quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Por que há tantas prisões cautelares no Brasil?


Tratando-se de uma abordagem concisa, destinada ao aspecto jurídico-penal, não se pretende incluir as causas primárias, como o desemprego, o desequilíbrio social, a falta de perspectiva no mercado de trabalho, o uso de drogas, o abuso do álcool, dentre outros fatores.
Enumera-se, em verdade, alguns pontos cruciais para a compreensão do cenário composto por prisões cautelares, aptas a superlotar cadeias e presídios.
O primeiro deles nos leva à reflexão, pois a maioria dessas segregações provisórias advém de prisões em flagrante e não de investigação policial. Quer-se, com isso, evidenciar a pouca eficiência prática do Estado-investigação, não por culpa de seus agentes, mas porque o Poder Executivo insiste em não aparelhar convenientemente a polícia judiciária. Não há peritos; inexistem laudos com tecnologia avançada; vive-se, no processo penal, ainda o reino dos depoimentos testemunhais (“sem testemunha, não há crime”); não há um programa eficiente de proteção da testemunha e/ou vítima ameaçada; faltam treinamento, material básico e até combustível. Enfim, o caos começa cedo na persecução penal.
Se a maioria das prisões advém de flagrante, cabe ao delegado, em primeiro plano, arbitrar fiança, dentro da sua atribuição legal. Nem sempre é viável, porque o preso, pobre, não tem condições de pagar. Seguem os autos da prisão em flagrante ao magistrado, que, muitas vezes, limita-se a convertê-lo em prisão preventiva, segundo as novas regras do artigo 310 do CPP, sem nem mesmo refletir um pouco mais, proporcionando a liberdade provisória, ainda que acompanhadas de medidas alternativas (artigo 319, CPP). Há, sim, uma cultura prisional espalhada dentre vários magistrados, que precisa ser rompida. Uma das soluções — fraquíssima, na realidade — aventadas foi a implantação da audiência de custódia. Depois de preso em flagrante, o indivíduo é apresentado ao juiz pessoalmente. Pergunta-se: e daí? O magistrado acostumado a converter o flagrante em prisão preventiva continuará fazendo exatamente a mesma coisa. Quem realmente acha que, vendo o preso, com seu “chinelo de dedo”, o magistrado, quase vertendo uma lágrima, vai soltá-lo? Os projetos-piloto, com a devida vênia, acompanhados por altas autoridades e filmados pela mídia não servem de base para a simples realidade. Escolhidos os juízes a dedo para tais eventos, eles concederam mais liberdades provisórias do que estavam habituados. Hoje, chegam-me notícias que, em certos locais, o magistrado nem entra na sala da audiência de custódia. O preso limita-se a assinar o termo na frente do escrevente. Esse é o Brasil real.
Após o juízo de primeiro grau manter o flagrante, embora convertido em preventiva, ingressa o preso com a ação de Habeas Corpus. Na maioria maciça dos casos, nega o relator a liminar. No mérito, segue-se o mesmo ritmo. Os fundamentos são batidos e conhecidos, até padronizados: garantia da ordem pública (como fundamento número 1, que o legislador, há décadas, não ousa definir), seguidos de conveniência da instrução e garantia de aplicação da lei penal. Mas, normalmente, esses requisitos são expostos em raciocínios formulados em abstrato. Lendo-se decisões de primeiro e segundo graus, pode-se observar a falta de argumentos calcados em fatos. Diz-se que o crime é grave, por se tratar de homicídio (eliminar a vida de um ser humano é grave, por isso é crime). Sustenta-se que o roubo fere a ordem pública, pois há muitos casos, deixando a população sobressaltada. E assim sucessivamente. São raciocínios tautológicos. A minoria dessas decisões esmiúça os fatos e os transporta para a lei processual penal, justificando, então, no caso concreto, a segregação cautelar.
Outro ponto, merecedor de abordagem, é o descaso nítido do Poder Executivo em geral para construir e acomodar, decentemente, presos provisórios, separando-os dos definitivos. Por isso, a superlotação. Pode-se repetir à saciedade que “preso não dá voto”, pois todos sabem disso e ninguém faz absolutamente nada no âmbito político.
Mais uma abordagem nua e crua é a distância do Parlamento e sua imensa lentidão para reformar, de verdade, as leis penais e processuais penais, que estão defasadas demais. E quando há lei nova, geralmente, cuida de um crime da moda, aumentando a pena e dando ensejo a mais prisões cautelares.
A criminalidade no Brasil também aumentou, por certo, visto que o país cresceu e a sua população, idem. Onde estão as vagas nos presídios para suportar o crescimento natural da sociedade em números? Os números exibidos por certos governantes não se coaduna, de novo, com a simples realidade.
Todas as soluções propostas, até o momento, passam por superficialidades e eventos de mídia. Não adiantará nada a audiência de custódia. Não resolverá bulhufas se, porventura, houver a descriminalização de drogas para uso — será que ninguém notou que, para a maioria dos delegados, promotores e juízes, quase 100% dos presos com drogas (sem importar a quantidade) são traficantes? Que outras soluções estão sendo apresentadas? Nenhuma, a não ser a reclamação dos defensores com relação a este ou aquele juiz, esta ou aquela turma ou câmara de tribunal.
Este é um artigo conciso, mas não se exime de oferecer alguma proposta, mesmo que, no futuro, também seja considerada inútil. O primeiro passo é criar o crime de responsabilidade para o governante que permitir a superlotação do presídio sob sua alçada. Constatada a superlotação, que fuja ao padrão expressamente descrito em lei penal e de execução penal, o Ministério Público pode investigar e denunciar o governador ou o presidente por conta disso, sem nenhuma imunidade. Chega de imunidade para autoridades que não cumprem o seu dever.
O segundo passo é criar, expressamente, a falta funcional do magistrado, sujeito a responder junto à Corregedoria ou ao Conselho Nacional de Justiça, quando deixar de fundamentar corretamente a prisão cautelar. Há prisões decretadas em uma ou duas linhas. Não há motivação que resista a essa concisão.
Em terceiro, cabe ao Parlamento parar um pouco para pensar no Direito Penal e no Processo Penal, pois somente o Código Civil e o Processo Civil mereceram atenção nos últimos anos. Todos os ramos do Direito merecem atualização, mas o campo criminal, representativo de coerção à liberdade individual, é simplesmente ignorado. Ouso dizer que é o ponto mais importante de todos na atualidade a merecer revisão.
Em quarto, cabe também criar falta funcional expressa para o membro do Ministério Público que permitir, omitindo-se, a superlotação de qualquer presídio sob sua fiscalização.
Muito mais pode ser feito, mas este texto não comporta. Na realidade, todas as soluções propostas acima chamam à responsabilidade pessoal as personagens do caos do sistema carcerário brasileiro, especialmente no tocante à prisão provisória. Enquanto não houver um claro responsável para ser criminal ou funcionalmente responsabilizado, continuarão as prisão cautelares a lotar lugares já completos e insalubres. Isso porque a Constituição Federal veda a pena cruel... Imagine-se se não proibisse.
Guilherme Nucci é desembargador em São Paulo. Livre-docente em Direito Penal, doutor e mestre em Processo Penal.
Revista Consultor Jurídico, 13 de outubro de 2015.

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