Entre os signatários do documento estão o ex-presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, que co-presidiu a Comissão Latino-americana de Drogas e Democracia; o diretor-executivo do Fundo Global para a Luta contra a Aids, a Tuberculose e a Malária, Michel Kazatchkine, e o vice-presidente da Comissão Permanente da Cruz Vermelha, Máximo Barra.
O documento pede aos governos que coloque foco na redução dos danos causados pelo tráfico e pelo uso de drogas através da aplicação de medidas como a distribuição de seringas para usuários, a terapia de substituição para combater a dor e o vício e a discriminalização da posse e do uso pessoal de entorpecentes.
Além disso, o Chamado à Ação pede que os governos apoiem o desenvolvimento das comunidades campesinas que buscam alternativas ao cultivo de coca e da papoula, e que cumpram sua obrigação de garantir o respeito aos direitos humanos em qualquer medida de controle de drogas que venham a por em prática.
"Em muitos países, a 'guerra contra as drogas' se converteu em uma guerra contra a população. Milhões de usuários não-violentos enfrentam abusos e encarceramento. Ao mesmo tempo, falta acesso a serviços de saúde apropriados ou a tratamentos efetivos. Pequenos vendedores e produtores recebem sentenças desproporcionais em relação aos crimes cometidos e passam suas vidas inteiras em prisões ao redor do mundo. Outros milhões mais enfrentam a destruição de suas plantações e a perseguição da polícia", expõe o documento, que surgiu do consenso entre diversas pessoas e instituições que têm participado do debate internacional sobre a política de drogas.
Descriminalização, não legalização
Enquanto essas posturas movimentam-se no âmbito da sociedade civil, Antonio María Costa, diretor-executivo da Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), reconheceu a importância de um maior investimento global no tratamento de usuários de drogas no Relatório Mundial sobre Drogas 2009, lançado essa semana pela ONU. Segundo o documento, os mercados de opiáceos, cocaína e maconha estão estáveis ou em queda, enquanto o de drogas sintéticas está aumentando.
"O vício é um problema de saúde, e não se deve prender os afetados, nem atirar contra eles. Os encarregados de fazer cumprir a lei deveriam concentrar-se nos traficantes, e não nos consumidores. As pessoas que consomem drogas precisam de ajuda médica, e não de castigo como delinquentes", reconhece Costa na introdução do Relatório do UNODC.
Todavia, o funcionário enfatizou que a legalização das drogas não é a saída para o problema, e pediu aos governos que obedeçam aos acordos internacionais assinados no marco da luta contra as drogas. Ainda que Costa tenha admitido que manter as drogas na ilegalidade gera um mercado negro de enormes proporções - que causa violência e corrupção -, alertou que a legalização é uma ameaça porque "as drogas ilícitas representam um perigo para a saúde".
"Um mercado liberado acarretaria uma epidemia de drogas, enquanto a existência de um mercado controlado acarretaria a criação de um mercado paralelo criminoso. A legalização não é uma varinha mágica que acabaria tanto com o crime organizado quanto com o abuso de drogas... A sociedade não deve ter de escolher entre priorizar a saúde pública ou a segurança pública: ela pode e deve optar por ambas", afirma Costa.
Outras vozes
Mas não foi apenas Costa que respaldou a ideia de dar apoio aos dependentes. O diretor do Gabinete de Política Nacional de Fiscalização das Drogas dos Estados Unidos (ONDCP), Gil K. Kerlikowske, também fez o mesmo. Ele declarou à imprensa que "todos temos a responsabilidade de enfrentar o abuso de drogas em nossa sociedade. Estamos aprendendo muito sobre a toxicomania, e sabemos que o tratamento funciona. Por meio de uma ação integral de aplicação da lei, de educação, de prevenção e de tratamento, teremos êxito em reduzir o uso de drogas ilegais e suas consequências devastadoras", afirma Kerlikowske, segundo comunicado publicado pelo UNODC em sua página na internet.
Isso significa um avanço nas discussões entre sociedade civil e governos? Para Rubem César Fernandes, diretor-executivo da ONG brasileira Viva Rio e um dos signatários do Chamado à Ação, esta exortação aos governos "reflete uma consciência crescente de que precisamos mudar o paradigma na política de drogas. Não basta falar de doença e propor tratamento, como faz o último relatório da UNODC. Isto é bom, mas é pouco. O problema cresceu demais, pede mudanças profundas na política mundial".
Para o advogado peruano Ricardo Soberón, diretor do Centro de Investigação de Drogas e Direitos Humanos de Lima, a mudança na política mundial de drogas não é só questão de discurso, mas de prática. "Depois de três anos testemunhando os diálogos e processos que ocorrem no Centro Internacional de Viena, onde a Comissão de Estupefacientesse reúne duas vezes por ano, estou convencido que os problemas não são somente de caráter discursivo. O problema está na diferença abismal que existe entre os discursos oficiais e as práticas concretas: enquanto os políticos em campanha afirmam que o usuário de drogas não é um criminoso, a Justiça e a polícia continuam enchendo as prisões com gente sem condenação, com usuários e com os componentes mais fracos da sociedade", afirma.
Outra das signatárias do Chamado à Ação é Kasia Malinowska, do Open Society Institute, um dos principais promotores do debate sobre políticas de drogas no mundo. Para Malinowska, esse documento cumpre o objetivo fundamental de "mostrar aos governos, através da mídia, que uma grande parte da sociedade ao redor do mundo apoia decididamente o que estamos propondo - por exemplo, descriminalização da posse de drogas para uso pessoal -, e que elas acreditam que o endurecimento da polícia não é a ferramenta adequada para lidar com a demanda por drogas".
Alguns governos já começaram a aceitar o debate e a ação nesse sentido. Malinowska destaca o exemplo de Portugal que descriminalizou a posse de drogas para uso pessoal em 2001 e, "desde então, tem havido uma queda significativa nos casos de HIV", segundo a especialista.
Tem havido outras ações que se afastam do conceito de "guerra às drogas", como o ocorrido durante a última reunião da Comissão de Narcóticos da ONU, em março passado. Ali, um grupo de 26 países - liderados pela Alemanha - rompeu o consenso de Viena pela primeira vez, assinando um documento adjunto à Declaração Política do encontro no qual concordavam em implementar o conceito de redução de danos em seus países, mesmo não tendo a Declaração Política incluído isso abertamente.
O governo Obama também tem mudado o rumo de sua política de drogas, como demonstram as declarações de seu mais alto funcionário na matéria, Gil K. Kerlikowske. Além disso, esse governo indicou, no início desse ano, que levantaria a proibição federal de subsidiar o programa de troca de seringas entre usuários, em um esforço por reduzir o contágio pelo HIV.
No Equador, centenas de vendedores de pequenas quantidades de droga, conhecidos como "mulas", foram indultados recentemente, em nome de uma política que tenha foco nos grandes traficantes. Na Argentina, 80 juízes assinaram uma petição pública para que seja modificada a política de drogas no país.
Outras personalidades têm mostrado um interesse inesperado em ao menos discutir uma mudança na política de drogas. Entre elas estão o governador do estado da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, o ex-presidente mexicano Vicente Fox e o vice-presidente da Colômbia, Francisco Santos. Todos têm dado declarações públicas sobre a importância de debater abertamente o tema.
No entanto, o curso que seguirá a política mundial de drogas depende também, em parte, dos resultados das medidas atuais, que estão sendo apresentadas ao mundo através do relatório da ONU. De acordo com o especialista em economia e desenvolvimento da Universidade dos Andes, na Colômbia, Daniel Mejía Londoño, a diminuição do cultivo da folha de coca na Colômbia apresentada pelo relatório da UNODC deve ser visto em contexto com outras medições.
"O resultado pode ser classificado como positivo para a Colômbia. Entretanto, falta verificar se os padrões de demanda e preços acompanham os estimados pela UNODC e com as estimativas do ONDCP (o escritório da Casa Branca para o controle de drogas). A meu ver, a avaliação desses resultados não deve estar baseada unicamente em se os cultivos baixaram temporariamente ou se a produção caiu. A verdadeira avaliação deve questionar os custos para a Colômbia de fazer avanços significativos na guerra contra a produção e tráfico de cocaína", explica.
Mejía, autor de uma recente pesquisa sobre os efeitos econômicos do Plano Colômbia, acrescenta que "o que temos observado historicamente é que a queda do cultivo e da produção de cocaína em um país ou região aumenta o cultivo e a produção em outras regiões ou países. Isso é conhecido como o 'efeito globo'. No fim das contas, o problema se traslada de região a região, e a produção se mantém estável. Esse é um fato que pode ser observado nos dados há mais de 20 anos", conclui.
Foto da capa: PhotoXpress.com
Comunidade Segura.
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