Quando Carnelutti escreveu, em 1953, um saggio que acabou se tornando muito conhecido – Mettere il pubblico ministero al suo posto(1), tinha presente(2) estar colocando sob as luzes uma das mais problemáticas chagas do direito processual penal italiano; e nem poderia supor que nem seu texto e nem ninguém conseguiria – até hoje – um antibiótico eficaz para a cura(3).
Em 1947 Carnelutti publicou seu Dialoghi con Francesco(4) – um marco na sua vida, por vários motivos e dentre eles a importância da relação Direito-Filosofia –, mas não era, ainda, aquele autor dos meados dos anos 60 (quando descobriu Heidegger(5) e abriu espaço para a correta solução de muitos problemas antes insolúveis), então mais preparado para ter respostas e não simplesmente as intuir, como sempre o fizera. De qualquer forma, esses meandros de seu pensamento podem ser percebidos nas conclusões do texto de 1953 (Mettere...): “Da ciò, naturalmente, sorge l’esigenza dell’uguaglianza tra pubblico ministero e difensore, sulla quale è fondato l’equilibrio del processo penale. (...) Le forze della logica operano bensi sulla storia; ma incontrano, per via della miseria umana, resistenze, che ne ralentano l’azione.(...) Se, nella riforma del processo penale, la cui urgenza è ormai profondamente e diffusamente sentita, no ci si renderà conto di ciò, mancherà uno degli orientamenti più sicuri. Fino a che lo spettatore di un processo penale non si scandalizza perché il pubblico ministero sta in alto, a fianco del giudice, e il difensore in basso, accanto all’imputato, non si sara creato l’ambiente propizio a una vera civiltà penale”(6).
A par da questão arquitetônica das salas de audiências – ainda não resolvida no Brasil, o que beira o absurdo, em face da incompabilidade com a CR – é salutar identificar o problema italiano e ver que se tem, por aqui, uma posição muito mais adequada (do MP) como, também, é necessário tomar muita cautela na importação de “institutos” aparentemente iguais, quando, em verdade, são diferentes em pontos substanciais. Em relação ao MP tem-se um dos exemplos mais claros. Basta ver as enormes bobagens que fizeram nas chamadas “operazioni mani pulite” na Itália, até hoje não muito bem entendidas por aqui em razão, dentre outras, de ora se falar em órgãos do MP, ora em órgãos da magistratura, algo pior quando se refere aos “giudici del pubblico ministero”.
O MP do Brasil, como se sabe, não só é separado completamente da magistratura como, na CR/88, assumiu um status de quase completa desvinculação do Poder Executivo. A par dos exageros de quem fala em um quarto poder, a “instituição” ganhou um lugar privilegiado de defesa da Constituição e da cidadania, mormente enquanto a sociedade civil não se organiza por si só.
Afora gente complicada (por sorte, poucos), na qual os sintomas (como exibicionismo e outros problemas psíquicos) afloram, com rapidez, pela linguagem (e que se saberá tratar, mormente se funcionar como deve o CNMP), a “instituição” alcançou um patamar tal a recomendar uma atuação, no processo penal, conforme determina a CR.
Vigente o devido processo legal (art. 5º, LIV, CR), não há espaço senão para um processo de partes, dentro de um sistema acusatório. Aqui, os dois principais caminhos impostos pela CR/88 e que qualquer reforma processual penal, para ter dignidade e legitimidade constitucional, deverá levar em consideração. Foi o que se tentou fazer no Anteprojeto de reforma global de CPP realizado por Comissão Externa de Juristas criada no âmbito do Senado Federal e ora em curso no Projeto nº 156/2009-PLS.
No segundo caso (mudança para o sistema acusatório), como o mais importante dos precitados caminhos – e de todos os demais –, a questão diz com o princípio ontológico (fundante) do processo penal, ou seja, o princípio dispositivo. Centrado na gestão da prova, o processo penal será acusatório se ela não couber (sua busca), nunca, ao juiz. Neste aspecto, decidiu a referida Comissão, por maioria, por uma fórmula tanto mitigada quanto perigosa(7), certamente apostando na democracia processual: “O processo penal terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.” (art. 4º).
Pelo oposto, diante do texto do Projeto, pode-se ver bem – e tentar entender – o que queria dizer Carnelutti com o MP estar acima da defesa e ao lado do juiz; e não só por estar metido indevidamente (pertencer), na Itália, à magistratura, mas porque, em um sistema inquisitório, as funções se confudem ou, de forma mais precisa, na estrutura sistêmica pura, pode-se sequer comportar o MP(8) e, enfim, partes, embora isso até seja importante na diferenciação dos sistemas. Só um muito insipiente para não entender isso: “o estilo inquisitório vira do avesso as perspectivas: o processo se torna uma atividade terapêutica; a pena é um remédio; queira ou não, é necessário que o imputado coopere; sendo ofendido os supremos interesses pelo pecado-delito, esvai-se todo limite de garantia porque os indivíduos desaparecem diante de nomes como Igreja, Estado, Partido e similares. Este axioma explica a máquina inteira. O aspecto mais visível está no fato de que trabalhe sem uma demada, mas, no fundo, é dado secundário: à lógica inquisitória não repugnam as ações obrigatoriamente exercidas por órgãos destinados à repressão; antes, o trabalho dividido ajuda no automatismo persecutório e quanto rende vemos em França onde o ministère public aparece desde o fim do XIII século. É falso que método inquisitório equivale a processo sem ator: nas ordonnance criminelle, de 1670, monumento do engenho inquisitorial, o monopólio da ação cabia aos hommes du roi (‘les procès seront poursuivis à la diligence et sous le nom du roi’.)”(9).
No primeiro caso (ter-se verdadeiramente um processo de partes), agiganta-se a função do MP. Afinal, não faz sentido ser ele uma parte (ainda que formal, como queria Chiovenda), e viver dentro de uma camisa-de-força criada pela desconfiança. Dela não se vai livrar, porém, se se tiver medo. Medo de todos pelo que podem fazer com uma maior mobilidade nas atividades hoje engessadas por princípios obtusos e ingênuos porque manipuláveis, basta que se queira; mas, principalmente, medo dos próprios órgãos do MP de enfrentar, de fato, os desafios que lhe aquinhoaram a CR. Para tanto, é preciso ter presente, por todos, o princípio da obrigatoriedade (e que aponta direto para a ação penal, como se sabe da melhor doutrina), assim como o princípio da disponibilidade, dirigido para o conteúdo do processo. Que ação e processo são elementos distintos é despiciendo dizer.
O Projeto nº 156/2009, no caso, veio com disposições que, no caso, fizeram aflorar a posição da maioria (ligada ao MP, por incrível que pareça), um tanto quanto com o freio de mão puxado: mitigou-se um pouco a obrigatoriedade e a disponibilidade, para ainda pairar sobre todos a desconfiança. Enfim, deu-se um passo à frente, mas o MP – e todos os cidadãos – mereciam mais.
Afinal, quando o juiz não sai à busca da prova – e nem deve sair! –, ao MP caberá a prova da acusação, o que é o óbvio diante da CR. Só não há de esquecer que o princípio da presunção de inocência, como hoje já se tem pela posição do e. STF, em tendo uma previsão iluminada pela CR, não só vai exigir maior atenção como, por outro lado, deverá encontrar um juiz que não está ao lado do MP: mais uma vez Carnelutti poderia ser lembrado.
No fundo, para se colocar o juiz no seu devido – e constitucional – lugar foi necessário mettere il pubblico ministero al suo posto; ou quase.
NOTAS
* O presente ensaio foi preparado especialmente para o Boletim do IBCCrim.
(1) CARNELUTTI, Francesco. Mettere il pubblico ministero al suo posto. In: Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam, 1953, Volume VIII, Parte I, 257-264.
(2) CARNETUTTI, F. Mettere... cit., p. 257. “Se c’è una figura ambigua nel processo, civile e penale, è il pubblico ministero. Quando cominciai a occuparmene, nei primi tentativi di sistemazione del diritto processuale, la sua ambiguità mi ha colpito a tal segno da farmi venire in mente la quadratura del circolo: non è come quadrare un circolo costruire uma parte imparziale?” (“Se existe uma figura ambígua no processo, civil e penal, é o ministério público. Quando comecei dele me acupar, nas primeiras tentativas de sistematização do direito processual, a sua ambiguidade me tocou a tal ponto de me fazer vir à cabeça a quadratura do círcolo: não é quadrar um círculo construir uma parte impacial?” – tradução livre –).
(3) CARNELUTTI, F. Metterre... cit., p. 261. O autor, aqui, reclama existir muita confusão na “ciência do processo penal” para que o MP encontre o seu lugar. E isso porque alguns o colocam entre as partes, dando-lhe poderes que são próprios das partes naturais; e outros o colocam entre os magistrados, dando-lhe deveres que não convém à sua função, tudo sem levar em consideração a ratio distinguendi, para daí concluir: “Perciò, mettere il pubblico ministero al suo posto, è veramente una tra le necessità urgenti della riforma processuale.” (“Por isto, colocar o ministério público no seu lugar é verdadeiramente uma das necessidades urgentes da reforma processual.” – tradução livre –).
(4) CARNELUTTI, F.. Dialoghi con Francesco. Roma: Tumminelli, 1947, 448p.
(5) CARNELUTTI, F. Verità, dubbio e certezza. In: Rivista di Diritto Processuale, Padova : Cedam, 1965, vol. XX (II Série), pp. 4-9.
(6) CARNELUTTI, F.. Mettere... cit., p. 264: “Disso, naturalmente, surge a exigência de igualdade entre ministério público e defensor, sobre a qual se funda o equilíbrio do processo penal. (...) As forças da lógica operam, certamente, sobre a história; mas encontram, em razão da miséria humana, resistências, que lhe diminuem a ação. (...) Se, na reforma do processo penal, cuja urgência é, enfim, profunda e difusamente sentida, não nos dermos conta disso, faltará uma das direções mais seguras. Até que o espectador de um processo penal não se escandalize porque o ministério público está no alto, ao lado do juiz, e o defensor embaixo, ao lado do imputado, não se criará o ambiente propicio a uma verdadeira civilidade penal.” – tradução livre –.
(7) COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Novo Código de Processo Penal pede nova mentalidade. Consultor Jurídico. 6 abr.2009. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-abr-06/revisao-codigo-processo-penal-demanda-sistema-acusatorio Acesso em: 14 jun.2009.
(8) CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: Utet, 1986, p. 46-47: “Quando Alberto Gandino lavora al ‘Tractatus de maleficiis’ (‘cum assiderem Perusii’, nel cui archivio figura dagli ultimi mesi del 1286 al 27 marzo 1287), l’actus trium personarum appartiene al passato.”
(9) CORDERO, F. Guida... cit., p. 47: “Lo stile inquisitorio rovescia le prospettive: il processo diventa affare terapeutico; la pena è una medicina; voglia o no, bisogna che l’imputato cooperi; essendo offesi dei supremi interessi dal peccato-delitto, salta ogni limite garantistico, perché gli individui spariscono davanti a numina quali Chiesa, Stato, Partito e simili. Quest’assioma spiega l’intera macchina. L’aspetto più visibile sta nel fatto che lavori senza una domanda, ma, in fondo, è dato secondario: alla logica inquisitoria non ripugnano le azioni obbligatoriamente esercitate da organi intesi alla repressione; anzi, il lavoro diviso giova all’automatismo persecutorio e quanto renda, lo vediamo in Francia, dove le ministère public appare fin dal tardo XIII secolo. É falso che metodo inquisitório equivalga a processo senza attore: nell’ordonnance criminelle 1670, monumento dell’ingegno inquisitoriale, il monopólio dell’azione spetta agli hommes du roi (‘le procès seront poursuivis à la diligence et sous nom de nos procureurs’)”. – tradução livre –.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
Professor Titular de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialista em Filosofia do Direito (PUCPR); Mestre (UFPR); Doutor (Università degli Studi di Roma “La Sapienza). Coordenador do Núcleo de Direito e Psicanálise do PPGD-UFPR. Advogado. Procurador do Estado do Paraná. Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Paraná. Membro da Comissão Externa de Juristas do Senado Federal que elaborou o anteprojeto de CPP, hoje Projeto nº 156/2009-PLS.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Mettere Il pubblico ministero al suo posto – ed anche El giudice. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 200, p. 23-24, julho 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário