Tendo em conta as recentes decisões de Supremas Cortes Latino-americanas e a decisão da 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo(1), que declararam a inconstitucionalidade da incriminação do porte de drogas para consumo pessoal em razão do conflito de valores constitucionalmente assegurados, notadamente a privacidade, importa saber se a atual Lei de Drogas, a Lei 11.343/2006, contempla especificidades merecedoras de consideração nessa exegese.
Com relação ao tema em exame é de fundamental importância ressaltar que o próprio substrato ideológico que lastreia a nova lei de drogas experimentou substanciais modificações, aproximando a Política Nacional de Drogas do modelo europeu, de características mais tolerantes. Não que a Política Nacional de Drogas tenha rompido com o modelo hegemônico mundial, mas, é inegável que, no tocante ao delito de porte para uso pessoal, arrefeceu o tratamento dado à questão, aproximando seu ideário basilar dos princípios constitucionais e garantias individuais constantes da Constituição da República de 1988. Nessa medida, pode-se dizer que a lei, embora sem abandonar a guerra, despiu-se do uniforme militar.
Assim, o arcabouço principiológico do sistema, conforme é enunciado no artigo 4º da nova lei de drogas, abandona os fundamentos norteadores da ideologia de segurança nacional – rompendo, ainda que formalmente, com a perspectiva de “enfrentamento do inimigo interno” - que colocava todo o cidadão que eventualmente usasse drogas sob suspeita de atentar contra a segurança interna do País. O novo balizamento constitucional prevê expressamente como princípios: “o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade”, conforme a dicção do artigo 4º, inciso I; “o respeito à diversidade e às especificidades populacionais existentes”, nos termos do inciso II do mesmo dispositivo legal; além da necessidade do “fortalecimento da autonomia e da responsabilidade individual em relação ao uso indevido de drogas”, conforme o disposto no seu artigo 19, inciso III.
E essa base ideológica não tem mero interesse programático, pois servirá como parâmetro a ser seguido tanto pelo intérprete como pelo operador que se defrontar com situações de conflito na aplicação dos seus dispositivos legais.
As possibilidades que decorrem desse novo posicionamento são inúmeras e impossíveis de se enumerar nessa fase inicial de vigência da nova lei, mas apenas a título de ilustração, vale considerar um aspecto sobre o qual a doutrina já tem se posicionado, todavia sem considerar a mudança de paradigmas aqui apontada.
Ao punir o delito de porte de substâncias psicotrópicas para uso pessoal, isolada e unicamente, com pena restritiva de direitos – a nova lei as denomina, inclusive, de medidas educativas, conforme expressamente se vê da dicção do § 6º do artigo 28 e artigo 29 – o legislador inaugura uma nova modalidade de delitos em nosso sistema penal, vale dizer, os delitos de mínimo potencial ofensivo(2).
Essa afirmação é possível uma vez que não existe, no ordenamento penal brasileiro, nenhuma outra infração cujas penas cominadas sejam mais brandas que as previstas para a prática do delito de porte de drogas para uso próprio. Nem mesmo as contravenções penais ou os delitos de menor potencial ofensivo têm semelhante previsão de preceito sancionatório.
Nessa linha de pensamento verifica-se de plano que o delito de “uso de drogas” é, nos termos da nova lei, absolutamente incompatível com a privação de liberdade do eventual infrator.
Consagrando esse entendimento, a lei veda em seu artigo 48, § 2º a imposição de prisão em flagrante ao autor da conduta prevista no artigo 28, devendo este ser encaminhado imediatamente ao juízo competente ou assumir o compromisso de a ele comparecer. Tal compromisso poderá ser tomado pela própria autoridade policial, sempre vedada a detenção do autor do fato, conforme estabelece o § 3º do artigo 48 da nova lei de drogas.
Dessa forma, ao contrário do que tem sido afirmado pela maioria da doutrina, não será possível, realmente, a prisão em flagrante do autor da conduta tipificada no artigo 28 da Lei 11.343/2006. É bem verdade que a autoridade que surpreender o autor na prática delitiva poderá conduzi-lo coercitivamente à repartição policial se, e apenas nessa hipótese, o autor se negar a acompanhá-lo para a lavratura da ocorrência, caso em que estaria configurada a desobediência ao cumprimento de uma ordem legal, circunstância que não se confunde com a prisão em flagrante em razão do delito de porte para uso pessoal.
Como decorrência lógica da impossibilidade de prisão em flagrante - a teor, como já analisado, do disposto no artigo 48, § 2º da Lei de Drogas - temos que está absolutamente vedado o ingresso em casa particular para a constatação ou apreensão de drogas ilícitas que estejam sendo utilizadas para consumo próprio sem mandado judicial, uma vez que a norma constitucional excepciona, nessas hipóteses, apenas a necessidade da prisão em flagrante, conforme prevê o inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal. Portanto, no caso de porte para uso pessoal será vedada a intervenção desmotivada do Estado no âmbito do domicílio da pessoa que usa drogas.
E essa interpretação se coaduna, sistematicamente, com o fato de que a nova lei não criminaliza a conduta de quem utiliza local ou bem de sua propriedade ou posse, por qualquer título, para o uso de substâncias psicotrópicas, conduta que era anteriormente equiparada ao tráfico conforme o inciso II do § 2º do artigo 12 da Lei 6.368/76, e que, na Lei 11.343/2006, não mais foi prevista como crime restando, pura e tão somente, a criminalização daquela utilização de imóveis e bens para o tráfico de drogas, consoante a exata dicção do inciso III do § 1º do artigo 33 da nova Lei de Drogas.
Essa nova conformação legislativa, na verdade, reconfigura o âmbito da atuação legítima do Estado. Caso a conduta não tenha relevância e permaneça no plano da intimidade do cidadão que faça uso da droga, fora do espaço público, não será permitida a intervenção desmotivada do Estado que nesse limite somente poderá ingressar munido de autorização judicial.
Pois bem, ao delimitar o âmbito e a forma da atuação estatal legítima, o legislador deu nova solução ao conflito de direitos constitucionalmente assegurados. A conduta está criminalizada, contudo, se praticada no espaço público terá potencialidade de expansão e sujeitará o infrator à pronta e imediata intervenção estatal, com a apreensão da droga e o registro da ocorrência, podendo até mesmo, em caso de recalcitrância do infrator, resultar na sua condução coercitiva às dependências policiais, pura e tão somente para a lavratura do Termo Circunstanciado.
Contudo, se praticada no recesso de sua privacidade, no interior de sua residência, por exemplo, o infrator, embora cometendo um ilícito penal, somente estará passível da intervenção estatal se a autoridade pública se apresentar munida de mandado que lhe franqueie o acesso à residência da pessoa averiguada.
E nem se alegue que esse fato inibirá a ação estatal com relação ao tráfico de drogas porque, nesse caso, a autoridade policial continuará autorizada a intervir, obviamente agora com redobrados cuidados para não cometer os freqüentes e usuais abusos que fazem parte da crônica policial diária nessa seara.
Finalmente e em decorrência disso, estando equiparadas as condutas de plantio para uso pessoal, nos termos do § 1º do artigo 28, e a conduta de porte para uso próprio, não se admite a possibilidade de prisão em flagrante delito também nessa modalidade delitiva e, portanto, não será possível o ingresso em domicílio do investigado, a não ser de posse de competente mandado, conforme já analisado para a conduta descrita na cabeça do mesmo dispositivo legal.
E por outro lado, não será ocioso reforçar que essa alternativa de suprimento autônomo da substância psicotrópica por parte da pessoa que dela se utiliza, aberta pela nova lei de drogas, retira uma fonte fundamental de recursos da atividade comercial ilícita e evita o estabelecimento de vínculos da pessoa que usa drogas com as organizações criminosas que se dedicam ao tráfico, com todos os consectários desse relacionamento clandestino que é, em si mesmo, um fator criminógeno de exponencial potencialidade.
Nessa linha de raciocínio é possível realizarmos um prognóstico acerca da autorização e adoção de novas medidas práticas que podem integrar o elenco das chamadas estratégias de redução de danos. Trata-se aqui de examinar as chamadas salas de uso seguro ou locais especialmente destinados ao uso de drogas, que já vêm sendo implantadas com êxito em outros países como Espanha e Austrália, além da sempre lembrada política holandesa dos coffe-shops.
A assertiva se sustenta porque o embasamento legal já se encontra estabelecido em nosso ordenamento e resta apenas a vontade política e a regulamentação própria para a sua efetiva implementação. Caso a autorização para o uso seja restrito a determinados locais e certos grupos de pessoas, a conduta estará contida naquele âmbito específico e será passível de um melhor controle criminal, social e médico-sanitário.
Nunca é demais recordar que, em nossa história, tivemos experiências semelhantes como os clubes de diambistas do Maranhão, conforme os relatos de estudiosos da época(3). Por outro lado, condutas que envolvem aspectos morais e que são criminalizadas com maior rigor – como o ato obsceno, tipificado no artigo 233 do Código Penal e sancionado com pena de detenção de três meses a um ano – são também de tipificação restrita ao espaço público e há tolerância com sua prática privada e mesmo permissão e destinação de locais especialmente adequados à atividade do naturismo, geridos por associações ou clubes de pessoas cultoras desse costume.
Dessa forma, embora perfilhando o entendimento adotado nas recentes decisões destacadas no início e que declararam a inconstitucionalidade da criminalização da conduta do porte de drogas para uso pessoal (notadamente pela ausência de lesividade e alteridade), importa reconhecer que a nova lei de drogas encerra especificidades que permitem a implementação de mudanças e a realização de novas ponderações no tocante ao conflito de princípios constitucionais aqui abordado.
NOTAS
(1) A Suprema Corte Argentina declarou recentemente a inconstitucionalidade da incriminação do porte de drogas para uso próprio em razão da impossibilidade da intervenção estatal no âmbito privado dos cidadãos. A Corte Constitucional da Colômbia ratificou, recentemente, o mesmo entendimento que já havia adotado desde 1994, confirmando a inconstitucionalidade de dispositivo idêntico. No Brasil, a 6a Câmara do 3oa Grupo da Secção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo declarou a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, na Apelação Criminal 01113563.3/0-0000-000, da Comarca de São José do Rio Pardo, em 31 de março de 2008.
(2) Também nesse sentido ver: MAGNO, Levy Emanuel. In: GUIMARÃES, Marcello Ovídio Lopes (coord.) – Nova Lei Antidrogas Comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 120.
(3) ASSIS IGLÉSIAS, Francisco. Sobre o vício da diamba. In: Brasil. Serviço Nacional de Educação Sanitária. Maconha – coletânea de trabalhos brasileiros. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde; 1958, p. 18-19.
Maurides de Melo Ribeiro, Criminalista, mestre e doutorando em Direito Penal e Criminologia pela USP, Prof. de Direito Penal na Universidade São Judas e Faculdades de Campinas – Facamp, Presidente da Comissão de Política Nacional de Drogas do IBCCRIM. Ex-Presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes – CONEN/SP
Boletim IBCCRIM nº 206 - Janeiro / 2010
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