Uma das questões mais polêmicas sobre a audiência de custódia diz respeito ao limite cognitivo e à proibição de atividade probatória pelo juiz e também pelas partes (Ministério Público e defesa técnica). O que pode ser perguntado à pessoa presa na sua apresentação em juízo? O juiz e as partes podem formular perguntas à pessoa presa sobre o mérito dos fatos ou devem se limitar às questões relacionadas à prisão?
Na primeira edição do meu livro Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro (Empório do Direito, 2015), cheguei à conclusão de que a atividade judicial e das partes na audiência de custódia deveria se limitar a circunstâncias objetivas da prisão e subjetivas sobre a pessoa presa, defendendo, então, a impossibilidade de formulação de perguntas ao cidadão conduzido sobre o mérito do caso penal. Essa foi a orientação que restou acolhida nos instrumentos normativos nacionais que trataram da matéria, como a Resolução 2013 do CNJ[1] e o PLS 554[2]. No âmbito doutrinário, também tem prevalecido a ideia de que a audiência de custódia não pode se transformar numa produção antecipada de cognição de mérito[3] ou em instrumento para obtenção de condenações antecipadas por meio de coações e abusos arbitrários[4], predominando assim a orientação de que tal ato não se destina à produção de provas[5].
Após muito refletir sobre essa questão no plano teórico e principalmente a partir da experiência prática que obtive já atuando em dezenas de audiências de custódia como defensor público federal, aproveitarei a segunda edição do meu livro (publicação prevista para outubro deste ano) para mudar o entendimento que defendi na primeira edição, assim o fazendo porque o meu compromisso é com o aprimoramento científico do processo penal, e não com as minhas conclusões, que às vezes podem ser provisórias ou mesmo precipitadas.
Comecemos pela discussão no plano teórico.
É interessante observar que os tratados internacionais de direitos humanos e a legislação processual penal de outros países não estabelecem nenhum limite cognitivo para essa audiência de apresentação da pessoa presa. Nas minhas pesquisas sobre o assunto também não encontrei uma orientação da doutrina estrangeira no sentido de que o juiz e as partes devem se abster de formular à pessoa presa qualquer pergunta relacionada ao mérito do caso penal. O fato de a audiência de custódia estar relacionada na normativa internacional ao direito à liberdade pessoal, embora auxilie na explicação sobre as finalidades desse ato processual, não parece ser o bastante para legitimar a proibição de qualquer atividade probatória.
Costuma-se invocar dois argumentos para justificar a proibição de atividade probatória na audiência de custódia: (I) o retrocesso causado pela antecipação do interrogatório; e (II) a inexistência de contraditório na fase de investigação. Ambos os argumentos me parecem equivocados.
Quanto ao primeiro argumento, o perigo que ele pretende evitar é apenas aparente. Não há dúvida de que a alteração procedimental promovida pela Lei 11.719/2008, com a colocação do interrogatório como sendo o último ato de instrução (artigo 400, caput, do CPP[6]), representou um avanço e trouxe um benefício para o acusado, que agora exercita o seu direito à defesa pessoal após ter conhecimento de toda a atividade probatória desenvolvida no processo, em especial do depoimento prestado pelas testemunhas arroladas pela acusação e pela vítima. No entanto, em nada prejudica esse cenário o fato de se permitir a atividade probatória na audiência de custódia, seja porque a pessoa presa será orientada pela sua defesa técnica (privada, por meio de advogado, ou pública, pela Defensoria) e cientificada pelo juiz do seu direito ao silêncio, seja — principalmente — porque esteinterrogatório naturalmente estará limitado àquele contexto da flagrância, em que as manifestações da vítima, das testemunhas e, sobretudo, do acusado, são provisórias e sujeitas à ratificação ou retificação em juízo.
Ainda sobre este primeiro argumento, surpreende que a comunidade jurídica brasileira censure qualquer atividade probatória na audiência de custódia, em que estão presentes o Ministério Público, a defesa técnica e o juiz, mas admita, com tranquilidade, que a pessoa presa adentre no mérito do caso penal quando é ouvida na lavratura do auto de prisão em flagrante pela autoridade policial, sem o acompanhamento de advogado ou de defensor público[7].
Quanto ao segundo argumento, sequer precisamos aprofundar o debate para abordar a questão relativa à existência e à amplitude do direito à ampla defesa e ao contraditório na investigação preliminar[8], e isso porque, embora realizada como regra na fase investigativa[9], a audiência de custódia não pode ser considerada ato ou instrumento de investigação, pois a partir do momento em que o auto de prisão em flagrante é judicializado, a prisão imediatamente adquire a natureza de ato processual, incidindo normalmente as garantias da ampla defesa e do contraditório.
Prosseguindo, é curioso constatar que a vedação de atividade probatória na audiência de custódia — no que se insere, advirta-se, a autodefesa — tem sido invocada em proteção da pessoa presa, como se fosse necessário protegê-la de si mesma. Temos aqui, portanto, algo que podemos classificar como uma espécie de paternalismo processual, um discurso que restringe a liberdade comunicativa do cidadão para criar ou preservar um ambiente em que somente se discute a legalidade e a cautelaridade da prisão. Considero esse pensamento duplamente equivocado.
O primeiro equívoco desse pensamento é a pretensão de promover uma separação rigorosa entre cautelar e mérito do caso penal. Isso não existe. O CPP exige prova da existência do crime e indício suficiente de autoria para que a prisão preventiva possa ser decretada (artigo 312, caput). A Lei 7.960/1989 exige fundadas razões, de acordo com as provas, de autoria ou participação do investigado (artigo 1º, II), para que a prisão temporária possa ser decretada. E mais. O CPP estabelece que o juiz deve conceder liberdade provisória, e não converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, quando o agente tiver praticado o fato amparado por excludente de ilicitude (artigo 310, parágrafo único[10]), assentando, ainda, que em nenhum caso se admitirá a decretação de prisão preventiva se presente este cenário (artigo 314)[11]. Ora, como influenciar o julgador no convencimento sobre essas questões sem entrar no mérito do caso penal?
O segundo equívoco desse pensamento é consequência do primeiro: a vedação de atividade probatória na audiência de custódia viola o direito ao confronto, que é uma decorrência da garantia do contraditório. A pessoa presa deve ter total liberdade de comunicação na audiência de custódia para influenciar no convencimento do juiz, dizendo, por exemplo, que agiu em legítima defesa ou que não foi ela quem praticou o crime ou, ainda, admitindo a autoria do fato, agregar uma tese defensiva que possa contribuir para a sua liberação, dizendo, por exemplo, que realmente trazia droga consigo, mas que era para consumo próprio. Enfim, a pessoa presa deve ter o direito de confrontar a “versão oficial” trazida pela polícia na audiência de custódia.
A conclusão lançada neste texto conduz à questão que enfrentarei na próxima coluna: se a pessoa presa admite na audiência de custódia que realmente praticou o crime, esse conteúdo pode ser aproveitado como expediente probatório na eventual ação penal?
[1] Prevê o artigo 8º, VIII, da resolução que o juiz deve “abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante”, completando o parágrafo 1º deste dispositivo que o juiz deve indeferir as perguntas das partes “relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação (...)”.
[2] Até o momento, a redação final do PLS 554/2011, aprovada pelo Plenário do Senado Federal no dia 13/7/2016, mas ainda pendente de apreciação final em turno suplementar, dispõe que “a audiência de custódia a que se refere o parágrafo 5º será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e a necessidade da prisão, a ocorrência de tortura ou de maus-tratos e os direitos assegurados ao preso e ao acusado” (artigo 306, parágrafo 6º).
[3] Neste sentido, cf. CHOUKR, Fauzi Hassan. Audiência de Custódia: Resultados preliminares e percepções teórico-práticas, 28. Disponível em:https://www.academia.edu/18010764/Audiência_de_Custódia_-_Resultados_preliminares_e_percepções_teórico-práticas Acessado no dia 24/7/2017; ROSA, Alexandre Morais da. O que você precisa saber sobre Audiência de Custódia? Disponível em: http://emporiododireito.com.br/o-que-voce-precisa-saber-sobre-audiencia-de-custodia-por-alexandre-morais-da-rosa/ Acessado no dia 24/7/2016; LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Afinal, quem continua com medo da audiência de custódia?Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-fev-20/limite-penal-afinal-quem-continua-medo-audiencia-custodia-parte2 Acessado no dia 24/7/2016.
[4] Cf. VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Audiência de custodia no processo penal: limites cognitivos e regra de exclusão probatória. IBCCrim, boletim 283, junho/2016.
[5] Cf. FISCHER, Douglas. Art. 8º. In: ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFEN, Pablo Rodrigo (org.). Audiência de Custódia: Comentários à Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 101.
[6] Prevê o artigo 400, caput, do CPP, que “na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado”.
[7] Curioso observar que durante a tramitação do PLS 554, inovou-se na ideia do projeto original, que se destinava unicamente à tratar da apresentação da pessoa presa ao juiz, e se inseriu, mediante acréscimo do parágrafo 5º ao artigo 304 do CPP, que “o preso tem direito de ser assistido por defensor, público ou particular, durante o seu interrogatório policial, podendo lhe ser nomeado defensor dativo pelo delegado de polícia que presidir o ato”. Semelhante propósito, embora veiculando a matéria como direito do advogado, e não como garantia da pessoa presa, restou inserido recentemente no Estatuto da OAB pela Lei 13.245/2016: “Assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração” (art. 7º, XXI), seguindo com a alínea a, que permite ao advogado “apresentar razões e quesitos”.
[8] Para um abordagem mais ampla sobre o tema, com indicação de doutrina especializada, remeto o leitor para outro trabalho de minha autoria: PAIVA, Caio. Prática Penal para Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 143 e seguintes.
[9] A audiência de custódia pode ser realizada na fase processual quando a prisão decorrer de cumprimento de mandado.
[10] Artigo 310, parágrafo único, do CPP: “Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação”.
[11] Artigo 314 do CPP: “A prisão preventiva em nenhum caso será decretada se o juiz verificar pelas provas constantes dos autos ter o agente praticado o fato nas condições previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal”.
Caio Paiva é defensor público federal, chefe da Defensoria Pública da União em Guarulhos (SP), especialista em Ciências Criminais e professor do curso CEI. É autor do livro "Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro" (2015) e coautor de "Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos". Sua página no Facebook: www.facebook.com/professorcaiopaiva.
Revista Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2016.
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