sexta-feira, 28 de março de 2014

Sociedade mais punitiva colherá mais violência

A Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 227, determina que as crianças e os adolescentes têm prioridade absoluta. Igual mandamento foi estabelecido, também, na Lei Complementar 8.069, de 13 de julho de 1990.
Lei fundamental e suprema do país, a Constituição da República Federativa do Brasil foi promulgada em 5 de outubro de 1988. Esta Carta Magna pode ser considerada o auge de todo o processo de redemocratização brasileiro, pois marcou o início da consolidação da democracia, após os anos de ditadura militar.
Dentre os avanços trazidos pela aludida Carta Política, encontram-se: a criação do SUS como sistema único de saúde no país, o voto facultativo para cidadãos entre 16 e 17 anos, uma maior autonomia para os municípios, a garantia de demarcação de terras indígenas, a criação da Lei de proteção ao meio ambiente, a garantia de aposentadoria para trabalhadores rurais sem que precisem ter contribuído com o INSS, o fim da censura a emissoras de rádio e TV, filmes, peças de teatro, jornais e revistas, etc e a redução do mandato presidencial de cinco para quatro anos.
Há de ser destacado também o disposto no artigo 227 da nossa Lei Fundamental: é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Retrospectiva internacional
Se fizermos uma retrospectiva dos atos normativos criados nos últimos anos visando proteger a criança e o adolescente, veremos que os esforços empreendidos foram diversos.

Em 1919 a Liga das Nações, à época, criou o Comitê de Proteção da Infância, diante da quantidade de crianças e adolescentes órfãos após a Primeira Guerra Mundial. A existência deste comitê faz com que os Estados não sejam os únicos soberanos em matéria dos direitos da criança Em 1923, Eglantyne Jebb (1876-1928), fundadora da Save the Children, formula junto com a União Internacional de Auxílio à Criança a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, conhecida por Declaração de Genebra. Em 1924 já se nota a preocupação internacional em assegurar os direitos de crianças e adolescentes, como foco de discussão entre as nações e a Sociedade das Nações adota a Declaração de Genebra.
Já em 1927, durante o IV Congresso Panamericano da criança, dez países americanos (Argentina, Bolívia, Brasil, Cuba, Chile, Equador, Estados Unidos, Peru, Uruguai e Venezuela) subscrevem a ata de fundação do Instituto Interamericano da Criança (IIN — Instituto Interamericano del Niño — hoje vinculado à OEA e estendido à adolescência), organismo destinado à promoção do bem-estar da infância e da maternidade na região.
No ano de 1934 a Liga das Nações aprova, pela segunda vez, a Declaração de Genebra. Foi, entretanto, somente depois do fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação da ONU e sua subsidiária específica para a criança — a UNICEF — a partir da década de 1950, que os países passaram a mais detidamente debruçar-se sobre a situação dos menores. Em 1946 o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas recomenda a adoção da Declaração de Genebra.
Logo após a Segunda Guerra Mundial, um movimento internacional se manifesta a favor da criação do Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância — UNICEF; em 1948 a Assembléia Geral das Nações Unidas proclama a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nela os direitos e liberdades das crianças e adolescentes estão implicitamente incluídos.
Em 1959 é aprovada, por unanimidade, a Declaração dos Direitos da Criança. Entretanto, este texto não é de cumprimento obrigatório para os estados-membros. Em 1959 a Declaração Universal dos Direitos das Crianças, aprimorada com as chamadas: 1- "Regras de Beijing", de (1985); 2- Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio), adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução nº 45/110, de 14 de Dezembro de (1990) e 3- as "Diretrizes de Riad", para prevenção da delinqüência juvenil (1990).
No Continente Americano, o tratado celebrado em 1969 — o “Pacto de São José da Costa Rica” — estabelece, em seu artigo 19, que “toda criança tem direito às medidas de proteção que sua condição de menor requer por parte da família, da sociedade e do Estado”. Em 1979 se celebra o Ano Internacional da Criança. São realizadas atividades comemorativas ao vigésimo aniversário da Declaração dos Direitos da Criança. Em 1983 diversas ONGs se organizam para elaborar uma Convenção sobre os Direitos da Criança, possuindo o estatuto de consulta, junto à ONU.
Em 1989 a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança é adotada pela Assembléia Geral da ONU e aberta à subscrição e ratificação pelos Estados. É um tratado que visa à proteção de crianças e adolescentes de todo o mundo, aprovada na Resolução nº 44/25 da Assembléia Geral das Nações Unidas. Em 1990 se celebra a Cúpula Mundial de Presidentes em favor da infância. Nesta cúpula se aprova o Plano de Ação para o decênio 1990-2000, o qual serve de marco de referência para os Planos Nacionais de Ação para cada Estado parte da Convenção. Em 2011 é celebrado o Ano Interamericano da Infância e Adolescência.
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança
Dentre os princípios consagradas por este tratado estão o direito à vida, à liberdade, as obrigações dos pais, da sociedade e do Estado em relação à criança e adolescente.

Os estados signatários ainda comprometem-se a assegurar a proteção dos menores contra as agressões, ressaltando em seu artigo 19 o combate à sevícia, à exploração e à violência sexual.
As crianças, como pessoas e sujeitos de direito, podem e devem expressar suas opiniões nos temas que lhes afetam. Suas opiniões devem ser escutadas e levadas em conta na agenda política, econômica ou educacional de um país. Desta maneira se cria um novo tipo de relação entre crianças e adolescentes e aqueles que decidem por parte do Estado e da sociedade civil.
Sobrevivência e desenvolvimento — As medidas que tomam os Estados-membros para preservar a vida e a qualidade de vida das crianças devem garantir um desenvolvimento com harmonia nos aspectos físico, espiritual, psicológico, moral e social, considerando suas aptidões e talentos.
Interesse superior da criança — Quando as instituições públicas ou privadas, autoridades, tribunais ou qualquer outra entidade tomar decisões acerca das crianças, devem considerar aquelas que lhes ofereçam o máximo bem-estar.
Não-discriminação — Nenhuma criança deve ser prejudicada de forma alguma por motivos de raça, credo, cor, gênero, idioma, casta, situação ao nascer ou por padecer de alguma deficiência física.
A Convenção sobre os Direitos da Criança é o instrumento de direitos humanos mais aceito na história universal. Foi ratificada pela quase totalidade dos Estados-membros das Nações Unidas: 193 países. Somente dois países não ratificaram a Convenção: os Estados Unidos e a Somália — que sinalizaram sua intenção de ratificar a Convenção ao assinar formalmente o documento.
Levantamento estatístico
O levantamento estatístico ora analisado leva em conta fatos ocorridos até o ano de 2012.

Verificou-se que, no mundo, 100 milhões de crianças e adolescentes passam a maior parte do seu tempo nas ruas, ao passo que 13 milhões delas se tornam órfãos devido à Aids, enquanto 750 mil crianças e adolescentes no Reino Unido não vêem seus pais por causa do materialismo.
130 milhões de crianças e adolescentes não têm acesso à educação. Na Índia, 100 milhões de crianças e adolescentes abandonam a escola.
A Tanzânia gasta 9 vezes seu orçamento com a saúde e 4 vezes seu orçamento com a educação com o pagamento de dívidas.
160 milhões de crianças são mal nutridas. 600 milhões de crianças vivem com menos de um dólar por dia. 2 milhões de crianças morrem todos os dias por não terem sido imunizadas. 30 mil crianças morrem a cada dia de doenças que poderiam ser evitadas. 250 mil crianças e adolescentes são infectados pelo vírus da AIDS a cada mês. A cada ano, 40 milhões e crianças morrem vítimas do aborto.
250 milhões de crianças e adolescentes trabalham em todo o mundo. 300 mil adolescentes, com menos de 18 anos de idade, são explorados como soldados.10 milhões de crianças e adolescentes são vítimas da indústria do sexo.
No Brasil
De outro giro, no Brasil, 35,9% da população total é constituída por crianças e adolescentes (de 0 a 17 anos). Em números absolutos são 61 milhões de crianças e adolescentes.

Constatou-se que um em cada cinco bebês nascidos são de mães adolescentes. A porcentagem de gravidez durante a adolescência subiu 15,3% em 1991 para 20% em 2002.
4,7% das crianças e adolescentes apresentam algum tipo de deficiência. A incapacidade ou grande dificuldade permanente de enxergar é a deficiência de maior ocorrência.
Em 2000, morreram, em média, 30 crianças antes de completar um ano de idade, por mil nascidas vivas.
Cerca de 500 mil crianças com até cinco anos morrem anualmente no Brasil, sendo que 30% das mortes são causadas por diarréia;
Há 36,8 mil jovens, com idade entre 13 e 14 anos, portadores do vírus da Aids. Desses, 23,3 mil são homens e 13,6 mil, mulheres. A maioria é heterossexual e contraiu o HIV durante relações sexuais.
A mortalidade infantil na região do semi-árido brasileiro é superior à média nacional em 95% das suas cidades; e cerca de 33,8% dos óbitos das crianças com menos de um ano ocorrem por doenças que poderiam ser evitadas — grande parte devido à carência nutricional.
A cada ano, 30 mil adolescentes passam por entidades de privação de liberdade. Cerca de 60% deles estão cumprindo penas inadequadas e sendo submetidos a medidas sócio-educativas ineficazes;
Em 2002, 11,73% dos estudantes do Ensino Fundamental e 9,09% do Ensino Médio foram reprovados. Os números representam 4,8 milhões de reprovações entre os 51 milhões que terminaram o Ensino Básico em 2002.
Cerca de 20 mil crianças e adolescentes, com idades entre 10 e 16 anos servem ao narcotráfico. Mais de meio milhão de crianças, com idade entre 10 e 17 anos, são exploradas como trabalhadoras domésticas.[1]
A morte de crianças e adolescentes cresceu 376% nos últimos 30 anos. Dados do “Mapa da Violência 2012 Crianças e Adolescentes do Brasil”mostram que os 8.686 assassinatos de adolescentes e crianças em 2010 representaram um aumento de 376% em relação a 1980.
O levantamento analisa as informações do Ministério da Saúde sobre as causas das mortes de pessoas entre zero e 19 anos de idade. O sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador da pesquisa, destaca o aumento na proporção de homicídios, de cerca de 11%, em 1980, para 43% em 2010.
“Os homicídios de jovens continuam sendo o calcanhar de aquiles do governo. Esse aumento mostra que criança e adolescente não são prioridade dos governos”, disse. Entre os estados em que houve maior aumento dos assassinatos de jovens estão Alagoas, com uma taxa de 34,8 homicídios por 100 mil habitantes, Espírito Santo (33,8) e Bahia (23,8). Emendas em tramitação no congresso nacional visando alterar o ECA para redução da Maioridade penal.
Conclusão
Convém registrar que o critério adotado pelo legislador constituinte, em seu artigo 228, foi o etário (biológico), para definir a idade dos 18 anos como a real capacidade de discernimento da conduta, podendo, portanto ser responsabilizado por ela. (“São penalmente inimputáveis os menores de 18 anos sujeitos às normas da legislação especial”).

Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, o Brasil tem hoje mais de 20 mil adolescentes recolhidos em unidades de internação e delegacias especializadas, enquanto no sistema penitenciário adulto esse numero supera a casa dos 500 mil presos.
No Ceará, de acordo com o segundo monitoramento do sistema socioeducativo, realizado em 2011 pelo Fórum DCA, o levantamento apontou que existem atualmente 958 adolescentes privados de liberdade, em 13 centros educacionais no Estado. Esses dados desmitificam a ideia de que o ECA protege demais e que, portanto, adolescentes que cometem atos infracionais não são responsabilizados.
Em Sergipe, a população do Cenam (definitivos) e Usip (provisórios) chegou a níveis alarmantes, inclusive com tratamento desumano aos internos, incluindo cenas de espancamento, registradas através de câmaras de TV, fato que levou o Poder Judiciário a interditar os dois estabelecimentos prisionais.
Destaque-se que a proposta de reduzir a idade penal, ou seja, de termos cada vez mais jovens no sistema penitenciário, não aponta para um futuro de mais respeito aos direitos da criança e do adolescente. Negar direitos não gera direitos! Uma sociedade mais punitiva colherá, inveitavelmente, mais violência.
Observa-se com esta análise que, enquanto a Constituição Pátria e o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem em seus textos prioridades em consonância com tratados e convenções internacionais subscritos pelo Brasil, constitui um paradoxo assistir, com frequencia, que “(...) os familiares da vítima, ou a própria vítima de um ato truculento da parte de um menor, almejam não a sua ressocialização, mas a dissociação desse ‘delinqüente’ mediante a sobeja da vingança, de ver destruída a vida desse menor, em proporções iguais ou piores ao da sua vítima”.
Neste afã, o clamor de justiça popular, balizado pelo estardalhaço veiculado na mídia, patrocina qualquer ideal mais gravoso e ortodoxo como uma “novatio legis in pejus”, almejando verdadeiramente dar legitimidade a um critério excessivamente punitivo, para não dizer destrutivo.
No influxo deste impasse, certos políticos encontram terreno fértil para se promover à custa da desgraça alheia, propalando discursos intempestivos e imediatistas, muitas vezes desprovidos do próprio fundamento constitucional.
Assim, no Brasil, ao tentarem reduzir a maioridade penal, para qualquer que seja a idade, é indispensável que, antes, cumpram-se os mandamentos constitucionais e do ECA, priorizando políticas públicas de saúde, educação integral, lazer e outras, direcionadas ao bem estar e apoio às crianças e adolescentes. Pois, do contrário, estaria se tentando estabelecer prioridades às avessas em relação à criança e ao adolescente, fato este, lamentável.

[1] Fontes: UNICEF, ONU, Fundação Getúlio Vargas, Family Policies Study Center, The Hindu, UN, World Vision, ILO, IBGE, Organização Internacional do Trabalho, Ministério da Saúde do Brasil, Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), Censo Escolar 2003.
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Edson Ulisses de Melo é desembargador, vice-presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, conselheiro da Escola Superior de Magistratura, ex-Procurador Geral do Estado de Sergipe, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros, sócio-fundador do IBDFAN-SE, ex-presidente da OAB-SE, ex-conselheiro do Conselho Federal da OAB, ex-Presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos e ex-Presidente da Comissão Nacional de Combate à Violência.
Revista Consultor Jurídico, 27 de março de 2014

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