sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Artigo: A volta do exame criminológico


Estamos às voltas com a tramitação no Congresso de projeto de lei que novamente traz alterações na Lei de Execução Penal e prevê a reintrodução do exame criminológico para instrução de pedidos de benefícios legais. Supondo-se inevitável tal medida, o problema que nos ocupa é discutir sobre uma melhor forma como ela poderia ser tomada e apresentar propostas nesse sentido. Serão feitas considerações teóricas e críticas sobre o exame criminológico, sobre a natureza e vantagens do parecer das Comissões Técnicas de Classificação(1), as quais justificarão as propostas a serem apresentadas ao final.

1. O exame criminológico

A natureza do exame criminológico consiste na realização de um diagnóstico e de um prognóstico criminológicos, aos quais se segue uma proposta de conduta a ser tomada em relação ao examinando(2). Trata-se de perícia acerca da dinâmica do ato criminoso(3,4).
Pelo diagnóstico, o exame busca avaliar as condições pessoais do preso, orgânicas, psicológicas, familiares e sociais, que estariam associadas à sua conduta criminosa e a “explicariam”. Serão discutidos aqui dois problemas.
O primeiro problema corresponde a um duplo desafio: a) como garantir que as características psicológicas apontadas no atual exame estavam presentes quando da prática criminosa, há dois, três ou mais anos atrás?; b) como garantir que elas foram fatores psicológicos motivadores do crime?
Se a resposta ao desafio for a de dizer que as características de personalidade importantes tendem a ser mais estáveis e que, por conseguinte, já estariam presentes quando da prática delitiva, então há que se concluir que, o preso que hoje não tem condições de obter o benefício, nunca as terá, e que o preso que hoje tem condições, sempre as teve e sempre as terá.
Por outro lado, se se acreditar na possibilidade da pessoa mudar suas características psicológicas, para “melhor” ou para “pior”, como garantir as características tidas como “negativas” já estariam presentes na época da prática delitiva e que teriam sido motivadoras do crime? Como garantir que tais características não teriam sido fomentadas no processo de prisionização, de aculturação no cárcere? Diversos fatores “negativos” que comumente vêm reforçando conclusões contrárias à concessão dos benefícios podem facilmente ser associados à experiência de encarceramento. Exemplos ilustrativos: estereotipia de pensamento, com baixa capacidade de reflexão e autocrítica (reflexos da estereotipia do cárcere), valores ético-morais centrados em benefícios próprios (mecanismo de sobrevivência), aspectos regressivos, infantis, de imaturidade e de insegurança (produtos mais do que esperados de uma vida totalmente controlada, de total dependência de outros), dificuldade de elaboração de planos de futuro consistentes (reflexos da estereotipia do cárcere e da falta de perspectivas na vida carcerária, a não ser, quando muito, a de conquistar a liberdade).
Esse duplo desafio seria mais facilmente enfrentado, caso o examinando tivesse sido submetido a exame criminológico quando do início da execução de sua pena, conforme previsto nos artigo 8º da LEP e 34 do Código Penal.
O segundo problema, diretamente decorrente do primeiro, é o risco de que os técnicos deem às características “negativas” de seu examinando um realce maior, comparativamente com as “positivas”, sem se preocuparem, contudo, por saber se as tais características “negativas” teriam sido motivadoras do crime. Na medida em que essa associação deixa de ser objeto de preocupação, o exame deixa de ser criminológico para ser unicamente um exame de personalidade e do histórico pessoal do preso, o qual é previsto na LEP como uma avaliação à parte, distinta do criminológico, conforme fica muito claro no item 34 da Exposição de Motivos da lei. Nesse caso, na medida em que se nega ao preso o benefício pleiteado por conta dos resultados do tal exame (de personalidade), o preso estaria sendo punido pelo fato de ter determinadas características de personalidade e de histórico pessoal. A prevalecer este tipo de raciocínio, por certo se estaria regredindo ao vetusto direito penal do autor, agora travestido de direito penal do inimigo e invadindo as searas da execução penal sob o manto protetor de um pseudo-exame criminológico.
Pelo prognóstico, o exame criminológico oferece uma conclusão acerca da probabilidade de reincidência. Forçoso é destacar aqui outro problema. É que algumas das características psicológicas comumente levantadas e tidas como particularmente relevantes costumam ser relativamente estáveis. Além disso, os dados do passado são irremovíveis. Tudo isso em sério prejuízo da validade do prognóstico.
Suponha-se, por exemplo, a seguinte síntese de dados, muito frequentes em exame criminológico: Examinando proveniente de lar desestruturado e desagregadodesadaptação escolarpassagens por instituições correcionais, traços de agressividade, tendência ao comando e liderança, ambição, perspectiva de futuro vaga e inconsistente ou não condizente com sua situação real. Diante de tal quadro, muito provavelmente o prognóstico não seria nada favorável e a conclusão da justiça seria pelo indeferimento do benefício. Entretanto, quem tem esse passado acima descrito, sempre o terá, já que o passado é irrevogável. Quanto aos traços de personalidade exemplificados, eles tendem a ser relativamente estáveis e, o que é mais importante, não são “negativos”, embora assim sejam avaliados. Quanto à perspectiva de futuro, como se exigir que o preso tenha uma visão consistente do que pretende em liberdade, se ele está sujeito aos rigores do cárcere?
Portanto, o problema não está unicamente em saber como foi o histórico do preso e quais são suas características psicológicas associadas à prática delitiva, à época dos fatos. Questão de crucial importância é saber como ele atualmente está lidando com tudo isso, como vem direcionando sua conduta frente a toda sua bagagem pessoal, consideradas as limitações do cárcere. Ocorre que o instrumento mais adequado para se fazer esse tipo de avaliação não é o exame criminológico, e sim o parecer das Comissões Técnicas de Classificação.

2. O parecer das Comissões Técnicas de Classificação

O parecer de C.T.C. era explicitamente previsto no parágrafo único da redação anterior do artigo 112 e subentendido na redação anterior do artigo 6º, ambos da LEP. Por força da Lei 10.792, não mais se prevê nenhuma forma de avaliação técnica.
O parecer não se centra na avaliação do ato criminoso e, muito menos, no prognóstico de reincidência. Sua natureza consiste na avaliação da resposta que o preso vem dando aos programas individualizadores, às oportunidades que lhe têm sido oferecidas durante a execução de sua pena. Assim, para que a Comissão Técnica possa fazer de fato um parecer tal como previsto na redação anterior do art. 6º da LEP, pressupõe-se que ela participe ativamente do dia a dia do presídio, que elabore e acompanhe os programas individualizadores. Caso contrário, fica-lhe totalmente inviável a realização de seu parecer conforme definido nos termos acima.
A Comissão Técnica de Classificação tem por função planejar a individualização da execução penal. Enquanto o exame criminológico enfoca o risco de reincidência, o parecer de C.T.C. deveria enfocar a conveniência que tem para a felicidade sustentável do preso a concessão do benefício. Por sinal, na redação anterior do art. 6º da LEP, lia-se que a Comissão deve “propor [grifo nosso], à autoridade competente, as progressões e regressões dos regimes. . .” O verbo propor sugere que a C.T.C. conhece a individualidade do preso, o seu dia a dia, devendo saber o que para ele é melhor. Ele faz supor que a C.T.C. deve ter um papel decididamente proativo na execução.
Por outro lado, porém, devemos reconhecer que, em determinados casos, tendo em conta a natureza e gravidade do crime cometido, os históricos criminal e prisional do examinando, há que se tomar cuidados especiais para a concessão dos benefícios legais. Nesses casos, talvez seja recomendável a realização das duas avaliações. O exame, por se tratar de perícia, deve ser feito por outra equipe que não acompanha o preso. Aliás, a própria Comissão também poderia tomar a iniciativa de sugerir a realização do exame criminológico, pois é ela quem melhor conhece o preso. O exame é uma peça autônoma, e como tal será analisado e apreciado pela justiça. Entretanto, a avaliação, no seu todo, ganharia em qualidade se ele fosse também encaminhado à C.T.C., a fim de que esta fizesse dele a sua leitura à luz de todo o acompanhamento que vem fazendo do preso, leitura essa que, obviamente, integraria seu parecer(5).

Concluão: propostas

Diante do exposto, considerando a iminência de se reintroduzir o exame criminológico para a instrução de pedidos dos benefícios legais, seguem-se algumas propostas para reflexão.
1) O art. 6º da LEP voltaria à sua redação anterior, inserindo-se, no entanto, uma referência explícita ao parecer da C.T.C.
2) O art. 112 da LEP, sem prejuízo dos parágrafos atuais (Lei 10.792), voltaria a prever o recurso ao parecer da Comissão Técnica de Classificação. Seria previsto também o recurso ao exame criminológico em casos especiais, dependendo de sua gravidade e complexidade, exame esse que precederia o parecer e deveria ser encaminhado à Comissão.
3) Seria uma medida muito interessante, embora bastante arrojada, tornar o exame criminológico de entrada um prerrequisito obrigatório para que se pudesse submeter o preso a exames criminológicos posteriores, quando da instrução de seus pedidos dos benefícios legais. Para tanto, dar-se-ia um prazo, a fim de que os Estados possam tomar as providências necessárias.

NOTAS

(1) Sobre esta matéria, ver SÁ, Alvino A. de & ALVES, Jamil ChaimDos pareceres da Comissão Técnica de Classificação na individualização executória da pena: uma revisão interdisciplinarBoletim do IBCCRIM, ano 17, no 201, agosto de 2009, pág. 7-8. Ver também SÁ, Alvino A. deCriminologia clínica e psicologia criminal, São Paulo: Editora RT, 2007.
(2) Tal entendimento acerca do exame criminológico praticamente coincide com a própria definição de Criminologia Clínica, em sua concepção mais tradicional e estritamente médico-psicológica. Por exemplo, para Jean Pinatel, o objetivo da Criminologia Clínica “é analisar o delinquente estudado, formular uma hipótese sobre sua conduta ulterior e elaborar o programa das medidas susceptíveis de evitar uma eventual recidiva” (PINATEL, JeanLa criminologie. Paris: Spes, 1960, pág. 10). Para Cláudio T. L. de Araújo e Marco A. de Menezes, o exame criminológico é “o exame do infrator em seus aspectos bio-psico-sociais, que se preocupa em identificar as causas da gênese da conduta criminosa, a antissocialidade do sentenciado [. . .], servindo ainda à elaboração de um juízo de expectativa acerca recuperação do sentenciado” (pág. 11) (ARAÚJO, Cláudio T. Leotta eMENEZES, Marco Antônio. O exame criminológico e as Comissões Técnicas de Classificação: uma abordagem crítica. Boletim do Instituto Manoel Pedro Pimentel, no 19, jan.-março/2002, pág. 11-13).
(3) MARANHÃO, O. RamosPsicologia do Crime. 2a. ed. modificada. São Paulo: Malheiros Editores, 1993.
(4) Sobre exame criminológico, ver ainda ARAÚJO, Cláudio Theotonio Leotta e MENEZES, Marco Antônio. Execução penal, exame criminológico e apreciação dos indicadores de potencial criminógeno. In RIGONATTI, Sérgio P. (Coord.), SERAFIM, Antônio de P. & BARROS, Edgard L. de(Orgs). Temas em psiquiatria forense e psicologia jurídica. São Paulo: Vetor Editora, 2003. (pág. 229-245).
(5) De se lembrar aqui o que já foi dito acima sobre a importância da realização do exame criminológico de entrada, o qual seria muito útil para se saber da necessidade de realizar o novo exame criminológico, bem como serviria de parâmetro para esse novo exame e para o parecer de C.T.C.


Alvino Augusto de Sá
Professor de Criminologia (Clínica) da Faculdade de Direito da USP.

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