bem como sua duração e requisitos para decretação. O art. 20 do CPP não regula absolutamente nada e, o pouco que diz, não resiste a uma filtragem constitucional. A questão assume uma relevância ainda maior na medida em que alguns tribunais, equivocadamente, estão vedando o acesso de advogados aos autos de inquérito policial, em flagrante violação ao disposto na Lei 8906 e no art. 5°, LV da Constituição. 
10. Prever os requisitos e a forma como será realizado o incidente de produção antecipada de provas, respeitando as categorias jurídicas próprias do processo penal (diante da evidente inadequação das analogias com o processo civil).
Essas são questões muito mais relevantes e que deixam em segundo plano a rasteira discussão em torno da autoridade encarregada da investigação. Diante delas, por exemplo, pouco importa ou nada importa o que diga o STF sobre a possibilidade de o MP investigar ou não. Problemas muito mais graves permanecerão intocados.
Inclusive, se o STF entender que os atos investigatórios levados a cabo pelo MP são ilegais, terá de ser reconhecida a nulidade de toda a investigação e do processo (contaminação por derivação).
Ou será que continuarão fechando os olhos para a contaminação (consciente ou inconsciente) do julgador pela prova ilícita e, com isso, avalizando as ilegalidades cometidas pelo Estado e repetindo o superado discurso da “não contaminação do processo pelas irregularidades do inquérito”? 
Enfim, é preocupante o reducionismo da discussão, que deixa de lado questões muito mais graves do que definir quem será o inquisidor. 
O problema está na própria inquisição. Mudem ou mantenham os inquisidores, pois a fogueira continuará acesa.


Autor: Aury Lopes Jr. Boletim IBCCRIM n. 142 - Set. 2004. 

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