A motivação, que não se confunde com o motivo, é a explanação deste. Todo ato administrativo deve ter seus motivos devidamente tornados públicos, com a indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, de forma explícita, clara e congruente. Não apenas por decorrência dos postulados da cidadania e do acesso à Justiça (artigo 1º, II e artigo 5º, XXXV da Lei Fundamental)[1], mas como exigência do artigo 50 da Lei 9.784/99.
Esse princípio exige do administrador os fundamentos de fato e de direito de suas decisões, seja o ato administrativo vinculado ou discricionário, sendo aplicado como regra, salvo quando dispensado pela lei ou incompatível com a natureza do ato[2]. A formalidade, ao permitir o controle de legalidade da deliberação, representa uma gigantesca garantia para a fiscalização da escolha da administração pública[3]. Senão vejamos:
“A motivação tem o papel de demonstrar que a interpretação se deu segundo a lógica do razoável, que os fatos pressupostos do ato existem e são aptos a deflagrar determinados efeitos determinados, que o agente tinha competência para atuar e que há coerência entre o motivo e o conteúdo, em vista da finalidade legal (...) Com ela, e demais subsídios, o controlador do ato terá meios para verificar a sua razoabilidade, ou seja, sua validade perante a ordem jurídica[4]”.
Cumpre sublinhar que, assim como nas fundamentações judiciais, não há mais lugar para motivações administrativas que se limitem à mera cópia de dispositivos legais ou utilização de termos genéricos que sirvam a qualquer hipótese. Exige-se que a deliberação esteja lastreada em elementos concretos. Meras ilações ou conjecturas desprovidas de base empírica não autorizam que a administração pública afete a esfera de direitos do servidor público.
Mencione-se também que não se admite o indevido reforço de fundamentação. É dizer inviável que o administrador tente posteriormente suprir a ausência ou deficiência da motivação. O ato administrativo é nuloab initio, e nenhuma manobra ulterior da administração pública poderá mudar esse fato.
Grife-se ainda que, se os motivos invocados como fundamento forem inexistentes ou falsos, impõe-se a nulidade do ato, que resta invalidado em razão da teoria dos motivos determinantes[5].
Pois bem. Dentre os diversos atos administrativos, destaca-se a remoção, que traduz o deslocamento do servidor para outra lotação, a pedido ou de ofício pela administração pública[6]. A decisão do administrador em remover algum servidor público deve ser tomada cum grano salis, por afetar não só a vida profissional do agente, mas principalmente sua esfera particular, não se olvidando que a família, base da sociedade, deve contar com especial proteção do Estado (artigo 226 da Constituição Federal).
Por isso mesmo o ordenamento jurídico tratou de conferir a alguns agentes públicos uma proteção adicional contra remoções arbitrárias. Cuida-se da inamovibilidade, que pode se encontrar na Lei Fundamental, como ocorre com a magistratura, ou na legislação ordinária, como é o caso daquela que ampara o delegado de polícia.
Além do mais, a investigação criminal consubstancia-se em atividade essencial de Estado, que deve ser levada a efeito sem discriminações benéficas ou detrimentosas. Favoritismos ou perseguições são intoleráveis no âmbito da atividade de persecução penal, que deve se lastrear apenas no ordenamento jurídico, sem qualquer motivação pessoal.
Para que o Estado-investigação promova apurações isentas e imparciais, é preciso que a autoridade de polícia judiciária não decida sob o temor de injustas represálias, não devendo se sujeitar a vicissitudes sociais, econômicas e políticas. E uma das formas mais comuns de retaliação é justamente por meio da remoção.
Nesse panorama, surgiu a Lei 12.830/13. Dispõe a Lei de Investigação Criminal:
“Artigo 2º (...) Parágrafo 5º. A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado”.
Como se vê, só há que se falar em remoção do delegado de polícia de uma delegacia a outra se restar inequivocamente demonstrado, mediante detalhada fundamentação, o interesse público da medida. Não se trata de favor pessoal, senão de instrumento de preservação da liberdade e independência da autoridade policial no exercício da função, que gera reflexos em um dos bens jurídicos mais caros ao cidadão, qual seja, a liberdade.
A doutrina explica:
“O ato de remoção a ser fundamentado estará adstrito aos balizamentos legais, impedindo seu uso como forma de perseguição política ou na satisfação de interesses escusos[7].
Importante alteração trazida pela Lei 12.830/13 diz respeito à impossibilidade de remoção arbitrária do delegado de polícia, o que confere maior transparência e segurança à atividade de investigação. Assim, somente por ato fundamentado e por necessidade de serviço, observadas as regras da impessoalidade, é que se poderá alterar o exercício das funções do delegado de polícia. De igual modo, exigir-se-á também fundamentação específica para a avocação de investigação pelos órgãos superiores da instituição, tudo conforme o disposto no artigo 2º, parágrafo 4, Lei 12.830/13[8]”.
Essa inamovibilidade não significa a absoluta impossibilidade de movimentação da autoridade de polícia judiciária, mas a colocação de rígidos limites à sua remoção, sendo a baliza fundada no interesse público. Aliás, não há inamovibilidade absoluta nem mesmo para o magistrado ou membro do Ministério Público. O fato é que a remoção não pode se dar com fundamentos fraudados ou genéricos.
Não se nega, quando o assunto é remoção, que a lei confere um espaço de discricionariedade ao administrador, ao empregar conceitos de valor como o de interesse público. No entanto, é bom grifar o alerta feito pela doutrina:
“A discricionariedade pode existir, embora não signifique liberdade total, isenta de qualquer limite. (...) A remoção ex officiodo funcionário só pode dar-se para atender à conveniência do serviço, de modo que, se for feita para punir, será ilegal[9]”.
Como mencionado, é indispensável que o administrador aponte, de maneira efetiva, as circunstâncias fáticas que justifiquem a medida, sob pena de manifesta ilegalidade. Não satisfazem parâmetros unicamente subjetivos. Há que se perquirir a presença de indicadores palpáveis da exigibilidade da medida restritiva, a não ser que se queira substituir a discricionariedade pela arbitrariedade. Ensina o Tribunal da Cidadania que:
“O interesse do serviço que autoriza a excepcional remoção ex officio é o interesse concreto, demonstrado, comprovado, fundado em motivos reais e palpáveis. Admitir que as remoções possam ser operadas com base em justificações abstratas de interesse público — que já constitui em si um conceito jurídico indeterminado por excelência — equivaleria a admitir a prática de ato administrativo à total revelia de justificação legítima, o que conduziria à impossibilidade de sindicar a sua juridicidade[10]”.
De mais a mais, remover arbitrariamente um delegado de polícia ofende não apenas a prerrogativa de inamovibilidade, mas atinge por via reflexa outras garantias. Se uma autoridade de polícia judiciária é retirada de sua delegacia, está sendo destituída da presidência de suas investigações, o que fere de morte o princípio do delegado natural. Confira-se a lição do Judiciário:
“Para fins, pois, de garantia do interesse público nas investigações criminais, subtraindo os delegados das pressões internas e externas, é possível dizer que hoje já exista o princípio do delegado natural. Isso lhes assegura uma independência tal, que poderão investigar, com tranquilidade, não apenas aquela parcela majoritária da população que é desprovida de recursos materiais e poder político, mas todo e qualquer cidadão que infrinja a lei penal, a casta intocável dos poderosos. Não poderão ser destacados do inquérito policial a que presidem, nem ser desrespeitosamente designados para outra delegacia de polícia, quando atuam nos lindes do interesse público (...) Passa a constituir direito fundamental da sociedade e das pessoas investigadas não só o acesso ao princípio do juiz natural e do promotor natural, mas também do delegado natural, com a correlata e importante garantia da inamovibilidade. A investigação criminal, etapa fundamental da persecução penal, cerca os agentes políticos por ela responsáveis das garantias de independência necessárias ao fomento da cidadania e dos princípios republicanos[11]”.
O legislador comunga dessa posição, o que se pode extrair da Justificativa ao Projeto de Lei 132/12 (que após aprovação foi convertido na Lei 12.830/13) e das próprias discussões para aprovação do referido projeto Legislativo:
“Para que a condução dos trabalhos de investigação possa ser realizada com a eficiência que a sociedade clama, faz-se necessária a garantia de autonomia na investigação criminal (...) Com tais medidas, a investigação ganhará em agilidade, qualidade e imparcialidade, pois o delegado de polícia não sofrerá interferências escusas na condução do inquérito policial ou do termo circunstanciado (...) Impede o afastamento do delegado de uma investigação em particular, sem motivo justo ou legal, o que é uma prática nefasta, (...) prejudicando sobremaneira a eficiência da persecução criminal[12]”.
Ademais, é dever da administração pública, mesmo nos atos discricionários, pautar suas condutas com vistas a garantir respeito ao contemporâneo direito fundamental à boa administração pública, o qual se manifesta não apenas em relação aos administrados, mas também aos seus próprios agentes. Assim ensina a doutrina:
“É que o estado da discricionariedade legítima, na perspectiva adotada, consagra e concretiza o direito fundamental à boa administração pública, que pode ser assim compreendido: trata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas; a tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totalidade dos princípios constitucionais que a regem[13]”.
O desrespeito a essa prerrogativa, estampado em ato administrativo ilícito de remoção arbitrária, possibilita a correção pelo Poder Judiciário, conforme ensinamento doutrinário:
“Não se confundem discricionariedade e arbitrariedade. Ao agir arbitrariamente o agente estará agredindo a ordem jurídica, pois terá se comportado fora do que lhe permite a lei. Seu ato, em consequência, é ilícito e por isso mesmo corrigível judicialmente[14]”.
“A rigor, pode-se dizer que, com relação ao ato discricionário, o Judiciário pode apreciar os aspectos da legalidade e verificar se a Administração não ultrapassou os limites da discricionariedade; neste caso, pode o Judiciário invalidar o ato, porque a autoridade ultrapassou o espaço livre deixado pela lei e invadiu o campo da legalidade[15]”.
Levando em conta todas essas considerações, torna-se fácil entender o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
“A fundamentação apresentada nas informações evidencia desvio de finalidade pela incongruência entre o motivo e o objetivo do ato de remoção, cuja justificativa está marcada por generalismos e subjetivismos que identificam a presença de interesse público a partir de ilações sobre prejuízos que futuramente poderiam advir do serviço policial (...) Não havendo demonstração concreta sobre a forma como os desentendimentos entre o impetrante e seu coordenador afetam o serviço, e inexistindo instauração de processo disciplinar, a remoção se mostra ilegal[16]”.
Na linha do que sustentamos anteriormente, a garantia de ser investigado apenas pelo delegado natural revela-se verdadeiro direito fundamental, razão pela qual a inamovibilidade do delegado de polícia, mais do que uma prerrogativa do cargo, traduz uma garantia do cidadão.
[1] MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 112/113.
[4] ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Motivação e Controle do Ato Administrativo. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 136.
[7] WERNER, Guilherme Cunha. In: DEZAN, Sandro Lucio; PEREIRA, Eliomar da Silva (org.). Investigação Criminal. Curitiba: Juruá, 2013, p. 186.
[11] Processo 001985-98.2014.8.26.0297, Comarca de Jales/SP, Juiz de Direito Fernando Antônio de Lima, DJ 02/10/2014.
[13] FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo. Malheiros: 2007. p. 20.
[14] MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 426.
[16] STJ, RMS 37.327, Rel. Min. Herman Benjamin, DJ 20/08/2013. Em igual sentido: STJ, RMS 29206, Rel. Min. Campos Marques, DJe 05/06/2013.
Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná, e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.
Revista Consultor Jurídico, 27 de outubro de 2015.
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