O conceito de custódia se relaciona com o ato de guardar, de proteger. A audiência de custódia consiste, portanto, na condução do preso, sem demora, à presença de uma autoridade judicial, que deverá, a partir de prévio contraditório estabelecido entre o Ministério Público e a defesa, exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão, assim como apreciar questões relativas à pessoa do cidadão conduzido, notadamente a presença de maus-tratos ou tortura. Assim, a audiência de custódia pode ser considerada como uma relevantíssima hipótese de acesso à jurisdição penal, tratando-se, então, de uma “das garantias da liberdade pessoal que se traduz em obrigações positivas a cargo do Estado”.
Com efeito, os fundamentos da audiência de custódia estão previstos em pactos e tratados internacionais assinados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, e já é utilizada em muitos países da América Latina e na Europa, onde a estrutura responsável pelas audiências de custódia recebe o nome de Juizados de Garantias.
Vejamos o que nos impõe, como norma supralegal, o artigo 7º, item 5, do Pacto de San José da Costa Rica ou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos:
"Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo". (destaquei)
Igualmente, o artigo 9º, item 3, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York:
"Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença". (também)
Tais normas internacionais estão incorporadas em nosso ordenamento jurídico desde o ano de 1992, quando o Brasil aderiu à Convenção Americana por meio do Decreto-Lei 678, e, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, pelo Decreto-Lei 592. A propósito, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado 554/2011, dando a seguinte redação ao artigo 306 do Código de Processo Penal:
"(...)"§ 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação. § 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos art. 310. § 3º A oitiva a que se refere parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado. § 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas. § 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código.”
Atualmente, a lei brasileira apenas prevê o encaminhamento do auto de prisão em flagrante para que o juiz competente analise a legalidade e a necessidade da manutenção da prisão cautelar.
Por essa razão, o contato entre o juiz e a pessoa presa tem ocorrido meses após sua prisão, apenas no dia da sua audiência de instrução e julgamento. A realização de audiência de custódia imediatamente após a prisão em flagrante é um mecanismo de prevenção e de combate à tortura, visando também à humanização e à garantia de efetivo controle judicial das prisões provisórias, e, por isso determina a incidência dos seguintes benefícios e razões:
1. Combate à superlotação carcerária: a apresentação imediata da pessoa detida ao juiz é um mecanismo que possibilita à autoridade judiciária a apreciação da legalidade da prisão. A realização da audiência de custódia minimiza a possibilidade de prisões manifestamente ilegais.
2. Inibe a execução de atos de tortura, tratamento cruel, desumano e degradante em interrogatórios policiais: atos de tortura violam os direitos fundamentais do cidadão, e apesar das providências tomadas contra estes atos nos últimos anos no Brasil, ainda são recorrentes os casos em que a tortura ainda é praticada durante interrogatórios policiais.
3. Viabiliza o respeito às garantias constitucionais: a realização de audiências de custódia garantiria, no Brasil, o efetivo respeito ao princípio constitucional do contraditório, conforme artigo 5º, LV, CF.
4. É demanda social expressa em iniciativa legislativa: o Projeto de Lei 554/2011, de autoria do senador Antônio Carlos Valadares, propõe a alteração do parágrafo 1º do artigo 306 do Código de Processo Penal incluindo a obrigatoriedade da realização de audiências de custódia no processo penal brasileiro.
5. Reforça o compromisso do Brasil na proteção dos Direitos Humanos: a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 1992, dispõe que “toda pessoa detida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada a exercer funções judiciais” (artigo 7º).
6. Renova as credenciais do Brasil no cenário internacional:organismos e atores internacionais — tais como a Human Rights Watch, organização não governamental dedicada à proteção dos direitos humanos em todo o mundo, e o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) — já sinalizaram sobre a importância da audiência de custódia.
7. Adequa o ordenamento jurídico interno para cumprimento de obrigações internacionais, conforme exige o artigo 2° da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), segundo o qual é dever dos Estados-partes a adoção disposições de direito interno compatíveis com as normas contidas no referido tratado. Conforme dispõe essa normativa, “se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1º [da CADH] ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades”.
8. Reforça a integração jurídica latino-americana: o instituto da audiência de custódia é, atualmente, parte do ordenamento jurídico de diversos países da América Latina — a exemplo de Peru, México, Argentina, Chile e Equador.
Contextualizado o tema, passemos ao exame das circunstâncias e possibilidade de realização da audiência de custódia nas unidades policiais com a presença dos atores do sistema jurídico penal.
É transparente a dificuldade enfrentada pelo Poder Judiciário na implantação da audiência de custódia, como já ocorre nos estados de São Paulo, Espírito Santo e Maranhão, sobretudo de ordem estrutural, obstáculos que influenciam também sua concretização no estado do Acre, apesar dos seus adeptos entenderem que as barreiras são consequência natural da inovação e do avanço, que será ultrapassada corrigindo-se os erros e aperfeiçoando-se os acertos, diante de críticas construtivas e sem prejuízo de qualquer direito.
Ocorre que as consequências da aplicação da audiência de custódia não impõem obstáculos apenas ao Judiciário, visto que o sistema condiciona sua eficácia à integração com outras instituições, especificamente as polícias judiciárias que mantém atribuição legal para lavratura do auto de prisão e flagrante, realizando assim, a custódia temporária dos autuados.
É justamente nessa circunstância que prospera a indagação sobre qual instituição ficará com a incumbência de transportar os presos e apresentá-los aos juízes? Nesse ponto, é importante salientar que uma das justificativas para a adoção da audiência de custódia seria a liberação de policiais civis para realizarem suas atividades-fim, qual seja, a investigação. Contudo, se couber à Polícia Civil a apresentação dos presos, o serviço investigativo ficará ainda mais comprometido. Se, por outro lado, tal incumbência ficar com a Polícia Militar, o prejuízo para a sociedade será menor, vez que essa instituição conta com um número bem maior de policiais. Ainda assim, o contingente utilizado na viabilização da audiência não será desprezível, o que também nos parece prejudicial à população, pois o patrulhamento ostensivo será prejudicado.
Diante de contradições jurídicas e práticas, o Poder Judiciário dos estados percussores, e demais defensores da inovação processual, não semearam mecanismos de viabilidade de execução da audiência de custódia nos demais níveis institucionais, o que enseja a necessidade de regulamentação interna com o reconhecimento de sugestões pertinentes.
Em publicação no site do Ministério Público do estado de São Paulo, a Corregedoria do órgão, manifesta-se sobre o tema ponderando sobre a realização da audiência por videoconferência:
“...Nada impede, outrossim, que, uma vez implantada definitivamente a “audiência de custódia”, seja ela realizada pelosistema de vídeo conferência, asseguradas todas as garantias legais, dotando-se o Poder Judiciário e a Polícia Civil de salas adequadas, em especial quando se cuidar de pessoa presa de alto grau de periculosidade, não só por questão de segurança, mas para evitar custo operacional desnecessário...”. (destaquei)
O juiz de Direito, também do estado de São Paulo, Bruno Luiz Cassiolato vai mais além e destaca em artigo sobre a audiência de custódia, outra sugestão para execução eficiente do instituto, especificamente a gravação em sistema audiovisual do interrogatório do preso feito pela autoridade policial, cuja mídia seria encaminhada ao magistrado quando da remessa do auto de prisão em flagrante. Complementando o raciocínio, o magistrado incita a presença obrigatória de um defensor (constituído ou plantonista, nomeado só para o ato) no ato da lavratura do auto de prisão em flagrante delito, especialmente antes e durante o interrogatório conduzido pela autoridade policial.
Fomentando outra solução, o delegado de Polícia Civil do estado do Acre Karlesso Nespoli propôs em expediente interno, a possibilidade de efetivação da audiência de custódia em salas específicas das unidades policiais que possuem como atribuição restrita, a lavratura do auto de prisão em flagrante. Assim, com a disponibilização de salas nas delegacias de polícia com estrutura mínima, mediante a confecção de termo de cooperação, caberia aos órgãos impulsionadores do novel instituto apenas promover a presença das partes necessárias a sua consumação, evitando o transporte dos presos ao Judiciário e o surgimento de um novo problema para a polícia.
Em que pese os benefícios e peculiaridades das sugestões elencadas, torna-se imprescindível explorar de forma abrangente a viabilidade e eficiência de cada medida.
Compreendo, inicialmente, que a audiência de custódia por videoconferência é absolutamente inócua, pois continua produzindo um formalismo infrutífero diante da finalidade básica do instituto, que é a apresentação física, a presença do preso perante o magistrado encarregado de analisar a legalidade de sua prisão, eventuais abusos e decidir sobre sua mantença em custódia ou soltura com ou sem restrições. Soma-se a essa constatação a incidência de outra circunstância de caráter pragmático, ou seja, o aumento da carga laboral dos juízes que continuariam atulhados com mais uma atribuição, apesar da minimização do problema da polícia em termos de escoltas e deslocamentos. Da mesma forma, surgiria a necessidade da designação de juízes para plantões e a realização das audiências, de modo que tempo, pessoal e trabalho no Judiciário não se alterariam em praticamente nada.
Quanto à sugestão da gravação pela autoridade policial do interrogatório do preso em equipamento de áudio e vídeo durante a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, com a respectiva presença obrigatória de um defensor e posterior remessa da mídia ao magistrado na entrega dos autos no prazo legal, racionalizo que, apesar do custo reduzido e de coibição de qualquer tipo de coação ou desrespeito a garantias do preso, ainda não teríamos o real espírito da audiência de custódia implementado, pela simples falta da presença física do juiz.
Nesse diapasão, abro um parêntese para afirmar ser sectário do entendimento de que o delegado de polícia é autoridade capaz para realizar o controle de convencionalidade, principalmente na lavratura do auto de prisão em flagrante, já que exerce função jurisdicional ao deliberar sobre a tipificação da conduta criminal e a liberdade provisória, concedendo ou não fiança ou efetivando a prisão-cárcere, além de outros. Nesse sentido, o próprio Pacto de San José da Costa Rica quer que a pessoa tenha "pressa" em ter analisada a sua situação jurídica de desvantagem quando "vítima" do poder punitivo, sendo plenamente convencional e constitucional gabaritar juridicamente outro órgão que tenha estrutura para a análise da prisão e liberdade ainda em fase de investigação criminal, principalmente porque nosso Código de Processo Penal, em seu artigo 282, parágrafo 2º, veda expressamente a atuação do juiz em fase de investigação criminal, podendo exercer sua função nesta fase como um segundo garantidor dos direitos fundamentais, analisado a juridicidade da prisão-captura-cárcere em flagrante e convertê-la em prisão preventiva, desde que devidamente representada pelo delegado de polícia ou promotor.
Em relação à execução das audiências de custódia em unidades policiais específicas, com a consequente presença do juiz, promotor e defensor, teremos como resistência real, além da necessidade de estruturação física com dispêndio financeiro por parte do executivo, a mudança de postura dos órgãos envolvidos quanto à disponibilização da presença física dos profissionais nas delegacias de polícia.
No cenário atual de expansão da implantação da audiência de custódia, malgrado os levantes contrários a sua utilização, que inclusive divide opiniões no próprio Poder Judiciário brasileiro, e, cônscio das adversidades de domínio estrutural e financeiro dos Poderes Executivos estaduais, assimilo, entre as sugestões mencionadas, como uma solução palpável a disponibilização de salas nas delegacias de polícia com estrutura mínima para realização da audiência de custódia, cabendo aos órgãos impulsionadores do novel instituto apenas promover a presença das partes necessárias a sua execução.
Indo mais adiante, acredito que as salas a serem disponibilizadas para a audiência de custódia nas unidades policiais podem ter ainda uma dupla função, ou seja, quando desocupadas, permaneçam à disposição dos advogados que diariamente desempenham suas funções em âmbito policial. A medida encontra fundamento legal no artigo 7º, parágrafo 4º do Estatuto da OAB, que disciplina a necessidade de salas especiais para exercício da advocacia nas delegacias de polícia, inclusive alguns estados da federação, como São Paulo, Mato Grosso do Sul, Ceará e Piauí, iniciaram o acesso dos advogados a ambientes exclusivos.
É facilmente perceptível que os mecanismos de estruturação da audiência de custódia são alicerçados em circunstâncias que podem ocasionar consequências desastrosas, por isso, faz-se necessário um esforço conjunto das instituições interessadas no sucesso da medida por meio de discussões científicas e ações menos impactantes, sendo salutar a efetivação das audiências nas próprias delegacias de polícia, com base no ganho mútuo das instituições públicas envolvidas e, principalmente, na diminuição dos efeitos negativos produzidos pelas mazelas do sistema penal brasileiro.
Roberth José de Sousa Alencar é delegado de Polícia Civil do estado do Acre, bacharel em Segurança Pública, especialista em Ciências Penais e Direito do Estado e professor universitário e de cursos preparatórios para concursos.
Revista Consultor Jurídico, 30 de setembro de 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário