A Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal), em sua primitiva redação(1), previa a realização de exame criminológico, quando necessário, para a progressão de regime prisional. Embora não fosse obrigatório, tornou-se a prática, mormente nos crimes patrimoniais.
Após quase vinte anos de vigência da referida norma, muitas vozes se voltaram contra o exame criminológico, notadamente em razão de sua subjetividade, falta de cientificismo e autoritarismo. Sustenta-se que os laudos não adotam critérios objetivos e carecem de padronização, baseando-se em meras presunções acerca da possibilidade ou não de o condenado reiterar a prática delitiva(2).
A Lei nº 10.792/2003 alterou a sistemática até então vigente, não mais prevendo a realização do exame criminológico, passando a exigir, no tocante ao requisito subjetivo, que o condenado ostente bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento prisional. Igual medida também foi adotada para os casos de livramento condicional, indulto e comutação de penas.
Muito se tem discutido, durante esses seis anos de vigência da norma, acerca da melhor interpretação a lhe ser conferida, culminando com a apresentação do Projeto de Lei do Senado nº 190/2007, recentemente aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania(3).
De acordo com o texto final aprovado no referido Projeto de Lei, que novamente altera o art. 112 da Lei de Execução Penal, passa-se a exigir, para o deferimento dos pleitos, que a decisão seja precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do Ministério Público, bem como de exame criminológico nas hipóteses de reincidência ou de condenação por crime hediondo ou a ele equiparado, ou cometido mediante violência ou grave ameaça.
A polêmica que se instalou, em face do que dispõe a atual redação legal, diz respeito à possibilidade ou não de o juiz determinar a realização do exame, quando entender necessário à formação de sua convicção, ou dispensá-lo, diante da apresentação de atestado de boa conduta carcerária.
Sustenta-se, de um lado, que ao juiz da execução não mais é permitido se valer de laudo técnico para aferir o mérito do condenado, ficando a análise restrita ao atestado fornecido pelo diretor do estabelecimento prisional. Defendem esse entendimento, dentre outros, Andrei Zenker Schmidt(4), Fabiana Lemes Zamalloa do Prado(5), Renato Marcão(6) e Salo de Carvalho(7).
De outra sorte, há quem afirme que, embora não mais obrigatório o exame, é possível ao juiz determinar, quando entender imprescindível, que o condenado se submeta à perícia. Pensam assim, por exemplo, Guilherme de Souza Nucci(8), Mário Coimbra(9) e Márcio Zuba de Oliva(10).
O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, interpretando a Lei nº 10.792/2003 sob os enfoques constitucional e infraconstitucional, firmaram entendimento no sentido de que o magistrado pode determinar a realização do exame criminológico, se entender indispensável para a sua convicção, desde que em decisão devidamente motivada(11).
O grande questionamento que se põe está em saber o que deve ser considerado como fundamento para determinar a realização da perícia, ou ainda o que pode ser admitido como motivo para se negar a progressão, sob o aspecto subjetivo, ainda que o condenado possua bom comportamento carcerário.
Embora a redação atual da Lei de Execução Penal não seja expressa a respeito, o Código Penal dispõe que as penas privativas de liberdade serão executadas na forma progressiva “segundo o mérito do condenado”(12).
Dentro desse contexto, só é possível aferir o mérito do condenado com base no que ocorreu durante o período de execução. Não basta, para fundamentar a necessidade de realização do exame criminológico, que o magistrado faça referência à gravidade abstrata do crime ou à longa pena que resta a cumprir. Tampouco poderá motivar o indeferimento do pedido com base em tais considerações.
Lembre-se, a tal propósito, que o fato de se tratar de crime hediondo ou a ele equiparado, se não pode ser invocado como único motivo para justificar uma custódia cautelar, com maior razão não pode motivar o indeferimento da progressão.
Questões atinentes às circunstâncias em que o crime foi cometido, assim como a peculiar forma de agir do agente da conduta criminosa, podem servir como fundamentos hábeis para a individualização da pena na fase cognitiva, justificando, por vezes, a imposição de pena mais severa. Contudo, uma vez constituído o título executivo, o que se deve ter em conta é cumprir os objetivos da LEP: “efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado”(13).
É essencial, portanto, que durante a execução o condenado seja avaliado por sua conduta e atitudes a partir do início do cumprimento da pena, não pelo seu comportamento anterior ao crime ou no momento da prática delitiva.
O exame criminológico no curso da execução, se e quando necessário, deve projetar-se para o futuro do condenado, não para o seu passado, razão pela qual as genéricas considerações normalmente feitas acerca da personalidade imatura, da falta de arrependimento ou das razões que levaram ao cometimento do ilícito penal não podem servir como fundamento para a denegação do pedido.
Nesse sentido tem decidido o Superior Tribunal de Justiça, afirmando a necessidade de a decisão que indefere o pleito basear-se em fatos concretos da execução, não constituindo motivação hábil a quantidade de pena que resta a cumprir, a gravidade ou a hediondez do delito(14).
Em verdade, forçoso é reconhecer que faltam critérios mais objetivos para se conceituar o que seja bom comportamento carcerário, uma vez que a lei nada dispõe acerca do tempo necessário para a reabilitação da falta grave.
De outro lado, não se tenha a ilusão de que a obrigatoriedade do exame criminológico, como se pretende no Projeto de Lei recentemente aprovado pelo Senado Federal, diminuirá a reincidência ou tornará a sociedade “mais segura”.
Isso porque, repita-se, o que se deve ter em conta no momento da progressão é o mérito do condenado, considerado a partir de suas atitudes no curso da execução. Ademais, o laudo não vincula o magistrado, servindo apenas como forma de auxiliar na formação de seu convencimento, podendo ser determinado, quando necessário, independentemente da alteração legislativa, por força do disposto no art. 196, § 2º, da Lei de Execução Penal.
Seja amparado no exame criminológico, ou apenas no atestado carcerário e nos demais dados do processo, o certo é que o magistrado deve, caso a caso, verificar a presença dos requisitos exigidos, fundamentando sua decisão de acordo com o mérito do condenado durante a execução da reprimenda. Só assim estará observando a garantia constitucional da individualização da pena.
(1) Art. 112, parágrafo único.
(2) Cf. Barros, Carmen Silva de Moraes. As modificações introduzidas nos arts. 6o e 112 da LEP pela Lei 10.792/2003 e a jurisdicionalização e a individualização da pena na execução penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais - RBCCRIM, no 48, Editora Revista dos Tribunais, maio-junho/2004, p. 181; Lopes Jr., Aury. “A (im)prestabilidade jurídica dos laudos técnicos na execução penal”, Boletim IBCCRIM, no 123, Fevereiro/2003, p. 11-13.
(3) http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=80577.
(4) Crônica acerca da extinção do exame criminológico, Boletim IBCCRIM, no 134, Janeiro/2004, p. 2-3.
(5) Execução Penal e garantismo: as alterações introduzidas na lei de execuções penais sobre o exame criminológico, Boletim IBCCRIM, no 146, Janeiro/2005, p. 6-8.
(6) Curso de Execução Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 14.
(7) O (Novo) Papel dos ‘Criminólogos’ na Execução Penal: As alterações estabelecidas pela Lei 10.792/03. In: Carvalho, Salo de (Coord). Crítica à Execução Penal. 2. ed.. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007, pp. 159/173.
(8) Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3. ed. rev. atual. e ampl. 2. tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 953.
(9) Classificação dos Condenados - Artigos 5o a 9o da LEP. In: Prado, Luiz Regis (Coord). Execução Penal. v. 3. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 33.
(10) O exame criminológico e suas peculiaridades frente ao criminoso. In: Bittar, Walter Barbosa (Coord). A criminologia no Século XXI. Rio de Janeiro: Lumen Júris/IBCCRIM, 2007, p. 163.
(11) V., dentre outros: STJ, HC 141.458/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, j. 13/10/2009, DJe 03/11/2009; STJ, HC 91.880/RS, Rel. Ministro PAULO GALLOTTI, SEXTA TURMA, j. 07/10/2008, DJe 28/10/2008; STF, HC 96853, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, PRIMEIRA TURMA, j. 27/10/2009, DJe-223 DIVULG 26/11/2009 PUBLIC 27/11/2009; STF, HC 98918, Relatora: Min. ELLEN GRACIE, SEGUNDA TURMA, j. 06/10/2009, DJe-204 DIVULG 28/10/2009 PUBLIC 29/10/2009.
(12) Art. 33, § 2o, CP.
(13) Art. 1o da LEP.
(14) Cf. HC 131.025/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, j. 01/10/2009, DJe 26/10/2009; HC 109.180/SP, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, j. 29/09/2009, DJe 19/10/2009; HC 61.792/SP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, Rel. p/ Acórdão Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, j. 10/05/2007, DJ 10/09/2007 p. 313.
Maria Thereza Rocha de Assis Moura
Ministra do Superior Tribunal de Justiça. Professora doutora de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Ministra do Superior Tribunal de Justiça. Professora doutora de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Éricka Silva Gomide Castanheira
Assessora de Ministro do Superior Tribunal de Justiça
Assessora de Ministro do Superior Tribunal de Justiça
Boletim IBCCRIM nº 206 - Janeiro / 2010
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