No estudo do direito penal constitucional, a aplicação da pena acessória de suspensão dos direitos políticos decorrente de decisão criminal é matéria recheada de divergências jurisprudenciais, sobretudo pela falta de uma legislação apropriada sobre o tema.
Uma corrente jurisprudencial entende que toda condenação criminal suspende automaticamente o exercício dos direitos políticos, independentemente da espécie de pena aplicada, seja privativa de liberdade, seja restritiva de direitos. Outra prevê que havendo possibilidade de substituição da pena privativa por restritiva de direitos, não se justifica tal suspensão mencionada no art. 15, III, da Constituição Federal.
Porém, ante terceiro e novo estudo, entendemos ser mais adequado juridicamente e mais próximo de uma interpretação sistêmica da CF/88 a impossibilidade da suspensão dos direitos políticos do condenado - independente da pena aplicada - por ausência de regulamentação legal.
O art. 92 do Código Penal (que trata dos efeitos da condenação), não incluiu a suspensão dos direitos políticos como efeitos da condenação. Ao contrário, é textual quando afirma ser necessária condenação a pena privativa de liberdade, provocando a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo, exigindo-se que tal efeito seja motivado e declarado na sentença, não sendo automático (art. 92, parágrafo único).
De outro lado, cumpre observar que a suspensão dos direitos políticos tem consequências altamente danosas, pior que muitas penas principais. Impossibilita o apenado de estudar em instituições de ensino público, de prestar concurso público, o serviço militar, obter certidão ou título de eleitor, além das dificuldades em ser contratado formalmente pela iniciativa privada, ficando, também, impedido de ajuizar Ação Popular.
Ora, o art. 15, III, da Constituição Federal dispõe de forma genérica e não do Código Penal nem por qualquer outra lei, não estando portanto claros os limites e a forma de aplicação. Desse modo, descabe aplicar ao preso restrição aos direitos e deveres da cidadania até que o legislador decida regulamentar detalhadamente a norma constitucional.
Vemos que até para casos menos graves descritos no mesmo art. 15 (dos incisos I, II e V) da CF, o legislador ordinário já regulamentou as matérias na Lei n. 6.815/80 (perda da naturalização do estrangeiro), Lei n. 10.406/02 (incapacidade absoluta no Código Civil), e, a Lei n. 8.429/92 (improbidade administrativa). Logo, não há como aplicar a perda da cidadania como pena acessória, sem que haja também uma lei clara a detalhar a Constituição.
E, não havendo regulamentação, em sede de direito penal não é possível fazer analogia in malam partem, buscando nos artigos 91, 92 ou do parágrafo único do art. 92 do Código Penal as regras para esse tema. O direito penal rege-se pela legalidade estrita, regra inabalável que não pode ser ignorada no mundo jurídico.
Na verdade, sem regulamentação devida, a aplicação da suspensão como pena acessória pode se tornar mais grave que uma pena principal, numa inversão de valores. Sobretudo nos casos de penas principais com regime aberto ou restritivas de direitos, pois, como pena acessória, deixará de ser tecnicamente cidadão, ou seja, perderá os direitos de votar e de ser votado.
Há que se refletir sobre as consequências da perda da cidadania no mundo moderno. É como matar a alma política/participativa de uma pessoa. Ou arrancar da pessoa humana aqueles direitos consagrados na nacionalidade plena – deveres, direitos e obrigações - inerente à vida política e cívica do país-pátria em que vive.
Ora, os conceitos modernos de direitos galgados pela humanidade colocam em xeque a suspensão da cidadania decorrente da sentença penal condenatória. E são fenômenos jurídicos que nos trazem à lembrança (ilustrando o tema) velhas previsões legais, por exemplo, que atingiam os negros norte-americanos até meados do século XX no Sul daquele país, quando não eram considerados sequer cidadãos do seu país.
Em resumo, estamos convivendo com inúmeras interpretações e entendimentos que – data venia- ignoram os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, com aplicação dessa pena acessória com efeitos tecnicamente mais graves do que a da pena principal, sendo que não há lei regulamentando a aplicação dessa pena acessória tão grave.
E num mundo que se diz civilizado, humano e moderno, seria factível ainda admitir que o preso – ou qualquer pessoa - possa ser considerado ‘não cidadão’, vivendo dentro do próprio seu país/ nação?
Doorgal Borges de Andrada, Desembargador do TJMG. Vice-presidente da Associação dos Magistrados Mineiros (AMB)
Boletim IBCCRIM nº 205 - Dezembro / 2009
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