Quando participa de audiências de custódia representando presos em flagrante na Justiça Federal em Guarulhos (SP), o defensor público da UniãoCaio Paiva geralmente é interrompido ao comentar, por exemplo, que determinada pessoa deve ficar solta porque portava drogas para consumo próprio. Os juízes afirmam que essa questão só pode ser levantada no exame do mérito.
Isso acontece porque, ao definir que presos em flagrante têm o direito de ser ouvidos por um juiz em 24 horas, o Conselho Nacional de Justiça determinou que seja analisado apenas se os suspeitos precisam mesmo ficar atrás das grades ou se podem responder em liberdade.
Paiva avalia que não faz sentido impedir sempre outros tipos de perguntas. “A proibição da atividade probatória tem sido apresentada como benefício à pessoa presa, no sentido de poupá-la de um interrogatório antecipado. É uma espécie de paternalismo processual, uma tentativa de proteger pessoa presa dela mesma, como se sempre fosse confessar”, afirma o defensor e colunista da revista Consultor Jurídico. “No processo penal, é difícil separar mérito de cautelar.”
Já o juiz Luís Geraldo Lanfredi, que coordena o departamento do CNJ responsável por fiscalizar o sistema carcerário, entende que a análise probatória deve ficar para outro momento.
Segundo ele, o preso em flagrante geralmente está mais exposto a pressões e precisa de tempo para formalizar a defesa. Nas audiências, portanto, o mérito deve aparecer apenas de forma superficial, de acordo com Lanfredi.
Ambos debateram o tema, nesta terça-feira (23/8), no primeiro dia do 22º Seminário Internacional de Ciências Criminais, em São Paulo, promovido pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).
Eles concordaram que a audiência de custódia humanizou o Judiciário, pois até a implantação da iniciativa prisões em flagrante eram convertidas em preventivas sem que o juiz olhasse para o suspeito. Por isso, entendem que o principal objetivo da medida não é soltar mais, e sim permitir esse contato direto.
O modelo já existe nas capitais de todo o país, começou a expandir pelo interior e chegou recentemente à Justiça Federal. Lanfredi apontou que foram registradas 124,2 mil audiências até o dia 15 de agosto deste ano — 66 mil pessoas (53%) continuaram presas e 58,2 mil (47%) foram liberadas.
É obrigatória a presença de um promotor de Justiça e de um advogado ou defensor público. Para o juiz, o Ministério Público e a Defensoria podem atender toda a demanda nacional se conseguirem se organizar. Ele entende que é possível até a participação por videoconferência, embora seja vetado o mesmo mecanismo para o próprio preso.
Raízes
Lanfredi, auxiliar no CNJ desde quando as audiências eram só um projeto, disse que a ideia surgiu a partir dos mutirões carcerários promovidos pelo conselho. O órgão avaliou que não era preciso mudança legislativa, pois o Brasil já havia assumido em 1992 o compromisso de ouvir presos sem demora, com o Pacto de San José da Costa Rica.
A capital paulista foi a primeira cidade a passar pela experiência, em fevereiro de 2015. “Entendemos que, se desse certo em São Paulo, nenhum outro município ou estado poderia dizer que a iniciativa daria errado.” Antes do lançamento oficial, foram cinco meses de negociação entre o conselho e o Tribunal de Justiça de São Paulo. “A ideia em si não é nova, mas a maneira de implementar as audiências, sim”, declarou Lanfredi.
Ele disse ainda que a iniciativa venceu resistência de membros do Ministério Público, da polícia e até do próprio Judiciário. Segundo o juiz auxiliar do CNJ, juízes que atuam nas audiências já se “converteram”.
Paiva apontou ainda que autoridades com foro por prerrogativa de função também têm direito de ser ouvidos em 24 horas. Nesse caso, o tribunal competente poderia até delegar a audiência a um juiz de primeiro grau, mas ficaria responsável por proferir a decisão pela soltura ou pela prisão preventiva.
Em julho, o Senado aprovou proposta que regulamenta as audiências de custódia. Como houve mudanças no texto original, o PLS 554/2011 ainda precisará ser apreciado em turno suplementar.
Felipe Luchete é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 24 de agosto de 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário