terça-feira, 28 de julho de 2009

ENTREVISTA/Tatiana Gonçalves Moura

De olho na violência doméstica


Feminilidade, masculinidade, segurança e insegurança em contextos de violência armada ou doméstica. Essas questões passarão a ter maior visibilidade graças ao lançamento do site do Observatório de Gênero e Violência Armada (OGiVA), uma iniciativa do Centro de Estudos Sociais (CES), de Portugal, que vem estudando o tema há alguns anos.

Tatiana Gonçalves Moura, do OGiVA, conversou de Lisboa com o Comunidade Segura e apontou casos específicos que foram objeto de análise do OGiVA, que acompanha o tema na Europa, América Latina e nos países africanos de língua portuguesa.

Entre as conclusões de seu trabalho, Tatiana destaca que a violência contra as mulheres e o uso de armas de fogo são dois tipos de violência que estão presentes tanto durante a guerra como em tempos de paz. Por isso, deu ênfase ao estudo dos modelos de masculinidade que não se baseam no exercício da violência. "São a maioria e os menos estudados", ponderou.

Como surgiu a ideia do Observatório de Gênero e Violência Armada e quais são seus objetivos?

O OGiVA nasceu em outubro de 2008 como resultado de anos de pesquisa sobre questões relacionadas com gênero e violência armada. Desde 2000, o CES vem realizando pesquisas importantes neste campo, em especial o Núcleo de Estudos para a Paz. Os projetos realizados ao longo deste período - e que envolveram pesquisas no Rio de Janeiro, São Salvador, Medelim, Cidade da Praia (Cabo Verde), Bissau, (Guiné Bissau) e Lisboa - criaram a necessidade de formalizar uma linha de pesquisa e um espaço de reflexão para sistematizar a informação e colocá-la disponível ao público em geral, pensando numa plataforma de interação de pesquisas e de atuação.

Poderia falar um pouco do trabalho da organização?

O OGiVA busca desenvolver estudos, análises e recomendações práticas para políticas e programas sobre feminilidade, masculinidade e (in)segurança em contextos de violência armada. Pretende, por um lado, consolidar este campo de análise em nível nacional e, por outro, construir uma plataforma de articulação de pesquisas e projetos de intervenção sobre este tema na Europa, em países africanos de língua portuguesa e em países da América Latina.

Quais foram as principais ações do Observatório nos últimos meses?

Participamos de algumas ações com instituições parceiras como, por exemplo, o seminário internacional do Promundo, e sessões de debate sobre direitos humanos com o Cinema Nosso, no Rio de Janeiro. Mas podemos dizer que a nossa primeira grande iniciativa foi a pré-estréia do documentário realizado há cinco anos com o Cinema Nosso, "Luto como mãe".

Participamos também da campanha internacional da Rede de Mulheres da Iansa sobre Violência Doméstica Armada, a única no mundo dedicada às articulações entre gênero, direitos das mulheres, armas de fogo e violência armada.

De que trata o documentário?

O documentário de Luis Carlos Nascimento mostra mães, irmãs e esposas que perderam os seus familiares em atos de violência armada urbana e que lidam diariamente com a desarticulação familiar, as dificuldades financeiras e o estigma.

Existe algum mecanismo para articular as pesquisas com a vida e as experiências delas?

Não é objetivo direto do OGiVA funcionar como centro de atendimento e cuidado às vítimas. No entanto, trabalhamos de forma muito próxima com organizações que fazem isso (a Associação Portuguesa de Apoio a Vitima - Apav, por exemplo). Além disso, estamos desenvolvendo em parceria com a Apav uma pesquisa sobre violência doméstica armada em Portugal, como fizemos há uns anos no Rio de Janeiro.

Por outro lado, o OGiVA tem participado de debates públicos sobre a nova lei de controle de armas em Portugal, e pretendemos avaliar uma medida incluída nessa lei para retirar a arma de agressores em casos de violência doméstica. Desta forma, acreditamos que a médio e longo prazo poderemos ter impacto na vida destas mulheres.

O Observatório se ocupa da situação das mulheres em contextos violentos da América Latina, Europa e África... A situação delas é similar apesar das distâncias e das diferenças culturais?

Sem dúvida. Acredito que a violência contra as mulheres e o uso das armas de fogo são dois tipos de violências que aproximam zonas de guerra e de paz. Ou seja, são transversais aos vários contextos e desafiam categorias pré-concebidas sobre o que é a paz e o que é a guerra.

Como assim?

Existem guerras dentro da paz, do mesmo modo que existe paz dentro das guerras. Olhando para os diferentes contextos, posso afirmar que o que varia é, na verdade, o grau de intensidade ou a escala.

Qual é a situação atual das mulheres que moram em áreas de violência armada no Brasil?

Depende de que áreas estamos falando. A violência armada não está confinada a microespaços da sociedade. No entanto, parece que há uma hipervalorização dessa violência em comunidades mais pobres, em favelas, que tenham algum tipo de atuação do narcotráfico ou de grupos de milícias.

Obviamente, aí a violência armada, direta ou latente, torna-se mais visível. Quanto à situação das mulheres nessas áreas geográficas... além de pobres, na sua maioria negras, muitas delas chefes de família, diria que estão em posição privilegiada para levarem a cabo, com os apoios necessários, ações, projetos, iniciativas, de prevenção da violência.

A violência perpetrada por grupos armados e a violência de gênero têm consequências semelhantes às que são vividas em situações de guerra?

As estratégias de controle e ameaça do inimigo e de produção do terror baseadas na construção de masculinidades dominantes e feminilidades e masculinidades subalternas têm sido amplamente analisadas em contextos de guerra. Os crimes sexuais sistemáticos, os deslocamentos forçados ou a manipulação ou perversão das percepções dos papeis de homens e mulheres com fins bélicos, são exemplos bastante conhecidos. Estas mesmas estratégias de guerra podem ser encontradas em contextos de "não guerra".

Poderia explicar?

A violência armada tem impactos específicos nas vidas de homens e mulheres em tempo de guerra ou em contextos de paz violenta. Mas, como o sexo feminino não tem sido considerado o principal grupo de risco (o que mais mata e o que mais morre), os mecanismos existentes têm sido insuficientes, tanto para a compreensão da complexidade do envolvimento das mulheres na violência armada, como para a análise da totalidade dos impactos desta violência nas suas vidas.

Como consequência, as mulheres são consideradas vítimas e os homens agressores. Em tempos de guerra, as mulheres surgem como vítimas de violência armada e sexual; em tempos de paz, são exclusivamente vítimas de violência doméstica.

As consequências políticas desta abordagem passam por dirigir respostas aos homens centradas na esfera pública (políticas de segurança pública e de desarmamento) e às mulheres na esfera privada (relativas a violência doméstica), como se estes dois mundos não estivessem conectados.

Poderia dar exemplos?

Há que se entender que o envolvimento de mulheres em grupos armados, como no caso do Rio de Janeiro ou no caso de São Salvador, não constitui necessariamente uma ruptura com as feminilidades tradicionais. Embora exista um espaço de negociação identitária devido ao poder que lhes é atribuído pelas armas, verifica-se que, tal como no caso do ingresso das mulheres em contextos de guerra, as funções e os papeis que lhes são atribuídos têm como base a prova da sua capacidade em desempenhar papeis tradicionalmente associados a uma masculinidade hegemônica.

Caso não aconteça, os seus papeis resumem-se às tarefas de apoio à manutenção de espaços de domínio masculino, quer no domínio privado (enquanto namoradas e esposas de membros do grupo armado), quer no âmbito das atividades a que se dedicam (transporte de armas e drogas, por exemplo).

As cidades latino-americanas são particularmente agressivas para as mulheres?

Estes contextos, a que tenho chamado novíssimas guerras, assumem uma expressividade incomum na América Latina. Em muitos países da região, a paz formal e institucional não significou uma diminuição da violência, mas antes uma "democratização da violência". Em muitos países, após o final da guerra, assistiu-se a um aumento da violência social e da criminalidade armada.

Neste sentido, as cidades com estas características são perigosas para homens e mulheres. No entanto, o padrão mundial repete-se: como regra geral os homens são vítimas de desconhecidos, em espaço público, e as mulheres são, em 90% dos casos, vítimas de alguém que já conheciam, normalmente no espaço privado.

Quais iniciativas positivas você destacaria em relação à queda da violência?

Diria que dois bons exemplos foram o Estatuto do Desarmamento brasileiro e a inclusão da questão das armas de fogo na lei brasileira de combate à violência doméstica.

O Observatório também se ocupa da masculinidade.... Quais pesquisas estão conduzindo nesse aspecto?

Nos estudos sobre violência armada, o que normalmente é analisado são os rostos da violência, ou seja, os jovens do sexo masculino, geralmente negros. Ora, sabemos que os jovens que aderem a um modelo violento de masculinidade não constituem a maioria. Neste sentido, considero os estudos de Gary Barker e do Instituto Promundo muito relevantes.

Por um lado, temos que saber em que espirais violentas os jovens se encontram quando optam pela violência, em especial violência armada. Por outro lado, saber por que motivos não aderem à violência. Este último grupo, que opta por versões não violentas da masculinidade, constitui a maioria no mundo todo. E sobre eles, pouco se sabe. Neste momento estamos desenvolvendo uma pesquisa neste campo em Portugal, em Cabo Verde, Guiné Bissau e El Salvador.

Fonte: Comunidade Segura. 22/07/2009.

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