A criminalização de uma conduta só se justifica caso venha a gerar lesão ou perigo concreto a um determinado bem jurídico tutelado pelo Direito Penal. Baseado nesse fundamento, o juiz Marcos Augusto Ramos Peixoto, da 37ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, rejeitou denúncia oferecida pelo Ministério Público contra um homem acusado de porte de droga para consumo pessoal, conforme o artigo 28 da Lei 11.343/2006. A decisão foi tomada no último dia 20 de março.
No caso, soldados da Polícia Militar encontraram cerca de 30 gramas de drogas embaladas em sacos plásticos (0,9 grama de maconha e 0,18 grama de cocaína). Por ser considerado crime de menor potencial ofensivo, com pena máxima de dois anos, foi feito um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), válido como inquérito simplificado, e depois enviado para o Juizado Especial Criminal. No entanto, como o acusado não vinha sendo encontrado, o caso foi encaminhado pelo MP-RJ.
Na sentença, o juiz questiona a afirmação comum de que a saúde pública é o bem jurídico tutelado pelo artigo 28 da Lei 11.343/2006. Essa “abstração”, diz, deve ser afastada, pois o que está em discussão é “o somatório das saúdes pessoais de cada cidadão”. Nesse caso, “a tutela se faz, em realidade, à saúde dos usuários de drogas, ou seja, especificamente à saúde de cada um deles, sendo este o perigo concreto a ser analisado”.
Peixoto ressalva que o Direito Penal opta por não incriminar pessoas que já estão em situação de vida delicada, na qual a atuação do Estado, como agente repressor, somente contribuiria para piorar. “Afinal, uma pessoa que tentou se suicidar, que se autolesionou, que faz uso abusivo de drogas ainda que lícitas, sem que em nenhuma destas situações afete direitos de terceiros, não necessita de reprimenda, mas no máximo de ajuda, tratamento e proteção, ou seja, tudo o que o Direito Penal não pode dar”, afirma.
Ainda segundo o juiz, alguém pode se autolesionar sem ser incriminado por isto. Da mesma forma, embora o uso abusivo de álcool e tabaco cause a morte de milhões de pessoas anualmente em todo o mundo, ninguém será acusado criminalmente por isto. Nesse contexto, define como hipócrita o argumento de que o uso de drogas ilícitas é mais grave que o de drogas lícitas. No caso da maconha, aponta Peixoto, “inúmeras pesquisas científicas sérias indicam que seu potencial de dano é infinitamente menor que o do álcool ou do cigarro comum – e jamais se soube que alguém tenha morrido em razão tão-só de seu uso”.
Na avaliação do magistrado, tal distinção feita entre tipos de drogas viola os princípios da igualdade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, contidos no artigo 5º, inciso X, da Constituição brasileira. “A ofensa ao princípio da igualdade estaria exposta no momento em que se estabelece distinção de tratamento penal (drogas ilícitas) e não-penal (drogas lícitas) para usuários de diferentes substâncias, tendo ambas potencialidade de determinar dependência física ou psíquica”, escreve, citando o jurista Salo de Carvalho.
Além de citar decisões análogas do próprio tribunal fluminense, Peixoto ressalva que a Organização dos Estados Americanos (OEA), em sua Assembleia Geral, realizada em 2013, estabeleceu que a busca por soluções para o problema mundial das drogas deve ser feita de maneira multidisciplinar, sendo observados os direitos e garantias fundamentais do cidadão, "não podendo o usuário de drogas ser utilizado como mero instrumento no combate ao tráfico, posto que incompatível tal opção com o princípio da dignidade da pessoa humana".
“Em suma, deixando a hipocrisia de lado, não afetando a conduta incriminada pelo artigo 28 da Lei 11.343/2006 bens jurídicos de terceiros, e sendo lícita a prática da autolesão, não guardando tal ação pertinência com a saúde ou incolumidade pública, estamos no âmbito do direito constitucionalmente assegurado à dignidade humana, à liberdade, à privacidade e à intimidade de cada cidadão”, descreve o juiz, para quem não há, no caso, bem jurídico a ser tutelado. “Logo, carecendo a conduta tipificada de ofensividade, e violando a incriminação os supracitados princípios constitucionais, carece aquele tipo penal de respaldo na Carta Maior, impondo-se o reconhecimento de sua inconstitucionalidade, o que ora declaro”, conclui.
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Marcelo Pinto é correspondente da ConJur no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 28 de março de 2014
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