“Afastado desde 2005, quando determinou a soltura de 50 presos que cumpriam pena ilegalmente em delegacias superlotadas na comarca de Contagem (MG), o juiz Livingsthon José Machado resolveu abandonar a magistratura.”
(Jornal Folha de S.Paulo,
edição de 27.05.2009)
É de primeiras linhas que societas mater rixarum. O Velho Testamento não exclui dessa regra nem a sociedade familiar, como se vê da relação conflituosa entre Abel e Caim (cf. Gênesis, 4,8) ou Isaú e Jacó (cf. Gênesis 25, 31-33). Não foi por outro motivo que Moisés (1250-1180 a.C.) invocou a autoridade divina para impor a seus comandados regras nas quais se buscava a paz social (cf. Êxodo 34, 28), repetindo, aliás, o que fizera Hammurabi (1792-1750 a.C.) alguns séculos antes.
Invocam-se aqui esses precedentes religiosos, como um arqueólogo que, com delicada vassourinha na mão, tenta desenterrar vestígios de um tempo longínquo, para falar de algo tão paleolítico quanto o que se costuma estudar sob o rótulo de Criminologia ou, mais pragmaticamente, Direito Penal.
É também de primeiras linhas que as tais sociedades humanas, onde o quod plerumque accidit, como dito acima, é a existência de desavenças, estabelecem regras de conduta, a cuja desobediência corresponde, em lugar do desacreditado fogo do inferno, algum sucedâneo que lhe faça as vezes. Lá e cá a finalidade é a mesma: contribuir para que a convivência das pessoas seja tão pacífica quanto possível no grupamento a que, pelos mais diversos motivos, voluntários ou não, elas pertençam.
Como regra geral, parte-se do princípio segundo o qual o bem supremo do ser humano, depois da vida, é a liberdade. Ameaçar o candidato a infrator (ou seja, qualquer um de nós) com o encerramento precoce de sua vida ou com a privação da liberdade parece algo suficiente para dissuadir-nos dessa pulsão, quando ela se revele. Até chegamos a pedir ao Deus Pai que “não nos deixe cair em tentação”, tão forte é nossa vocação para o pecado. E essa identidade entre as categorias religiosas e as criminológicas pode ser confirmada não apenas pela vestimenta sacerdotal dos julgadores como pela escolha de uma deusa para simbolizar essa atividade estatal. Isso para não falarmos do nome escolhido para designar o local onde o pecador permanecerá quando for “excomungado” (isto é, afastado dos seus companheiros de comunidade): penitenciária. Se a penitência é a pena imposta pelo confessor ao penitente para remissão do seu pecado, como diz Caldas Aulete, é útil recordar que ela supõe o arrependimento, segundo o mesmo dicionarista. Aliás, muitos teólogos consideram sinônimas as palavras arrependimento (do pecado cometido) e penitência, sendo o cumprimento da pena imposta pelo confessor somente a expressão externa desse arrependimento.
Curiosamente, ao mesmo tempo em que se observa a laicizacão crescente da sociedade (para dizer o menos), em 1984 introduziu-se, no Código Penal brasileiro, como fator minorante da pena, mais um elemento religioso: a confissão. Valha registrar que a doutrina tem entendido que isso nada tem a ver com arrependimento, que continua restrito aos arcana Dei. Menos mal.
Digno de registrar que a relação crime/pena só impropriamente pode ser equiparada à relação pecado/penitência. É que o confessor não pode agir ex officio. Para impor a pena penitencial ele necessita da iniciativa do pecador, ao passo que no mundo civil, o criminoso procurar a autoridade para confessar a prática do crime não só é coisa rara como deve ser recebida com reservas, como se colhe do artigo 341 do Código Penal e do artigo 197 do Código de Processo. De outra parte, ao reverso do que supõem os leigos, não há qualquer proporcionalidade entre a gravidade do pecado e o tipo de penitência a ser imposta ao pecador, coisa diversa do que se dá na relação crime/pena.
Se o arrependimento do criminoso, quando não seja legalmente eficaz, é irrelevante no campo da repressão penal e se é de presumir que o legislador, ao estabelecer os parâmetros da pena, levou em conta a gravidade da infração, qual o fundamento ético do chamado “regime progressivo” no cumprimento da pena? Que se esconde sob o rótulo de “bom comportamento”? O leitor certamente falará em “humanização da pena”, “ressocialização do condenado” e até, se tiver pendores poéticos, numa tal “ponte de ouro”, por intermédio da qual o excomungado retorna ao convívio dos seus pares, onde recomeçará nova vida, dedicada ao trabalho honesto e ao respeito ao próximo, mercê do apoio ali recebido, proveniente, principalmente, dos “homens de bem”, como nos julgamos nós outros, situados no alto escalão social. Alguém mais pragmático (ou mais cínico) talvez diga que o abatimento no prazo de encarceramento, tanto quanto o modo mecânico como são aplicadas penas ditas alternativas, tem o claro escopo de impedir que as prisões se transformem (quando já não o são) em depósito de gente. Supõe-se que, se os juízes criminais, nas poucas horas de lazer de que dispõem, deixassem de lado os teóricos do Direito e lessem o livro de Dráuzio Varela, que levou à demolição do presídio famoso, ou o noticiário jornalístico diário, que nos dá conta de pecados e mais pecados injustificáveis, impuníveis e inarrependíveis atribuídos a autoridades pertencentes aos três Poderes da República, pensariam duas vezes antes de mandar para o purgatório aqueles pobres diabos que lá estão. Vã esperança! A isonomia ainda é mero princípio constitucional “carente de regulamentação”.
Quem é o juiz criminal? Ou, melhor: como deve ser o juiz criminal? É (rectius: deveria ser), antes e acima de tudo, um cidadão inserido em um dado momento histórico. Parafraseando Robert G. McCloskey, para muita gente, quando um juiz enverga a toga, ele deixa de ter ideias próprias e preconceitos, pautando-se exclusivamente pelo que se contém na lei. Ou, dito de outro modo: a lei seria um disco fonográfico e os juízes meros fonógrafos que reproduziriam fielmente o que havia sido gravado. Essa comparação está em seu The American Supreme Court, ao abordar a inafastável ideologia dos juízes.
Poderíamos citar nosso Ranulfo de Mello Freire: a lição dos doutrinadores serve para levar o juiz aonde ele já chegou por suas próprias pernas. A pergunta que se impõe então é esta: mas de que juiz estamos falando?
Quando Alberto Silva Franco, nos anos 80, proferiu os votos pioneiros no sentido da atipicidade das condutas aparentemente danosas, mas sem relevante potencialidade para justificar a imposição de pena, ditos “crimes de bagatela”, não faltou quem censurasse, por ignorância ou má-fé, isso que os entendidos chamam de “ativismo judicial”. Que é isso? “Judicial activism is what the other guy does that you dont like” é a literal observação de Joel Grossman, citado por Lawrence Baum em seu conceituado The Supreme Court. É claro que tal boutade ironiza os críticos do ativismo e não o próprio ativismo.
Já dissemos alhures, ao aludirmos ao papel político da Suprema Corte norte-americana, que “no que tange aos direitos fundamentais, a Suprema Corte nem sempre apresentou um entendimento uniforme, não sendo incomum que se reconhecesse aos Estados o direito de restringir o exercício deles, no interesse da sociedade, ainda que a Corte sempre se mostrasse dividida quanto à possibilidade disso. Surgiram assim duas correntes de entendimento, que os autores denominam interpretivism e noninterpretivism. Segundo a primeira corrente, os direitos fundamentais a que incumbe à Corte zelar são apenas e tão somente aqueles que se encontram previstos expressamente na Constituição Federal (aí incluído o Bill of Rights). Uma subdivisão dessa corrente admite, quando muito, que se lance mão da história da Carta para eventualmente trazer ao caso concreto o pensamento dos seus redatores. A outra corrente, mais liberal, aceita que “constitutional principles and norms can be found outside of the constitutional document”.
Como é isso no Brasil?
Mandar para a prisão quem não tem condição de pagar quem lhe dê uma assistência jurídica digna de ser chamada de ampla, como exige o catálogo constitucional que diz com o due process of law, em escandaloso contraponto à situação de quem tem capacidade econômica para apresentar dezenas e dezenas de recursos, com a óbvia finalidade de impedir o trânsito em julgado da decisão condenatória, valendo-se da discutível amplitude dada ao princípio da presunção de inocência, só não sensibiliza os insensíveis, dada a óbvia quebra do também constitucional princípio da isonomia. Uma lata de ervilha aqui, uma barra de chocolate ali, um pacote de margarina acolá já não justificaram que alguns juízes, em nome certamente de alguma cinematográfica “tolerância zero” (Law & Order não é um seriado exibido pela nossa televisão?), mantivessem na prisão “negros ou quase-negros de tão pobres”, para citarmos Caetano Veloso?
Não há de ser por outro motivo que nossa Suprema Corte vem afirmando que “verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, é de ser extinto o processo da ação penal, por atipicidade do comportamento e conseqüente inexistência de justa causa”, como disse o ministro Cezar Peluso, relator do Habeas Corpus n° 88393.
A ministra Ellen Gracie traçou os contornos da bagatela criminal: “O princípio da insignificância está intimamente relacionado ao bem jurídico penalmente tutelado no contexto da concepção material do delito. Se não houver proporção entre o fato delituoso e a mínima lesão ao bem jurídico, a conduta deve ser considerada atípica, por se tratar de dano mínimo, pequeníssimo. O critério, em relação aos crimes contra o patrimônio, não pode ser apenas o valor subtraído (ou pretendido à subtração) como parâmetro para aplicação do princípio da insignificância. Consoante o critério da tipicidade material (e não apenas formal), excluem-se os fatos e comportamentos reconhecidos como de bagatela, nos quais tem perfeita aplicação o princípio da insignificância. O critério da tipicidade material deverá levar em consideração a importância do bem jurídico possivelmente atingido no caso concreto.” (Habeas Corpus n° 92531)
Nem o rigoroso ministro Joaquim Barbosa rejeita tal princípio, adotando-o até mesmo quando não foi invocado: “Não se admite Recurso Extraordinário em que a questão constitucional cuja ofensa se alega não tenha sido debatida no acórdão recorrido e nem tenha sido objeto de Embargos de Declaração no momento oportuno. Princípio da insignificância reconhecido pelo Tribunal de origem, em razão da pouca expressão econômica do valor dos tributos iludidos, mas não aplicado ao caso em exame porque o réu, ora apelante, possuía registro de antecedentes criminais. Para a incidência do princípio da insignificância só devem ser considerados aspectos objetivos da infração praticada. Reconhecer a existência de bagatela no fato praticado significa dizer que o fato não tem relevância para o Direito Penal. Circunstâncias de ordem subjetiva, como a existência de registro de antecedentes criminais, não podem obstar ao julgador a aplicação do instituto.” Caso, pois, era de “concessão de habeas corpus, de ofício, para reconhecer a atipicidade do fato narrado na denúncia, cassar o decreto condenatório expedido pelo Tribunal Regional Federal e determinar o trancamento da ação penal existente contra o recorrente.” (Recurso Extraordinário n° 514531)
Não clama aos céus que alguém acusado da prática de fato atípico tenha de chegar à Suprema Corte para recuperar a liberdade ou sua condição de primário? Responde o ministro Cezar Peluso, no julgado já referido: “Ação penal. Suspensão condicional do processo. Inadmissibilidade. Ação penal destituída de justa causa. Conduta atípica. Aplicação do princípio da insignificância. Trancamento da ação em habeas corpus. Não se cogita de suspensão condicional do processo, quando, à vista da atipicidade da conduta, a denúncia já devia ter sido rejeitada.”
Se a denúncia deveria ter sido rejeitada, é de concluir que o juiz descumpriu seu dever. E que acontece a um juiz que descumpre seus deveres?
Recentemente, ao conceder o habeas corpus que pôs fim a um abuso inominável, depois de dizer que “parece insofismável que a Promotora de Justiça, com o beneplácito da Juíza de origem, transbordou, e em muito, suas atribuições”, registrou o ilustre relator: “Vilipendiou-se, sem qualquer necessidade legal, atos e manifestações profissionais de advogados, como o são, ressalte-se, os levantamentos judiciais embasados em mandato externando a cláusula ad judicia, surrupiando a eles, convenha-se, a inviolabilidade preconizada na Lei Maior do País (cf. artigo 133 da CF)”.
Atribuindo a autoridades públicas ações abrangidas pelos verbos vilipendiar e surrupiar, quais as providências que tomou a E. Turma julgadora com vistas a eventual punição dos responsáveis por isso? Nenhuma, pois “quanto à sugestão de remessa de cópias aos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público, é de se ter presente que os pequenos erros, os diminutos equívocos ou deslizes profissionais mínimos, como se queira chamá-los, sempre estão à volta do ser humano, em especial daquele que tem a atribuição de investigar ou de decidir.” (TJSP HC 1.011.561-3/8-000).
Um juiz vilipendiar e surrupiar é coisa de somenos importância, nonada, bagatela.
Adauto Suannes
Desembargador aposentado do TJSP.
SUANNES, Adauto. Bagatelas. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 200, p. 14-15, julho 2009.
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