A espetacularização do Direito Penal prejudica a todos. Não há cidadania plena e desembaraçada em um contexto de flagrantes e diuturnas violações às garantias individuais, a sensação de insegurança que a todos toca não pode ser pretexto para concessões desta natureza.
Os nossos justificáveis temores decorrentes deste estado de apreensão devem encontrar melhor veículo de difusão, afinal, o Direito Penal como medida de ultima ratio deve ter sua dignidade preservada, e com mais razão ainda, a dignidade das pessoas deve ser de toda forma assegurada. É imperativo que a utilização meramente simbólica do Direito Penal seja banida, pois constitui notável desserviço à democracia e uma afronta à lógica republicana, que tem na racionalidade dos atos de governo uma das suas principais características.
Uma sociedade madura pode e deve percorrer variados caminhos na tentativa de superação dos seus impasses e perplexidades, todavia, a supressão ou rebaixamento da segurança jurídica certamente não é o melhor caminho a trilhar. O Estado de Direito impõe categórico respeito às garantias legais, especialmente àquelas de primeira grandeza plasmadas na Constituição. Seria enganoso supor que o desenvolvimento de um estado-policial pudesse beneficiar à coletividade e atender ao interesse público. Os eventos criminosos, induvidosamente, necessitam e reclamam firme combate, mas tal enfrentamento deve observar rigoroso respeito às regras do jogo.
A generalização dos instrumentos de controle e vigilância de forma indiscriminada, ameaça a ambiência democrática, e opera concreta e predominantemente em prejuízo dos setores mais vulneráveis, ainda que tenhamos, por vezes, impressão distinta. O papel que a cidadania efetivamente pode jogar nessa quadra é o de reforçar o debate na esfera pública em busca de soluções efetivas e aceitáveis, bem como o de renovar o permanente compromisso de reduzir os frequentes espasmos de irracionalidade do nosso sistema, uma vez que a seletividade é estrutural e incontornável.
A mídia, no particular, pode ser o verdadeiro fiel da balança, se fomentar o debate franco e profundo emancipa e educa; se ao revés, apenas simplesmente difunde o terror, debilita e escraviza a real cidadania, que numa democracia substantiva deve ser por excelência informada e crítica.
Participar e deliberar são predicados de uma sociedade que se pretende legitimada nos seus procedimentos e práticas, o espetáculo apenas ilude, além de reforçar a máxima de Lampedusa, que assevera a necessidade de mudar para que tudo permaneça como antes.
Para que a mudança se opere de fato, talvez os diversos operadores do sistema (advogados, promotores, delegados, defensores e juízes) devessem empreender todo esforço necessário a fim de que a racionalidade substituísse o espetáculo. Cada um desses agentes precisa atentar concretamente na orientação das suas atuações para firmar o sentido de re-republicanização de suas atividades, dotando-as de uma vocação substancialmente democrática e pluralista.
A incorporação de um ethos de nível mais elevado depende forçosamente da assimilação de tais evidências, na medida em que a permanência no estágio atual somente reproduz e retroalimenta uma estagnação servil a valores corporativos de significado vago e remoto.
Romper com essa lógica permitiria supor uma liberação de nova energia no sistema que a todos convém. Tomemos por exemplo elucidativo deste fenômeno a ausência de controle efetivo de legalidade das prisões em flagrante, que concorrem para a cronicidade do problema carcerário. Existem unidades da federação em que a (des)proporção alcança níveis elevadíssimos (70% de presos provisórios e 30% de presos definitivos). Logo, não é necessário maior esforço de análise para perceber que todos saem perdendo com tamanho absurdo.
O Ministério Público, por sua vez, como fiel garantidor do Estado Republicano e Democrático de Direito, com todos os seus consectários retroaludidos não pode corroborar com tais práticas, antes, pelo contrário, deve denunciá-las com total veemência, e por isso não pode ser calado. A sua liberdade de “fala” deve ser compreendida no debate público como um reforço a um discurso de interesse coletivo. Todos aqueles que se desviam deste propósito devem ser responsabilizados, mas a instituição cônscia do seu papel jamais deve silenciar.
Tais observações são meras notas ou fragmentos que tem por escopo provocar a reflexão acerca de um atuar racional na esfera da justiça criminal. Pondere-se, por acréscimo, que a verdadeira capacitação técnica sem descuido da formação de abrangência humanística, é o que pode reorientar e inibir a tendência para tais equívocos.
Assim, ao invés de pensarmos apenas em punir, deveríamos tentar conciliar e reconciliar, e nas situações de maior gravidade, poderíamos, à luz de uma orientação político-criminal bem dimensionada, reconstruir uma dogmática criminal vigorosa que, nutrida por paradigmas filosóficos contemporâneos e instigantes, como a filosofia analítica (de tradição anglo-saxã), ao lado de outras sólidas formulações continentais, como a teoria da comunicação habermasiana, inaugurassem um pensamento de reforma e não apenas de revisão, na busca de uma “gramática profunda do injusto”, que aproximasse a dogmática da realidade e promovesse níveis complexos de conectividade entre a “subjetividade observadora” e a objetividade fecunda dos fatos.
Wellington César Lima e Silva
Promotor de Justiça (BA). Professor de Direito Penal da UNIFACS. Mestre em Ciências Penais e Criminologia (UCAM-RJ) e doutorando em Direito Penal (UPO – Sevilha, Espanha). Coordenador regional do IBCCRIM.
LIMA E SILVA, Wellington César. A racionalidade e a espetacularização do direito penal: uma questão de re-republicanização. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 200, p. 20-21, julho 2009.
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