Desde a apresentação da PEC 51, que versa principalmente sobre o reajuste das instituições policiais brasileiras em polícias de ciclo completo, carreira única e desmilitarizadas, houve desde pronto diversas manifestações contrárias. Em especial, muitos delegados federais olham com asco a carreira única, atribuindo que esta seria, na verdade, um “trem da alegria” para que agentes, na visão deles uma carreira auxiliar, ascendessem para o cargo de delegado.
Sobre isso, é importante frisar certos pontos.
Em primeiro lugar, os agentes federais não são carreira auxiliar na Polícia Federal. Em termos legais, tanto delegados quanto agentes, escrivães, papiloscopistas e peritos criminais federais são cargos que compõem uma mesma carreira, a chamada carreira policial federal. Isso pode ser constatado de modo amplo no art. 144 §1º da CF e de modo específico no art. 1º da Lei 9266/97.
Em termos práticos, carreiras auxiliares não exercem as atribuições que levam execução da atividade fim de um órgão ou "poder". Os magistrados, e só esses, julgam, dão a palavra final e decidem sobre o destino da vida de pessoas, empresas, entidades, seus bens e patrimônios. Ou já viram uma sentença assinada por um oficial de justiça? Os procuradores e promotores membros dos MPs, e só esses, são detentores da Ação Penal (dominus litis), ou já viram um técnico do parquet acusando no tribunal do Júri?
A função precípua de todo a polícia do mundo é investigar, produzir, colher e demonstrar provas e indícios que mostrem a materialidade do crime e indiquem sua autoria. E quem faz isso, por óbvio, de forma absoluta, não pode ser considerado auxiliar. Em resumo: quem investiga? Quem faz a atividade policial fim por essência? A resposta, na prática, é o agente. Isso porque o atual responsável (no caso o delegado) não se dispõe a ir a campo realizar a investigação (salvo raras exceções). Ele espera que o agente retorne com o resultado da diligência e relata o IPL baseado nessas informações e nas oitivas. Logo, a função investigativa em si é feita pelo agente.
Isto é fácil de observar quando comparamos com carreiras policiais de outros modelos do mundo: os detectives ou special agents, por exemplo, como responsáveis por uma investigação, não requerem que outro cargo realize as diligências, eles mesmos vão a campo buscar a informação. Função análoga no Brasil é feita pelo agente e não pelo delegado.
De fato, a carreira auxiliar da Polícia Federal na verdade é a dos agentes administrativos, pertencentes ao Plano Especial de Carreiras. Estes, sim, não atuam na atividade fim, de investigação policial, mas na atividade meio.
Resolvido este ponto, quanto ao fato de o delegado não exigir experiência policial anterior no seu processo seletivo: retomando as comparações, os cargos de promotor e juiz requerem experiência mínima de três anos na área. Ou seja, é necessário ter experiência profissional afim anterior.
Para delegado não é necessária experiência policial nenhuma, podendo um aluno que acabou de sair da faculdade ser o responsável por uma investigação criminal. E como já foi dito pelo próprio superintendente da PF de São Paulo, "investigação não se aprende em faculdade de Direito e nem se executa em gabinete". Assim, apenas faculdade de Direito não garante em nada que o aprovado em concurso de delegado tenha capacidade para presidir uma investigação e, com a prática usual de o delegado não ir a campo realizar a diligência, continuará sem dominar os aspectos fundamentais da investigação.
Novamente comparando com modelos internacionais, os detetives precisam ter tempo de experiência policial prática antes de serem considerados habilitados ao cargo de responsável pelas investigações. O que é, no mínimo, normal. Apenas no Brasil ainda se perpetua esse modelo em que chefias são alcançadas sem a experiência necessária para esse cargo.
Numa proposta de carreira única, o delegado nem precisa deixar de existir, mas a terminologia que for dada para ser chefe de investigação venha a respeitar um posicionamento hierárquico que deflua da organização estrutural e funcional do órgão que corresponda aos feixes de atribuições de cada cargos (não carreira) ou funções providos em confiança, em decorrência da natureza dos seus encargos, porque inexiste, por si só, subordinação funcional entre os ocupantes de cargos efetivos.
Quanto à formação em Direito, concordo que deve haver precaução com a manutenção da legalidade das investigações, mas exigir que apenas o formado na área possa ser responsável por uma investigação é um excesso. Nos outros modelos policiais fora do Brasil, não há essa exigência. O que é, no mínimo, curioso, se tal formação fosse realmente imprescindível. De fato, há uma preocupação que os investigadores tenham formações em diversas áreas, que possam ser aproveitadas nas investigações dos diversos tipos de crime. Não só isso, se fosse necessário ser formado em Direito para garantir a legalidade de todas as atividades policiais, todo policial deveria ter essa formação, o que vemos mundialmente não ser verdade. A legalidade, por sua vez, pode ser mantida via controle interno pelas corregedorias e externo pelo MP, que já detém essa função. Ainda mais, o trabalho policial é altamente direcionado para dar subsídio para o Ministério Público iniciar a Ação Penal, e é ele quem decidirá pela tipificação e quais elementos são necessários para embasar tal ação.
Ademais, a necessidade e exigência de conhecimentos sobre legislação é pré-requisito para o ingresso e o exercício das atividades de todas as carreiras de Estados, e desconheço um cargo de nível superior (lembrando aqui que todos os cargos policiais da Polícia Federal exigem nível superior) que não tenha essa exigência nos seus programas de concursos para ingresso.
Mesmo nas funções de polícia administrativa, o agente, quando atua como "agente de migração", se vale do uso de inúmeras e complexas legislações e atos administrativos internos e tratados internacionais para decidir sobre entrada e saída de viajantes estrangeiros ou multá-los por infrações administrativas pertinentes a esse trânsito, processos de permanência e inquéritos de expulsão; o escrivão com todos os normativos aplicáveis a atividades cartorárias; o agente atuando na análise da concessão, fiscalização e punição de atos relativos ás atividades de segurança privada, químicos e controle de armas; os auditores da Receita no uso de complexa legislação tributária quando aplicam uma milionária multa ou suspendem as atividades de uma empresa; auditores do Banco Central no uso da legislação financeira nacional; os fiscais alfandegários, agrícolas, de portos, etc., nas suas atividades que interferem na produção de milhares de empresas, sempre usando diversos dispositivos normativos.
Os exemplos deixam claro que saber Direito e a necessidade de o quanto se exigir esse conhecimento numa carreira é variável e não é isso que torna um cargo mais importante que o outro. O tanto desse conhecimento na carreira pública é adquirido de acordo com a necessidade em três momentos: 1- O que se exige como programa de concurso, que deve se valer da real necessidade desses conhecimentos no exercício da atividade, 2- da formação que se dá ao servidor que ingressa no cargo (PFs na ANP, auditores e analista da Receita em seus cursos de formação, etc.) e na prática. 3- não menos importante para o servidor, a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, que exige que ninguém pode alegar desconhecimento da lei, muito menos o responsáveis públicos pela aplicação dela.
Em resumo, todo servidor público deve possuir conhecimento de legislação, atos administrativos, etc. A formação em Direito é necessária para a advocacia, Ministério Público, a magistratura, as Defensorias e Procuradorias Públicas etc., porque são atividades que envolvem primordialmente discutir e decidir sobre aplicação da lei. Não é o caso da polícia. A polícia tem sim que observar e aplicar a lei, mas sua função primordial é investigação e segurança pública, e não discussão da lei em si.
Concluindo, a carreira única nada mais é que um ajuste do modelo policial brasileiro aos modelos internacionais que já se comprovaram mais eficientes. A carreira única garantirá que o policial responsável pela investigação tenha conhecimento prático da atividade e seja o mesmo que realize a diligência, que toda chefia seja ocupada por servidor necessariamente experiente e que todo policial tenha perspectiva de crescimento no órgão, diminuindo a evasão e as chances de corrupção. O princípio constitucional do concurso público será garantido para ingresso no início da carreira e a progressão se dará através de processo seletivo com requisitos objetivos.
Ou seja, não há motivo para resistência a essa mudança, a não ser para se manter uma segregação social-funcional que privilegie castas ao invés da eficiência. E disso o Brasil já está farto.
Carreira jurídica
Os membros das carreiras jurídicas, ao menos conforme lição que tivemos quando acadêmicos de Direito, seriam aqueles que “promovem” a justiça e “falam” no processo, “operando” o Direito.
Portanto, aqueles profissionais que fazem parte da trilogia processual e que são essenciais à Justiça! Vejamos: advogados (atuam na tríade processual, apesar de não desempenharem "carreira pública"), advogados públicos, procuradores estaduais, advogados da União, membros do Ministério Público da União e do Ministério Público Estadual e magistrados.
Não existe definição doutrinária ou conceitual do que seja “carreira jurídica”. Mas a Constituição traz quais são as carreiras essenciais à promoção da Justiça, e nela não está a de delegado de polícia. Logo, conclui-se que as carreiras jurídicas são apenas as referidas na Constituição Federal.
Leonardo Borges de Oliveira é agente de Polícia Federal e pós-graduado em Direito Constitucional.
Revista Consultor Jurídico, 18 de março de 2014
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